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Crónicas


Nueiba: Histórias Rudimentares



Quadrilheiro: O Arquétipo

(A Maldição de São Tiago III)

Quem pretende chegar a um sítio determinado, empreenda um só caminho e deixe de apalpar muitos a um tempo, pois este último

não é avançar senão vagar.

Séneca

Desde os alvores da nacionalidade que o mistério fora sempre passar além da raia, da dor e do equador. E, desde então, nunca houvera na fronteira contrabandista como o arquétipo dos quadrilheiros. Passador profissional, a tempo inteiro, fazia do contrabando – ao invés dos companheiros – o seu único ganha-pão, sobrevivendo, à margem da lei, acima dos cânones alfandegários.

Conhecia a atividade como a palma da sua mão e isso permitia-lhe contornar as situações mais difíceis, as mais delicadas, em momentos de grande aperto. Os que tiveram a felicidade de o conhecer relembram-no ainda como o mestre emérito da profissão.

 De uma pobreza honrada e decente, leiras não tinha e mesmo que as tivesse não lhe dariam a liberdade que o trelo lhe dava, caminho palmilhado e, que se saiba, só uma vez se arrependeu. Não estava necessariamente orgulhoso do projeto de vida que o destino, sem o consultar, lhe guardara, mas também não tinha vergonha do que fazia, transgredindo aquela linha postiça, que, segundo ele, só atrapalhava a vida da gente, escandalizando, com a sua veia anarquizante, os guarda-fronteiras.

Tinha por costume levantar o braço à Cervantes, não se sabe se para beijar a pulseira de São Tiago, como talismã, ou se para exibir o troféu do seu Lepanto.

As dificuldades, essas, estavam inscritas no corpo, marcado por um número infinito de bengaladas, dores esquecidas, superior às que o burro recebia do moleiro Gironda. As rugas das preocupações e as cicatrizes que nunca desapareceram mostravam bem os ossos do seu ofício. Foi preso várias vezes, mas acabava sempre solto. Atribuíram-lhe o epíteto: o Guerreiro do Contrabando pela sua coragem, determinação e capacidade de sofrimento. É que no meio que o rodeava sempre aquilo se fizera. Naquele mundo ao contrário, onde para viver tinha que se fugir, o coração formou-se-lhe com fardo às costas, a correr entre a compaixão pelos necessitados e a dignidade do perigo. O contrabando corria-lhe nas veias e era aí que procurava o propósito e a direção da sua vida. Trazia as respostas na ponta da língua para quem dissesse que o seu ganha-pão provinha de um universo impuro, subversivo, clandestino ao sistema de valores vigente.

– As regras aduaneiras podem ter a sua verdade, mas não a verdade toda.

Pelo menos, em parte, tinha razão. Embora a atividade fosse uma tarefa fora de lei, naquela época conturbada as circunstâncias do tempo tinham-lhe adicionado uma dimensão humana, a mais nobre das suas missões, motivada pela empatia que sentia pelos irmaus agonizantes, ante a pestilência e a fome, sensível e solidário com aqueles espoliados da guerra, escondidos pelos montes, sem nada onde trincar dente, mostrar-lhes com ações resgatadoras que ainda tinham alguém do seu lado. Sentia que “quando um contrabandista passava aquela linha imaginária, que não deixava de ser uma questão de fé, nem faltaria quem pensasse ser apenas uma superstição, símbolo da cultura dominante, para matar a fome a um irmau, no meio daquele sofrimento fratricida, nunca poderia estar errado.”

– Ninguém tem o direito de criticar o que eu faço. – dizia a sua veia libertária às cassandras agoirentas que ousassem pôr em causa a sua atividade, marca do seu livre arbítrio, a que nenhum homem é imaculado.

– Aquele que estiver livre de culpa, que atire a primeira pedra.

Era o instinto de sobrevivência a falar.

– Se não fosse por isto, como é que iriamos viver?

Desde muito novo que ele se dedicara ao ofício do pega e foge –“liberdade de comércio acima de tudo” – mais tarde engajou a família e, agora, para fazer frente a uma mudança radical na fronteira, que La Guerra Civil tinha imposto, procurava uma fórmula mágica, antes que ao negócio, em pré-falência, lhe saíssem literalmente os carabineiros, que a aventura se tinha transformado, subitamente perigosa, muito perigosa, com perdas de fardos sem precedentes. A bancarrota dos donos da mercadoria estava ali ao voltar da esquina e, por inerência, a sua própria existência. O futuro não pressagiava nada de bom. Sentia-se um prisioneiro, parecia que, num abrir e fechar de olhos, todos os guarda-fronteiras se tinham juntado para conspirar contra ele.

El Falangista

Em nenhuma outra altura o negócio sofrera mudanças tão drásticas, uma crise sem precedentes. À raia tinha chegado um personagem enigmático: duro, austero, mas pomposo, o C’rabineiro Negro, como viria a ser conhecido. Tinha a pele e o cabelo claros, de forma que a alcunha reclamava várias interpretações. Uns diziam que o seu sobrenome poderia ter sido Prieto. Outros diziam que ele era um homem mistério, que tinha uma rede de carabineiros que faziam o seu trabalho sujo, enquanto ele se refugiava de forma velhaca no escuro. Outros ainda diziam que ele era o próprio símbolo das trevas.

Devido às ordens que trazia e ao seu caráter irascível, inspirava temor e ódio entre os passadores. Proveniente diretamente de La Falange, apareceu sorrateiramente para integrar, como infiltrado, as forças de La Guardia Civil que se tinham alinhado com La República, apostado em provar que a fúria infernal, centralizadora, uma espécie de contra reforma absolutista, fora de tempo, era válida também para a fronteira, mesmo se à custa de culturas milenares regionais, las patrias chicas da amizade e da dignidade humana.

Mal chegou, não demorou em transformar-se numa barreira intransponível para os passadores graças ao fator utilizado: o medo, um claustro do inferno, numa fronteira subitamente devoradora.

 – A raia nunca esteve tão violenta. – diziam os passadores assustados.

Temido, maquiavélico e insensível às necessidades dos outros, naquela época cruel, alicerçado num sentimento de importância superior a tudo que o rodeava, tinha sido enviado para virar a cabeça dos guarda-fronteiras, assentando-lhe bem a outra alcunha que lhe puseram: o Pescoço, pois conseguia virar quase todas as cabeças à sua volta.

Com ele não viera um pingo de humanidade e, infelizmente, como a desgraça não vinha só, arrastava consigo, sob um manto diáfano, os agentes secretos de La Brigadilla e ainda um Segundo Falangista. Principal objetivo: impedir que os alimentos que cruzavam a raia fossem parar às guerrilhas antifranquistas, que se formavam pelos montes, assim como manter, dentro do possível, aquele corredor da fronteira isolado de Verín no período decisivo dos fins de La Guerra Civil.

Com os estratagemas trazidos de La Falange, era impressionante a quantidade de fardos subitamente aprisionados. Liderava o seu grupo com rigor e eficácia. Os seus subordinados atacavam em alcateia, começavam a disparar, os contrabandistas abandonavam os fardos espavoridos e seguia-se a pilhagem.

Os Bodes Expiatórios

As últimas perdas tinham sido a gota de água. Os donos da mercadoria andavam furiosos, desesperados mesmo, com os prejuízos e os passadores, “aqueles mariquinhas eram os culpados”, indiferentes às dificuldades a que estes estavam sujeitos, noites a fio sem dormir, com a barriga a dar horas, moídos de bengaladas.

– Como é possível que vos deixeis agarrar por esses filhos da puta de forma tão inglória?

Todos andavam revoltados, não sabiam o que fazer.

– Que grande lata têm estes cabrões de merda! Apresentarem-se aqui outra vez sem a tega! Se não arranjam uma solução para Los Falangistas, o contrabando deixará de existir!

O descontentamento subia de tom:

– Perderam os fardos outra vez? Só podem estar a gozar. Há que responsabilizá-los, fazê-los pagar por eles!

O Quadrilheiro foi bater a outra porta e cedo entendeu que estes senhores do contrabando, mais ponderados, ao contrário dos anteriores, estavam ali não para o repreenderem, mas para estudar o caso, encontrarem uma solução, em conjunto.

– Tu é que és o profissional. Fala com os entendidos, que te deem soluções. Não haverá por aí maneiras ainda não divulgadas de fugir aos carabineiros?

Ante um Quadrilheiro pensativo, vinha outra recomendação:

 – Faz uma espécie de pelotão da tropa. Organiza-o, treina-o bem. Faz suar as estopinhas aos passadores, que eles devem andar folgados com tantas costas sem fardo.

 As sugestões até lhe pareceram interessantes. Mas como ele, ante a vergonha a que tinha sido exposto, se mantivera em sepulcral silêncio, foram eles que acabaram por exortá-lo, agora num tom mais paternalista:

 – Não podes baixar os braços, homem, cair-te-á o fardo ao chão. Confiamos em ti! E, se La Guardia Civil anda infestada de falangistas, fala tu com os seus inimigos, alguém das guerrilhas republicanas, que não faltará por aí galego que não queira dar-te uma mão.

 Era na verdade a pior época da sua vida. A nascente do seu ganha– pão estava a ponto de secar. Só não foi para o Brasil porque não podia deixar a família ao Deus dará. Não se vislumbrava solução à vista. Mas ficava agora um pouco mais otimista com o que ouvira, contemplando o futuro com alguma esperança.

– Fala com os que andaram na Guerra de Catorze, que te ensinem uns truques que aprenderam lá pelas Franças! Desenrasca-te, homem, antes de ficarmos todos arruinados!

 A ideia que lhe andava a dar voltas à cabeça, já havia um tempo, era agora replicada pelos senhores do contrabando, apenas as palavras eram diferentes. Precisava de passar dos pensamentos aos atos. “E se formasse uma equipa, ideia peregrina, que atuaria num patamar diferente, com maior exigência que o contrabando tradicional, duas atividades paralelas separadas?” Poderia, assim, contrabandear em duas frentes que conviveriam esplendidamente. Sem nada tirar à antiga, os passadores teriam que habituar-se a uma nova exigência. Uma espécie de força especial. Durante o dia, no contrabando tradicional; à noite, no contrabando titular. A quem tanto agradava a diversidade da vida, seria o melhor comprovativo da evolução.

O Trabalho de Casa

Para manter a profissão viva, era preciso revolucionar o processo de forma capaz de mobilizar a excelência, reinventá-lo, com uma abordagem diferente, uma nova estratégia em que os contrabandistas estivessem tão bem ou melhor preparados que os guarda-fronteiras “ ou o contrabando não passaria de uma atividade de entrega do ouro ao bandido, com os passadores espancados até à morte por esses montes fora.” A reação teria que ser necessariamente a mais criativa possível.

O Quadrilheiro pôs-se a estudar o assunto. Fez o trabalho de casa. Com todos falou, a todos ouviu, recebendo conselhos de quem lhos quis dar. Fez todas as perguntas que o inquietavam, recopilou o que podia, em busca das origens e dos segredos mais bem guardados do contrabando. E a coisa começava a ficar cada vez mais aliciante.

Depois de muitas conversas e discussões, deram-lhe uma sugestão que ele não podia recusar. Pelo refrão parecia até ter vindo dos regressados da América Latina, mas pelo seu conteúdo era óbvio que tinha vindo dos retornados da América Anglo-Saxónica:

– Porca miséria! Faz como a Máfia, que conseguia contrabandear o álcool em tempos de lei seca. Nunca ouviste falar do badalado massacre do Dia de São Valentim?

Depois mais a sério:

– Lá diz o refrão: Quem muito abarca pouco aperta. Especializa-te, forma uma milícia, cria um bando sólido, uma confraria, uma irmandade do contrabando, escolhe só os bravos que tenham estofo para a tarefa, assim podereis proteger-vos uns aos outros, com costas largas para oferecer os serviços a quem paga mais.

“Ora aqui está uma ideia excelente” – pensou. Aí estava o germe de uma nova fórmula que permitiria a sobrevivência da atividade.

– Mas para ganhares a corrida, Guerreiro do Contrabando, vais ter que preparar-te para cruzar a fronteira como um Cruzado durante o dia, e, à noite, como um Templário. E, então, sim…contrabando here I come!

 O Quadrilheiro ganhava uma segunda vida, um conhecimento mais profundo sobre a atividade. Não era como Séneca, um filósofo, mas um homem de ação. Ainda assim o projeto deu-lhe que pensar.

Passou noites inteiras conversando com o travesseiro sobre o assunto. Parou, ponderou e, depois de conseguir juntar todas as peças do puzzle, teve um momento eureka “ – já está!”, o plano aparecia completo na sua cabeça. Tinha decifrado o enigma. Adicionaria apenas vínculos de fidelidade entre o capataz e os restantes membros, assim como pessoalmente entre eles, uns com os outros. Tudo teria que ficar codificado, pois todo o grupo que se preze tem que criar os seus mitos e os seus rituais tão misteriosos quão aglutinadores, que façam sonhar os seus membros. Era uma forma avançada de organizar as coisas.

 “Se esta aposta não der certo, então, só me resta ir buscar uma corda e correr para o cano da oliveira mais próxima!”

O Horizonte Perdido

A sua hipótese estava pronta para ser testada. Apresentou-se diante dos donos da mercadoria com a nova proposta, que reabria a possibilidade da atividade se manter viva. Fez o que pôde para convencê-los:

– O contrabando não pode ser mais passado de uma forma indisciplinada. – disse-lhes. – Vou formar uma quadrilha. Passarei a mercadoria a um preço um pouco mais elevado, mas em contrapartida dividirei o prejuízo dos fardos perdidos entre a quadrilha e os donos da mercadoria. Em vez de contratarem os passadores individualmente, contratam agora a quadrilha.

Enquanto os donos da mercadoria avaliavam o novo projeto, ele esperava, impacientemente. A ansiedade ia mexendo com todos os cordelinhos do seu corpo. Mas a solução, que já tinha causado burburinhos entre os passadores convencionais, deixou também desconfiados os senhores do contrabando, habituados que estavam a controlar os desígnios dos passadores. O diálogo tornou-se tenso e a resposta não era a que esperava. Para um ambiente conservador, o novo método parecia revolucionário de mais e a resposta chegou num tom sério e desabrido:

– Impossível! O projeto vai alterar tradições seculares, mexer com hábitos antigos.

Desiludido, apresentou-se ante um segundo grupo. Quando tudo podia correr terrivelmente mal, corria. Era a lei de Peter. A resposta não foi muito diferente:

– Nem pensar!

Passou-lhe então pela cabeça que o contrabando estaria de despedida, um ofício em vias de extinção, ora isso pressupunha uma viragem na sua vida, que dificilmente conseguiria tolerar. Como iria sobreviver? Estava a ponto de desesperar, na sua cabeça já dava a missão por finda.

Revoltado com o rumo dos acontecimentos, renunciou ao que mais amava, maldisse a hora em que o destino lhe escolhera aquele estuporado ganha-pão. Num momento fatalista, entre a paixão pela vida e a morte, apenas um sinal de esperança impediu que o fantasma do suicídio voltasse a pairar sobre a sua cabeça.

Eis que então resolveu fazer a proposta por uma derradeira vez à última das companhias. Promoveu o projeto o melhor que sabia, enfatizando como trunfo a necessidade que a quadrilha tinha de organizar-se para não ter prejuízo, pois, no sistema vigente, com os passadores mais desalinhados que um “rancho de vagabundos”, não havia oportunidade de se treinarem para a dura tarefa, nem os passadores poderiam, de forma alguma, dominar todas as técnicas de uma atividade tão exigente.

– É aí que entra na corrida o contrabando titular. – rematou.

Sentado no banco de entrada da casa – os donos da mercadoria tinham ido para dentro debater o novo modelo – mais parecia um paciente no sofá do psiquiatra. Esperava, preocupado, em silêncio. Passavam-lhe pela cabeça os pensamentos mais estranhos “sou um desocupado, um inválido, não valho nada!” Estava pálido. Ao ver-se num espelho pendurado na parede, não se reconheceu no que se tinha subitamente transformado. Os donos da mercadoria tinham desaparecido e nunca mais voltavam com a resposta. Cada momento era uma eternidade alongada nas leis do relativismo. Remoía a sua angústia em privado, imaginando já o rotundo não, como acontecera em casos anteriores, que o destino passa indiferente a quem o vê passar desesperado sem nada poder fazer.

Como os donos do contrabando demorassem a aparecer, e com certeza que não apareceriam, não aguentou. Entrou em delírio, aterrorizado pela sua incapacidade de seguir adiante, insuficiência humana, limitações que nunca poderia admitir ante os contrabandistas, por força do seu prestígio, incapaz de enfrentar aquele destino cruel, drama shakespeariano, tentação das tentações, rebeldia suicida na grande jornada da vida, quadrilheiro das ilusões desiludido, Cristo de bengaladas martirizado, que a morte o perseguia como uma sombra.

Entre abalos e vacilações, tinha-se esgotado o tempo. Sem outra saída, tomou uma decisão temerária. Saiu e foi buscar a corda. Correu para a oliveira, no fundo da eira do Ruivo, para pôr termo finalmente àquela angústia, que o apocalipse estava ali mesmo ao voltar da esquina. Até um mocho agoirento, noturno, se apresentou nos olmos, antes do fim do crepúsculo, para cantar a brevidade da vida. Beijou a sua pulseira talismã, ajoelhou-se e encomendou-se a São Tiago. Subiu para cima da parede, inclinou-se para a frente, atou uma ponta da corda ao galho da árvore, enfiou a cabeça no laço, na outra ponta, e atirou-se da parede abaixo.

O corpo balançava suspenso, contorcido em agonia, sentia-se subitamente desligado dele, como se estivesse a olhá-lo desde cima. Teve uma sensação de serenidade. Todos os tempos estavam vivos: o presente, o passado e o futuro. Entrou numa gruta escura. A sua vida de contrabandista passava inteira diante de si num só momento. Viu, por fim, uma luz. Ao fundo, estava a espada de fogo de São Tiago...

(em desenvolvimento)

O Nueiba, maio de 2015

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