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Crónicas


Nueiba: Histórias Rudimentares



Terras de São Tiago

(continuação de A Legendária História de Vamba)

Por aqueles tempos cristãos do ano 44, o rei Herodes estendeu as mãos sobre alguns da igreja para os maltratar; e matou à espada Tiago, irmão de João.

Atos dos Apóstolos

Era uma história única e sem precedentes em toda a Península Ibérica, esta da segunda vinda de São Tiago na data assinalada de 25 de julho, do ano 765, fazia já 720 anos, números redondos, em que o primeiro mártir da Cristandade tinha sido decapitado.

Segundo a tradição, nunca houvera uma configuração astral tão predisposta a favorecer o protomártir da Cristandade na preservação da fé que em vida pregara, voltando agora sete séculos após a sua morte ao Castro de Vamba, reaparecendo neste rincão poético, em data cabalística, cuja vitória teve um impacto retumbante na Reconquista Cristã aos Mouros, transformando desde logo Vilaiete em Terras de São Tiago. Era o princípio de uma nova ordem e o fim do legado de Vamba – linhagem intimamente ligada à vinda dos Mouros – que iria persistir apenas como memória numa maldição.

Não obstante a decantada tolerância islâmica e incentivos à miscigenação, os Mouros permitiam que os aglomerados populacionais vivessem separados em bairros de acordo com seu credo religioso, por razões pragmáticas e de segurança, isto sem decretos segregacionistas ou descriminação alguma em relação aos Adeptos do Livro, de outras denominações, desde que todos pagassem os respetivos tributos. No Castro de Vamba estaria então o maior concentrado cristão, enquanto os Islamitas encontrar-se-iam dispersos pelos pequenos aglomerados circunvizinhos.

De acordo com estes relatos orais (ver artigos anteriores), os Moçárabes, que viam as religiões como veículos de uma sã convivência entre povos, não teriam aceitado imediatamente o Mata-Mouros, nome que foi atribuído ao Apóstolo pela sua luta irascível contra o Islamismo, a quem olhavam inicialmente com desconfiança, não só pelo seu carácter impetuoso, mas apesar de tudo por ter escolhido para a batalha um dia indefeso para os Muçulmanos, coincidente com o Ramadão. Apesar do Boanerges, nome dado a Tiago por Jesus, que queria dizer Filho do Trovão, nada saber sobre estas coincidências, foi esse o argumento utilizado pelos Mouros para lhe lançar uma praga que parece perdurar até aos dias de hoje, invocando contra ele o poder do Alcorão.

O tempo porém tudo iria curar menos o feitiço. Com o desaparecimento dos símbolos da Meia-Lua substituídos pelos da Cruz, feitos ulteriores do Santo que velava pelos Cristãos e as profecias do fim do Islamismo – agora ser Moçárabe de nada serviria – o Apóstolo foi progressivamente ganhando fiéis, acabando por granjear uma veneração especial, que o elevou a Padroeiro, consagração que mantém até aos dias de hoje como defensor destas Terras.

São Tiago era filho de Zebedeu e Salomé, irmã de Maria, mãe de Jesus. Era mais conhecido por São Tiago Maior (o mais velho) para distingui-lo de São Tiago Menor e de São Tiago o Justo também discípulos de Cristo. Foi executado por Herodes Agripa I no dia 25 de julho do ano cristão de 44. O seu nome hebraico era Jacob, que evoluiu para outras línguas em diversas formas. Assim, temos Giacomo em italiano, Jacques em francês, Jaime em catalão, James em inglês, Santiago em castelhano e em português São Tiago, também grafado S. Tiago.

Aproveitando a efeméride de 25 de julho, os Cristãos em volta do mundo passaram a relembrar o Apóstolo nessa data simbólica com cerimónias religiosas e festas populares de grande sociabilidade das quais se destaca a de Santiago de Compostela – o local de maior peregrinação do universo cristão depois de Jerusalém e Roma – onde os seus ossos teriam sido encontrados.

A Maldição de São Tiago

Segundo reza a história, por volta do Fim do Primeiro Milénio, Vilarelho aparece mencionado nos territórios de Baroncelli e o culto a São Tiago estaria então no seu auge. Séculos volvidos, já na dinastia de Avis, com o casamento de D. João I com Filipa de Lencastre, Santiago na sua forma castelhana, passou a ser visto quase exclusivamente como padroeiro de Nuestros Hermanos, antes reconhecido no tão célebre grito de guerra contra os Mouros ˇArriba Santiago y cierra España!, opunha-se agora inevitavelmente a São Jorge de Portugal, este para defender os Portugueses, por influência inglesa, contra os Espanhóis, considerados como os seus maiores inimigos. Para a gente da Raia esta mudança era uma inconveniência. Sempre que havia escaramuças entre Portugal e Espanha, os Vilarraeinses eram olhados com desconfiança, não se sabendo se estavam do lado do seu Padroeiro ou do lado de Portugal. Durante a crise de 1383-85, as lutas sangrentas na Fronteira culminaram com um primeiro ataque ao antigo Castelo, no sítio homónimo, por fogo amigo, pensando-se inicialmente que os Vilarraienses estariam do outro lado da contenda. Mais tarde, durante a Guerra da Restauração, foi aqui construído um Forte e uma Atalaia, depois também demolidos, cujos restos graníticos ainda podem ver-se nas paredes da antiga vinha do Muro, posto que o seu construtor considerava a aldeia como um ponto estratégico na defesa de Chaves. O Forte foi construído em simultâneo com o Forte S. Neutel, em Chaves, por volta dos anos de 1666, mas o responsável pela sua construção, o Conde S. João, teria pedido que moderassem as celebrações da Festa de São Tiago durante a sua edificação. Só quando Espanha reconheceu Portugal como Reino Independente, os habitantes voltaram às suas práticas habituais.

Apesar de todos estes contratempos, São Tiago resistiu ao teste do tempo, seguindo sendo até aos dias de hoje o Padroeiro oficial. Mas séculos volvidos apareceu uma alternativa para o substituir, ensombrando a história do tão celebrado Santo com o seu cavalo branco de glória, conceito de velocidade e espada de fogo.

 Ao que parece, e segundo o que se contava, o nacionalismo exacerbado das celebrações do Primeiro de Dezembro, ano após ano, começara a provocar pressões sobre a população local.

  Que fosse um ato genuíno ou a ânsia de harmonia e conformidade que "o Senhor se revelava da forma que cada um O possa entender" a população interpretou umas luzes que apareciam à beira da estrada como sendo as Almas a fugir do fogo do Inferno e passaram a chamar-lhes devotamente as Almas do Senhor – o Padre Sanches contava que as luzes tinham gerado uma reação espontânea da população – e o mistério noturno desfez-se à luz do sol "que o maior cego era aquele que só via as luzes" na construção de duas capelas. E como era "um lugar sagrado" foi-lhe muito mais tarde adicionado uma terceira capelinha, a do Senhor dos Passos, o recinto cercado começou a ser bem cuidado. Subsequentemente, a pista de dança, ao fundo do recinto, foi cimentada e a recente construção de dois coretos de música transformaram o santuário num dos lugares mais belos e aprazíveis das redondezas, um oásis que está ali a pedir mais utilização, para além do dia da festa.

Tinha-se então invertido os termos de Almas do Senhor para o Senhor das Almas e com uma grande celebração encontrado o patrono de facto. As oferendas e as promessas do contrabando passaram a ser feitas ao Senhor das Almas e para ele passaram a ir as esmolas. Desde há tempos que a este Santo se realiza uma romaria de dois dias com muita fama, fogo-de-artifício e uma dinâmica muito própria. A data da romaria foi convenientemente antecipada do primeiro domingo de setembro para o penúltimo fim de semana de agosto, permitindo assim que os Emigrantes em férias usufruam também do evento, que a festa também é deles. A festividade é hoje umas das mais importantes do concelho de Chaves. Para além do contexto religioso, revigorou-se esta romaria com a Semana Cultural que culmina com a Festa da Cerveja, na sexta-feira antes do dia principal, atraindo uma multidão de juventude. A festa de São Tiago, ao invés, esquecida, permanecendo no dia histórico-lendário de 25 de julho, nem faria sentido trocar tão simbólica data, passou a ser uma festividade quase insignificante. Para isto teria também contribuído uma escaramuça explosiva entre Portugueses e Espanhóis, em 1939, em torno do Gaiteiro que tocava nesta romaria, e que causou entre vários feridos uma morte de cada lado. A festa de São Tiago passou então a ser celebrada quase apenas a nível religioso – só pensar na fatídica data causava logo tristeza – e mesmo assim de forma meio envergonhada para não relembrar a tragédia.

 A maldição do esquecimento de São Tiago era também sublinhada pela popularidade do Senhor das Almas. Segundo contam, o padre Vitorino natural da aldeia, defensor intransigente de tudo que era da terra, não se cansava de relembrar São Tiago nos seus sermões:

 "O Filho do Trovão, cavaleiro sublime, espada homérica, corcel deslizante como um pégaso sem alas, culto responsável pela evangelização e a preservação do Cristianismo na Península Ibéria, Santo insigne, protetor dos peregrinos e dos caminheiros, Padroeiro que escolheu estas terras para aparecer é intrinsecamente muito mais valioso que qualquer outro santo. Que ingratidão andar agora entre nós tão esquecido!"

Mas o Padre, digno representante do espírito vilarraiense e de amor à terra que o viu nascer, dedicando-se a ela de corpo e alma, quando empolgado dizia às vezes, por falta de tato, coisas que enervavam alguns dos fregueses e os seus sermões acabariam por ter uma gravidade profética. As coisas não lhe correram de feição, acabando por reavivar antigas polémicas. Não só não conseguia atingir os resultados pretendidos, como acabava por dar força aos seus contestatários, devotos do culto do Senhor das Almas. A rivalidade entre São Tiago e o Senhor das Almas vivia assim um novo episódio. A frontalidade também nunca fora coisa que lhe faltasse e ele divulgava o seu pensamento para quem o quisesse ouvir desde o alto do seu púlpito:  

 "Quem é afinal o Senhor das Almas para o quererem comparar com São Tiago?"

  Segundo rumores oficiosos que carecem de confirmação oficial, o Padre teria pegado na Senhora de Guadalupe da Igreja Paroquial, substituindo-a aqui pela Senhora de Fátima, colocando àquela na capela grande do Senhor das Almas onde ainda se encontra. Mas mais tarde, a esta capela foi sobreposto um alpendre, onde se reza a missa da festa, com o seu nome original estampado na fachada frontal: Almas do Senhor.

O tempo não trazia o passado de volta. Acentuava-se assim a tensão entre São Tiago e o Senhor das Almas, que até então era intuída apenas de forma subliminar, como uma luta secreta.

A Rota das Origens

Hoje pressente-se haver uma grande devoção ao Senhor das Almas, mas haverá ciúmes assim tão grandes entre santos, que para se gostar de um se tem que esquecer assim tão imerecidamente o outro? Ou será a sombra negra da maldição a pairar sobre São Tiago?

Tinha-se mesmo esquecido a nomenclatura completa da aldeia: São Tiago de Vilarelho da Raia.

Numa tentativa de quebrar o feitiço, essa visão inquietante que perdura por tanto tempo, no Ano Jacobeu de 1999 dois flavienses residentes nos Estados Unidos (era para serem três): Nuno Pereira e José César juntaram-se a dois companheiros em Chaves: Carlos Teixeira e Olímpio Alves e fizeram um Caminho inédito: A Rota das Origens, abrindo assim uma ligação entre o local onde São Tiago, segundo a tradição, tinha originalmente aparecido, ao lugar onde os seus ossos teriam sido encontrados, em Compostela, cerca de 60 anos mais tarde. Mas ficou sempre aquela nuvem negra a pairar sobre o horizonte, já que um dos elementos, depois de ter tudo programado para fazer a inédita viagem, mais do que preparado para o desafio, teve um imprevisto de última hora (há coisas que não têm explicação!) que o impediu de acompanhar os quatro camaradas. Era o quinto elemento desta equipa, representando o quinto dedo alegórico da mão de São Tiago, aquela que leva o bastão, companheiro de viagem em que um se apoia sem pedir nada em troca e ainda as cinco quinas condizentes com a sua procedência de Portugal.

Apesar deste contratempo, a viagem foi um marco histórico. A Rota das Origens ficou como dádiva para a rede dos Caminhos de São Tiago, ainda hoje pouco conhecida pelo seu nome, mas já bastante palmilhada.

O Nueiba, outubro de 2014

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