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Nueiba: Histórias Rudimentares



A Maldição de São Tiago

(Reconstituição livre de uma história verídica com diálogos ficcionais)

Los científicos dicen que estamos

hechos de átomos pero a mí un

pajarito me contó que estamos

hechos de historias…

Eduardo Galeano

Era o primeiro de abril e ninguém acreditava. Chegavam ecos do lado de lá da fronteira que a Guerra Civil Espanhola, a guerra da perdição e do crime, de que ninguém guardava boas memórias – um milhão de mortos, outros tantos exilados – tinha acabado. Era uma época difícil, com um desfecho que só estimulava a fúria de Hitler e de Mussolini.

Com o fim de La Segunda República, El Generalíssimo chegava ao poder, último bastião do eixo ítalo-germânico, onde as armas da Segunda Guerra Mundial, via Lisboa, vinham sendo testadas. Uma boa parte do Alzamiento Franquista e a sua organização tinham-se desenvolvido em Portugal e a ajuda alemã aos nacionalistas havia sido introduzida através da capital portuguesa, com Salazar a ocupar-se pessoalmente do assunto: tudo tinha de correr com a precisão de um relógio suíço. Aparecia, assim, um aliado insubstituível para o Estado Novo, com grandes mudanças sociais na dinâmica cultural da fronteira.

 A escassez de alimentos em Espanha tinha atirado o contrabando para o seu maior esplendor. Os moinhos espanhóis vinham sendo abandonados e a fome fazia a farinha ultrapassar o tabaco, só superado pelo café, como mercadoria mais contrabandeada depois da Segunda Guerra Mundial. As medidas contra o contrabando endureceram. Os contrabandistas eram estigmatizados, classificados de bandoleiros, salteadores e criminais, pois a repressão e o autoritarismo foram sempre o exercício preferido dos ditadores e das oligarquias.

 Apesar de ser uma atividade fora de lei – leis que eram facilmente contornadas por aqueles que tinham meios para o fazer – para os residentes da raia, o negócio do contrabando era, ao invés, um ofício tão digno como qualquer outro. Uma forma de vida genuína, que, por cá, a fronteira não passava de uma linha imaginária, se bem que aqui e ali se vislumbrasse um pequeno marco, em forma de paralelepípedo, com um P gravado numa das faces e um E noutra. As fortes ligações familiares e de amizade entre os dois povos impediam que se considerassem estrangeiros uns aos outros. A Galiza era uma espécie de província portuguesa e Portugal, para os galegos, não passava de ser a parte sul da Gran-Gallaecia. E, se havia uma boa altura para os irmãos do lado de cá da raia passarem das palavras aos atos, era agora, quando os de lá mais precisavam. Aqui a gratidão continuava a ser o que era.

O incremento do negócio como meio de subsistência era uma reação contra políticas fiscais asfixiantes; o aumento exorbitante de preços colocava agentes e contrabandistas em permanente conflito, não fossem os acordos tácitos, conexões subtis, entre as duas partes, pois a nenhuma delas convinha que a atividade diminuísse. Os subornos aos guardas-fiscais e aos carabineiros eram o pão nosso de cada dia. Alguns dos agentes, mesmo não recebendo nada em troca, fechavam os olhos, pois, nessa altura, entre os irmaus galegos havia fome, muita fome e eles tinham acima de tudo que sobreviver.

A maldita da guerra dava assim, por incrível que parecesse, um valor social acrescentado ao contrabando. Muitos galegos vinham buscar as mercadorias a Portugal, doações do povo de Vilarelho para os seus vizinhos desnutridos, criando um drama existencial ao mais rigoroso dos agentes: olhar para o lado ou deixar uma barriga vazia por mais um dia? Alguns fardos eram passados gratuitamente por contrabandistas portugueses que levavam um saco às costas como se fossem levar assistência a uma zona atingida pela miséria. Nesta nova dinâmica que as circunstâncias impunham, uma atividade fora de lei acabava por ajudar a combater a fome dos vecinos, aliviando-lhes ao mesmo tempo aquele isolamento anti-humano exasperante que a guerra lhes tinha provocado. De forma direta ou indireta, quase todos, na aldeia, estavam envolvidos no negócio.

 – Nem mesmo o São Tiago se pode queixar, pois beneficia com as nossas promessas – defendiam-se os contrabandistas.

E quem os poderia censurar? Em abono da verdade, a atividade, por ilícita que fosse, acabava por baixar o preço de produtos essenciais, aumentados pelos custos abusivos, pela burocracia e pelos transportes, beneficiando mais do que prejudicava os estados. Tudo isto sem comprometer a dignidade dos passadores.

Do outro lado da fronteira, a relação com os agentes não era muito diferente. Alguns carabineiros vendiam as mercadorias apreendidas e eram também eles passadores, desprestigiando com estes atos impunes a sua profissão. Não era invulgar ver-se os familiares destas autoridades vestidos com roupas e calçados tirados aos contrabandistas. Mas, mesmo numa profissão considerada um mal necessário, íman para personalidades autoritárias, havia também agentes que viviam segundo os cânones da sua profissão, outros com bom coração que, ante o desconforto emocional, quebravam as regras da ética com que tinham sido empossados – algo perigoso com o advento do franquismo – agindo segundo os ditames da sua consciência. Deixar que um irmau quebrasse o jejum de dias estava acima do seu juramento. A radicalização dos agentes numa época tão precária de alimentos e má nutrição só conseguiria fazer com que os galegos morressem à fome e os portugueses apenas sobrevivessem.

O Contrabandista era assim um herói popular, uma extensão do atleta olímpico.

 Homens e mulheres solidárias, sem medo de caminharem sozinhos no escuro, abandonados a si mesmos, jogando a vida toda a santa noite por precipícios tenebrosos, comendo o pão que o Diabo amassou, à chuva e ao frio, excelentes e leais companheiros, admirados na comunidade como o Guarda e o Carabineiro, nas suas posições privilegiadas, menos expostos à dignidade do perigo, bem armados com pistolas e sabres, nunca conseguiriam vir a ser.

O Coello

Uns meses volvidos, e ainda de forma furtiva, El Rojo de San Cibrao voltava a aparecer de noite por Vilarelho, onde estivera escondido.

Na sua grande epopeia, Luís González tinha-se negado a entrar no exército franquista e El Caudillo, recém-chegado ao poder, não perdeu tempo com o ajuste de contas. Capturado para ser fuzilado, ia numa daquelas fatídicas passeatas, a caminho da morte, quando se atirou da carrinha abaixo. Correu como uma lebre monte adentro e o sucesso daquela fuga épica tinha-lhe valido a vida e o epíteto de O Coello.

Agora a monte, condenado à condição de errante pela fronteira, vivera escondido em casa do Ruivo, amigos de longa data, parceiros na Telheira do Boial – era El Rojo quem lhe arranjava compradores galegos para a telha – mas, quando La Brigadilla lhe apertou o cerco, entrando lameiro acima, para vigiar a casa desde a eira, o Ruivo, consciente que O Fuxido corria perigo de vida, mandou preparar o criado. O próprio patrão reincidente estaria em maus lençóis, já tinha sido avisado para não dar mais guarida a fuxidos de Franco. Instruiu Manuel a levá-lo de noite, à pressa, para mais longe da raia, para a casa de uns parentes em Bustelo, donde o criado também era oriundo.

Na Franja Fronteiriça

Rodeado por um semicírculo de cinco aldeias galegas, desde o nascente ao poente: Rabal, Tamaguelos, São Cibrao, Oímbra e Casas dos Montes, Vilarelho era um eixo de referência do contrabando. Com uma franja raiana tão extensa quão difícil de patrulhar, Manuel aparecera em casa do lavrador atraído por El Dorado da fronteira.

Naqueles tempos agitados, de fazer inveja ao Wild West, com violência, mortes, assédio sexual, romance e sexo à mistura, os costumes eram tudo menos brandos. As noites eram mais longas que os dias. Era uma época turbulenta, regada com sangue. Alguns dos contrabandistas andavam também eles armados com pistolas, outros com navalhas sevilhanas, outros traziam ainda bengalas que desembainhavam espadachins no interior de uma cana oca.

Como se isso não fosse suficiente, naquele vulcão efervescente ninguém podia viver feliz à margem do sofrimento dos vizinhos – que os seus irmaus do lado de lá do marco andavam mais tristes que a noite.

Toda esta situação transformava a região num microcosmos da Península, uma terra com um futuro sombrio, que viria a ser testemunhado pela geração vindoura, escapando-se para o estrangeiro, uns para a França outros para as Américas.

Em tempos de repressão, era a atividade fora de lei que ia dando vida àquelas aldeias, de outra forma esquecidas nos confins de um país fora do tempo, voltado para um nacionalismo confrangedor, avesso ao progresso e à modernização, cujas repercussões o iriam isolar cada vez mais do mundo.

Um Oásis de Alegria

O calor dos fins de junho já apertava, o sol declinava. Na rudeza do ambiente, num deserto entristecido pelas circunstâncias, apareciam aqui e ali, por contraste, uns oásis de alegria.

Os segadores de Castelões, homens valentes, com graça transbordante, regressavam da ceifa ao povoado, soltando pelo caminho as suas sonoras e românticas canções. Com a tez de pele e os cabelos mais claros que apareciam pela fronteira, tinham a peculiaridade de afrontar o sistema, colocando à frente do rancho uma mulher como capataz, a Rosa Carneira – regressada de New Haven durante a Grande Depressão – e mesmo os mais másculos a aceitavam sem reticências, uma vez que, em destreza mental, agilidade e até força braçal, batia toda a concorrência. Só lhe faltava mesmo aparecer de tronco nu para representar a Efígie da República. Com o ramo na frente do rancho e o crepúsculo atrás deles, entravam triunfantes no Cruzeiro com o garrafão, os restos do pão e do presunto, para cear em casa do Zé Dias, parente do Ruivo, e propunham-se deixar, para quem os quisesse ouvir, a sua marca na aldeia até ao ano seguinte:

Mocidade de Castelões

Abençoada sejais

Vós sois a que dais o risco

Onde quera que chegais

 

Neste povo há muitas rosas

Todas vivas nas roseiras

Mas as rosas mais bonitas

São as raparigas solteiras

 

Os de Soutelinho não faziam a coisa por menos, até conseguiam fazer trocadilhos com o nome da sua povoação. Já se ouviam em Santa Catarina, dando três voltas ao redor da capelinha, Padroeira dos Ceifeiros, com o seu cantar mais sentido, empunhando bem alto um ramo de castanheiro enfeitado com rosas.

– Fazem chorar as raparigas! – diziam uns.

 Outros logo retorquiam:

 – Fazem chorar até as pedras!   

No dia da despedida, vinham todos do Cruzeiro para a frente da casa do Ruivo ouvi-los cantar:

Das terras de Soutelinho

Trai-la-rai-la-rai-la-rai

Vieram estes ceifeiros

Adeus Vilarelho, adeus

Meus fiéis companheiros

 

Entrega o ramo ao patrão

Trai-la-rai-la-rai-la-rai

Seguró bem que não caia

Que ou sou tolinho, tolinho

Por Soutelinho da Raia…

 

Santa C’atrina bendita

Trai-la-rai-la-rai-la-rai

Padroeira dos ceifeiros

Adeus terra santa, adeus

Meus fiéis companheiros

 

Levo a camisa roxa

Trai-la-rai-la-rai-la-rai

Do sangue dum camarada

Adeus raparigas, adeus

Sê-me fiel minha amada…

(em desenvolvimento)

O Nueiba, fevereiro de 2015

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