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Nueiba: Histórias Rudimentares



San Cibrao: Da Malhada à Procissão dos Fachucos

Mais do que um labor milenar, foi um convívio comunitário de vecinos e amigos de Santa Cruz de San Cibrao, aldeia galega, que faz fronteira com São Tiago de Vilarelho da Raia, Chaves.

La faena aconteceu no último sábado de agosto em ambiente de animação e calor humano: entreajuda, entusiasmo, fraternidade, insuflando vida num costumbre em vias de extinção. Uma velha máquina Malladora Campeva foi a surpresa deste ano, substituindo os malladores, que em anos anteriores tinham exibido as suas habilidades no rebimbar dos seus malhos, despiques elogiados, espécie de dança sincronizada no esforço, suor e ritmo, labuta ao fim nutrida com um generoso banquete, seguido de dança e fogo-de-artifício. Superando anos anteriores, desta vez havia ainda um passeio de carroça, com o burro a ser recompensado, ao fim de cada volta, com taliscas de melancia. É a isto que se chama espírito.

Cumprida la faena, o grão ficou ensacado à espera da sementeira, o princípio desta tradição circular. A palha foi guardada para a oferenda do Guerreiro Celta Breogán a Lugo, deus do Sol, da Luz e do Fogo, no Entroido. Nesse dia haverá música, comida e bebida grátis para quem queira participar no evento. Da palha armazenada serão feitos fachucos gigantes em que o amigo dá lume ao amigo e lhe ilumina o caminho.

 Passou já quase meio ano desde essa última noite mágica, incendiada, cuja dinâmica própria de cada subgrupo lhe dava um efeito hipnótico, inapagável na memória.

 Los Fachuqueros serpenteavam então entre o fumo e as falmegas, para não lhes caírem em cima, enquanto os archotes iam sendo devorados pelas labaredas numa fria e longa caminhada de uma milha. Entorpecidos pela bebida, que condicionava o caminho, alguns dos “penitentes” eram esporadicamente socorridos pelos companheiros que lhes traziam luz às trevas, à confusão, endireitando-lhes a labiríntica subida, enchendo-os de mimos até ao topo da montanha. Aí Los Fachuqueros atiravam a palha remanescente numa pira funerária como oferenda ao deus do Fogo.

Festa pagã, zénite atingido, agora todos acantonados em volta do lume, mimetizando o rito original, Los Guerreros de los Fachucos pareciam ficar em transe contemplando os restos da sua oferenda, num êxtase incompreensível, tentado descodificar nas diferentes matizes de fumo se eram ou não aceites por Lugo, debaixo de um intenso foguetório. Só depois de testemunharem que eram Abeis e não Cains, abandonavam o local serenamente como quem desce uma montanha bíblica.

Dizem que em tempos imemoriais, a juventude fazia esta subida pedindo mulher ou marido para o ano seguinte.

Quando se pensava que o espetáculo havia chegado ao fim, o festim tinha ainda algo para oferecer. De regresso ao pobo, abriram-se as caves – uma pequena amostra do que tinha acontecido uma semana antes na Ruta das Adegas – onde os forasteiros eram tratados com cortesia mourisca - insertavam-se os presuntos, cortavam-se os chouriços pendurados, o vinho corria dos pipos, enquanto os anfitriões faziam o possível para agradar a todos, principalmente aos agora tristonhos abstémios, aqui menos engajados, meio escondidos e desconfortáveis: “mas afinal que tomais vós, romeiros?” Também não demorou muito tempo a entrarem no ritmo contagiados pelas canções com puñetazos encima das mesas:

“Éche un andar miudiño/ miudiño, miudiño/ que eu traio uña borracheira/ de viño, que auga non bebo/ mira, mira Maruxiña/ mira, mira como eu veño…”

La Peregrinación Fachuquera é uma tradição milenar céltica, que irmana os vecinos da aldeia de San Cibrao com os dos povoados circunvizinhos e outros amigos, que com eles aqui confraternizam nessa data lunar simbólica, anunciadora do ressurgimento da vegetação, transportando-nos ao mesmo tempo para a infância, reencontros sentimentais, quando esperávamos, noite adentro, nas varandas de Vilarelho, pela aparição dos bruxuleantes fachucos em dimensão transcendente, cósmica, como se fossem pirilampos, levados em fila indiana pelos espíritos invisíveis da floresta. 

Nota: Os da Tâmega English School, os d’Aldeia que Nunca Dorme e outros amigos, ficam desde já convidados para a queima –  C’mon baby light my fire, try to set the night on fire – apesar do pouco engenho e menos arte, mas com muito sacrifício à mistura, penso ter malhado palha para fachucos que cheguem para todos. Mas almoços grátis … só uma vez. Para o ano, as notadas ausências na malhada serão assinaladas e a respetiva falta marcada a quem não aparecer no evento. Assim está escrito e assim será feito.

Confesso que já tenho morriña; já me cheira a fumo, só em pensar que vou estar tão bem acompanhado!

O Nueiba, setembro de 2014

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