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Crónicas


Nueiba: Histórias Rudimentares



Castro de Vamba:

O Paraíso Perdido

(fim da A Legendária História de Vamba)

Al oeste (…)
hay un sitio que amo
Acudo allí con todo lo que palpitando
transcurre en mí, con todo
lo que fui, lo que soy, lo que sostengo.
Hay unas altas piedras rojas, el aire
salvaje de mil manos
las hizo edificadas estructuras:
el escarlata ciego subió desde el abismo
y en ellas se hizo cobre, fuego y fuerza.


Neruda

Se Vilaiete era o segredo mais bem guardado destas terras e o padroeiro São Tiago andava esquecido, então do Castro de Vamba, antigo Castrum Mons, também pouco se falava.

Contavam contudo os mais idosos que eram casas pequenas mas de muita antiguidade, aquelas lá em cima na Colina Sagrada, onde os pré-Cristãos tinham morado e que o sítio tinha sido em épocas longínquas lugar de grande esplendores nos Equinócios e Solstícios, em cerimónias religiosas, para que os deuses estivessem do seu lado, que as condições eram difíceis e os inimigos se multiplicavam em cada legião que chegava de Roma.

Construído na agreste crista do monte, no espigão da serra, parecendo aí estar desde os inícios do tempo, com a arquitetura adaptada à forma natural da montanha, lugar estratégico para vigiar as redondezas e como forma de defesa, subsistem ainda na Colina Sagrada as ruinas das milenares e complexas muralhas, às quais se pode chegar de carro por caminhos de terra batida, tanto proveniente do Cambedo, como da aldeia galega de San Cibrao, virando a Sul na encruzilhada do topo do estradão, conhecida no antanho por Cruz da Portela de Vamba, que o levará a uns 20 metros do cume.

Se porventura se entusiasmar a subir ao berço ancestral, se sentir aquela atração gravitacional, ponham-se os deuses de acordo, então sim, um pouco antes que o caminho o leve lá cima, pare a uns cem metros da chegada e deite um olhar sobre os restos da primitiva povoação. Salta à vista a rústica estrutura acinzentada, as muralhas agora desmoronando-se sobre a verde paisagem, uma linha de pedra sobre pedra meio reclamadas pela natureza.

O Castro ou Outeiro Marim, antónimo do superlativo Marão, etimologicamente monte das casas pequenas, imortalizado pelo lamento de Albour: “Vamba,revamba/ OuteiroMarim/ Tesouro enterrado/ Que havia em mim” ergue-se aí a uns 550 metros de altitude, dominando toda a paisagem à sua volta. A última etapa da subida, de dificuldade média, terá que ser escalada a pé, passando uma pequena distância entre arbustos e árvores de pequeno porte, que cresceram demasiado nestes últimos dois anos. 

Depois, não há volta a dar. Para ter o privilégio de disfrutar da beleza destas terras, na sua totalidade, do melhor que a região tem para lhe oferecer, então terá mesmo que subir lá cima e a escalada pode não ser assim tão difícil como à primeira vista aparenta. Ao chegar ao mítico Medronheiro (dizia-se que quem comesse medronhos desta espécie a partir do Solstício de Inverno, altura em que adquiriam uma toxidade alucinogénia, abrir-se-lhe-iam as portas da perceção, ouviria vozes dos seus antepassados e encarnaria o espírito do seu animal totémico com a força e o poder dos seus saltos mágicos; entre os Cristãos, que vieram depois, prevalecia a superstição que os poucos medronhos que permaneciam na árvore se transformavam a partir do Natal na fruta do Diabo) no lado esquerdo, agarre-se às giestas no lado oposto e suba lá cima … que se mais cumes houvera lá chegara. É nos lugares mais remotos e de difícil acesso que encontramos o que de mais belo existe na natureza.

Uma vez em cima, após atingir o zénite, bem lá no alto, pode ver à sua esquerda os indícios da emblemática entrada. A Sul perscruta-se um pequeno lagar esculpido em cima de uma fraga ou, quem sabe, lugar de sacrifícios como oferenda aos espíritos ou forma de comunicação com o Além, hoje rachado ao meio pelo tempo.

Mas antes de prosseguir a sua missão de arqueólogo por um dia - já que sob as suas pegadas pode estar um tesouro milenar escondido - deve primeiro parar para contemplar a majestosa paisagem que se desfralda a seus pés. Sente-se, descanse, ponha-se à vontade e escute nos penhascos os lamentos nostálgicos dos seus antepassados.

Se chegou até aqui, a um lugar aonde antes nunca tinha ido, então o que mais o surpreenderá vai ser uma fraga ali um pouco mais abaixo, a Nascente, o cartão-de-visita da Colina Sagrada, tema tão caro e tão respeitosamente tratado pela gente destas terras. Lá está esse enigmático e fascinante megálito, uma formação granítica, conhecido por Fraga de São Tiago, uma rocha arredondada, onde a erosão, a chuva e o vento parecem ter esculpido duas grandes ferraduras na pedra, mas que a tradição (uma questão de fé) reclama serem as marcas de pouso das patas traseiras do cavalo de São Tiago, no seu salto gigante desde os céus, que aqui apareceu para liderar em pessoa as hostes cristãs contra os Mouros, na montanha oposta, a Alvorinha, 80 anos antes da batalha de Clavijo e 60 antes que a sua tumba fosse encontrada em Compostela. Desça um pouco e veja com os seus próprios olhos tudo aquilo que lhe deu fama.

De volta ao cume, o panorama dado pela visão espacial a 360 graus é encantador. Vai ficar pasmado com uma paisagem nunca antes vista. Pode olhar muitas vezes para baixo que cada visualização mostrar-lhe-á um cenário diferente. Daqui é possível revisitar a história legendária, uma viagem no tempo, com aquele prazer de quem anda a descobrir o mundo, onde pairam sombras de memórias antigas. Um vale de beleza infinita, de encanto natural, para ser vivido na plenitude de um momento.

Para o Poente fica a cordilheira de El Morico, para o Norte Verín (o Castelo de Monterrei está ofuscado por uma montanha), a Sul a misteriosa Alvorinha, o bosque encantado, Éden com uma beleza diferente para cada estação, não foi por acaso que, segundo a tradição, os Mouros a teriam eleito para lá morar, onde ressurge a lenda de Albour, que lhe deu o nome. Na falda da montanha, entre a floresta e o renque de amieiros que seguem as margens do Ribeiro, aparece como uma espécie de dentada na floresta, o Chão da Guerra, demarcado da montanha pela Levada que movia os célebres Moinhos, que segundo os historiadores, tinham até servido de um hospital improvisado durante as guerras da Restauração. Hoje a Barragem do Rego do Milho, que se vê a Sudoeste, aproveitou grande parte do caudal do Ribeiro, que vai desaguar no Tâmega, em Rabal, para levar as águas, num maior raio de ação, aos terrenos circundantes. Estes territórios teriam ficado, segundo a tradição, a ser conhecidos como Chão da Guerra, lugar de todas as batalhas, depois do legendário confronto entre Albour e São Tiago e dos subsequentes combates que aí tiveram lugar. Foi aí também que, segundo a lenda, o rei Vamba teria já antes espetado a aguilhada para depois a ver milagrosamente florescer. Bem mais tarde, durante a Segunda Invasão Francesa, viria a ser o lugar escolhido para uma escaramuça entre invasores e invadidos, onde vários franceses ficaram aí enterrados numa vala comum.

Olhando lentamente para baixo, a Nascente, mais em direção das Turbinas Eólicas de Mairos do que do Castelo de Monforte, que se enxergam lá bem acima, o vale côncavo, uma depressão mais alongada do que profunda, a paisagem é impactante, com subdivisões de diferentes tonalidades de infinita esperança. Saltam à vista os campos de Calvelos, das antigas correrias mouriscas, onde os antigos camponeses e pastores passavam grande parte da sua existência. Foram eles os primeiros a correr atónitos ao povoado de Vilarelho, aquando da Invasão Francesa, avisando-o que as tropas de Soult, provenientes de Monterrei, tinham atravessado o coração das Terras de Baroncelli, deixado para trás San Cibrao, encontrando-se agora acampados nas estepes de Calvelos.

Escalando lentamente com olhar os contrafortes das colinas, as aldeias mais baixas exibem todo um esplendor que vai diminuindo até à povoação mais alta da legendária Vilaiete alargada, Vilarello de Cota, no sopé de Mairos, onde a vista se perde e o povoado apenas espreita para ver que tipo de árvores de hastes eólicas rodopiantes são aquelas que lhe sopram à cabeça.

Segundo os especialistas, os vestígios já meio soterrados pela natureza que hoje vemos, entre penhascos rochosos no cume do Castro, parecem datar do século I antes de Cristo, mas há quem diga haver um labirinto, e os indícios estão lá, que o Sol iluminava nos Equinócios, que dá acesso por um subterrâneo a um castro anterior, possivelmente da Idade do Bronze e que à entrada havia uma escalinata, junto a um reservatório de água, com uma estela ou fraga, onde podia ler-se em petróglifos rúnicos algo do género: “Aqui nasceu e viveu o rei Wamba.” Que esta inscrição fosse um rumor ou mito, era um bom exemplo de como Vamba ainda continuava vivo na memória e no coração dos nossos avós. Aparecem efetivamente uma fraga ressumante com água a Nascente e umas linhas gravadas numa rocha a Poente, mas não fica claro se são símbolos de um código ou meros riscos fruto da chuva e da erosão.

A dita escalinata de pedra à entrada também nunca foi encontrada. As ruínas nunca foram valorizadas, jamais lhes foi dada a importância devida para aproveitamento histórico-cultural. Nunca houve uma tentativa de escavação por parte das autoridades competentes, que continuam a deitar ao abandono um dos castros mais importantes do concelho. A confirmar-se o tal acesso subterrâneo, uma passagem secreta a outro da Idade do Bronze, que escondia um enigma (contam que um dia por lá meteram uma cadela que não voltou ou que teria regressado pelada), viria a ser um dos mais antigos da Península Ibérica. E este pormenor faz toda a diferença. Só para comparação, está-se a reconstruir um Castro da Idade do Ferro em Mogadouro que o tornará num espaço visitável e este muito mais antigo continua aqui deitado ao esquecimento.

É uma sensação agridoce. Que afortunados somos por termos um dos castros mais antigos da Península Ibérica e que tão pouca sorte temos por vê-lo aí esquecido e deitado ao abandonado. Nunca o adágio popular: “ Deus deu as nozes a quem não tem dentes”, fez aqui tanto sentido.

Como se isso não fosse suficiente e indubitavelmente fruto deste desinteresse e desleixo, três cabanas circulares da Idade do Ferro foram aí demolidas, cujo material foi utilizado como entulho na construção da estrada do Cambedo, na década dos anos 60. Os destroços que encontramos no topo do Castro, restos dessa demolição e dos sucessivos saques, cobrem grande parte da muralha de pedra polida, cantaria refinada, que se vê logo à entrada, não indigna de trazer à lembrança as de Machu Picchu ou de Vilcabamba. Mas há outro tipo de muralhas, o que parece indiciar serem de épocas diferentes, de cantaria mais rústica.

Os muitos roubos, pilhagens e desmantelamentos a que o sítio tem sido alvo, são já lendários. Pedras com descrições indecifráveis, cruzes celtas, aras votivas, libras de ouro, moedas antigas, restos cerâmicos romanos e góticos foram aí encontrados, parecendo esconder grandes lições de história. Entre as várias maravilhas arqueológicas, foi encontrado um altar romano em granito, datado do século II depois de Cristo, com a seguinte gravação em latim: “Públio Rufo cumpriu o seu voto a Júpiter Ótimo Máximo de boa vontade.” Este altar encontra-se hoje guardado numa casa no Cambedo, nas faldas do tesouro cultural mais importante destas terras, miradouro por excelência, o imemorial e legendário Castro de Vamba.  

Nota Final: O Paraíso Reconquistado

Mesmo que essa fosse a nossa intenção, nunca nos poderíamos desassociar do passado, do património imaterial infinito, porque ele faz parte de nós, forma parte da nossa identidade cultural e sem isso ficaríamos órfãos, sem matriz, deixando de ser aquilo que somos.

Já não se contam histórias à volta da lareira, noite adentro, quando a imaginação rebobinava o filme da história, de geração em geração até às origens, base estruturante do presente e do futuro. Onde os nossos enigmáticos antepassados, gerações de humanos moravam, trabalhavam, cantavam, dançavam, guardavam os seus segredos e se comunicavam com os espíritos da floresta, dos rios e das fontes. Só em imaginar quantas coisas aconteceram no Castro, o que eles ali em cima construíram, enquanto lutavam contra os elementos: ursos, javalis, lobos, fantasmas, ante o rigor climatério, quando o céu parecia ir desabar sobre eles, e os deuses tinham mais que fazer, toca-nos cá dentro, causa-nos admiração porque foi aqui que a nossa história se perpetuou desde os inícios do tempo, em condições que outros soçobrariam. Mudam-se os tempos, perde-se a memória, esquecem-se as origens e a evolução não avança sem o apoio da nossa herança cultural.

Este foi o lugar, o Castro foi a casa donde os antigos Celtas amavam mulheres guerreiras de olhares resplandecentes, que se confundiam com as cores da natureza, meio em couro para ganhar melanina contra o Sol escaldante do Solstício de Verão, símbolos da fecundidade e da fertilidade, com elas cresciam livres pela floresta cantando hinos de amor, reproduzindo-se sem interrupção até àquilo que somos e que em nós se eternizaram. Foi aqui que Tulga e Eulália, progenitores de Vamba, se apaixonaram. Foi aqui que Albour chorou, na hora da despedida. Aqui viveram felizes os Mouros que substituíram os Visigodos, que por sua vez substituíram os Suevos e estes os Romanos, que tinham aculturado os Celtas. Do Castro viemos, do Castro somos, ao Castro teremos que voltar.

Causa portanto algum pesar que grande parte dos seus descendentes nem suspeite a importância que aquilo ali em cima tem, não a valorize nem sinta aquela atração gravitacional, cortando assim a ligação umbilical com os Castrenses, impedindo com a sua indiferença que se sintam seus dignos sucessores e que os seus maiores entrem nas suas vidas com a sua rica história. Os mais jovens, por sua vez, habituados a núcleos urbanos e à Era Digital, pouco vocacionados para interação com o mundo natural e para o redescobrimento da sua herança cultural, também não contribuem com a sua vida virtual para o reencontro consigo mesmos e para a notoriedade deste lugar.

A solidão a que Castro foi votado parece estar porém a implorar que o resgatem com uma visita e o que vai encontrar num regresso às suas raízes profundas, ao berço da civilização, ao âmago dos concelhos de Chaves, de Oímbra, de Monterrei e de Verín, vai despertar-lhe a curiosidade, desenvolver-lhe-á o entendimento, criando com ele uma ligação, que nunca mais o deixará indiferente. Esta interação simbólica com a antiguidade faz toda a diferença. Quem sabe se num dos labirintos, não descobrirá um buraco do verme, que o projete no futuro ou o fará viajar ao início do tempo, em que o Xamã, na hora dourada abençoava o território para dar início à construção do Castro. Se o grande druida Whitman cá tivesse subido, tivesse sentido toda esta energia, tivesse visto a beleza das folhas desta erva, com certeza que cantaria a canção para si mesmo, algo assim do género: “porque cada átomo que te pertence lhes pertenceu a eles, porque tu e eles sois a mesma coisa.”

É que a história ancestral só voltará a ganhar vida se a tornarem real. Reconheça-se com uma saída, faça o mínimo aceitável para honrar os seus antepassados, respeite-os, celebre-os, cante-os lá em cima, acenda um fogo de Prometeu para outros. Aceite o desafio, ouse, faça uma escalada, desate com uma subida o nó da sua essência cultural, perca-se e ache-se a si mesmo neste misterioso lugar, sentindo-se mais seguro, apoiado nas suas raízes, em vez de ficar a dever a si próprio uma visita à Colina Sagrada, ao lugar construído pelos seus avós, inclinados para a espiritualidade, para o assombro e para o perigo, símbolos das gerações vindouras que engendraram, como única forma de sequenciar o seu genoma cultural, até aos fundadores do esquecido, imemorial e legendário Castro de Vamba.  

E quando der consigo sentado numa fraga, inalando ar puro, sentindo aquela força inspiradora, com a sensação que está dando um salto gigante até ao presente imóvel, ao Infinito, interpretando no lamento das fragas o réquiem do sangue derramado, sentindo com ternura e gratidão o que os seus antepassados aqui fizeram, então sim, terá magicamente reconquistado o Paraíso Perdido, a redenção, porque terá também reencontrado o seu espírito castrense.

O Nueiba, dezembro de 2014

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