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Crónicas


Nueiba: Histórias Rudimentares



As Verdadeiras Terras de São Tiago

(A Maldição de São Tiago V)

A verdade absoluta, Senhor, conserva-a para ti, pois todo o absoluto está feito para os deuses. A mim, dá-me a eterna aspiração à verdade, pois nela está a dignidade humana.

Lessing

Puxado pelo teor da conversa das beatas, entrou na discussão o Filósofo. Metediço na faena dos livros, tinha uma curiosidade mítica e uma imaginação visionária, conseguindo aproximar cenas dispersas sem perca de resolução. Desde Leiria a Roma, passando por Tui, todos lhe reconheciam a erudição. Empenhado em fazer valer que as culturas semitas faziam também parte da identidade cultural do povoado, estudava, a espaços perdidos, civilizações periféricas, pedras que falavam das vivências dos mouros, que aqui teriam vivido na sua glória, nos montes históricos da Alvorinha e de Vamba. Essa atração pelo que acontecia fora do centro, nas bordas da sociedade – de ser ele próprio em vez do que os outros queriam que fosse – tinha-o levado a uma altercação com os superiores do colégio por estudar “coisas que entorpeciam a cabeça.”

– É uma espécie de biblioteca ambulante, aliando aos seus conhecimentos o talento natural para explicar as coisas – dizia um seu colega do colégio, o Marista. – Tem uns olhos que veem muito longe. Parece mesmo ter vindo do futuro, se calhar do mesmo lugar donde veio o meteorito.

De inquestionável alma nativa, entranhado de amor e dedicação à causa santiaguense, o Filósofo era muitas vezes convidado para iluminar, em volta da fogueira, os lendários serões frios do Bairro do Barreiro e do Alambique da Eira, com a sua sabedoria, amor ao conhecimento e lucidez. Dele, ainda adiantava o seu colega:

– Ninguém no povoado chegou tão próximo de desvendar os grandes mistérios desta terra. Está um século à nossa frente! 

O Filósofo foi objetivo e direto ao assunto, não poupando nas palavras, com os seus sedutores diálogos mais longos do que os de Shakespeare, mas não antes de deixar bem claro que sentia uma mágoa por o considerarem o mais sábio da povoação, epíteto que ele rejeitava por não se considerar acima de ninguém:

– São Tiago, que sempre teve para nós algo de sonho, apareceu aqui, segundo a história, tradição ou lenda. As lendas têm sempre algo de história e a história muito de lendas – um arqueólogo ou um historiador encontra um ossinho ou um pergaminho e confabula aquilo até à Telheira. São Tiago apareceu na Fraga que leva o seu nome, no Castro de Vamba! E isto supera tudo o que dele se disse, anteriormente. Em vez de andar por aí esquecido, devia ser um caso de estudo nacional, pois o Apóstolo veio para reconquistar as nossas terras aos mouros de Alvorinha, este também um herói, um poeta, o auto proclamando Cisne Moreno, outro dos símbolos mais icónicos da nossa história. Nenhum outro váli governou nas redondezas por tanto tempo, numa pequena ilha mourisca em pleno oceano cristão. Ademais este mouro é bem dos nossos porque já aqui nasceu.

– Meu Deus, isto não pode ser real! – diz uma das mulheres –   Mataram dois bispos em Braga por menos que isto. Por terem dito que o santo tinha aparecido por lá. 

Mas ele não se intimidou:

– Pois, pois… São Tiago não apareceu em Braga, já em Compostela apareceram apenas os ossos , 60 anos após o seu cavalo branco ter rompido os céus e pousado  no dito rochedo. Estas duas versões podem conviver entrelaçadas, sem se excluírem mutuamente, pois são antes um complemento. Já a outra, não. É considerada uma heresia, mas que ainda assim fascina os doutos não só pela sua erudição, mas sobretudo pela sua vitalidade.

– Desembucha lá, rapaz, o que tens para nos contar! – diz uma das beatas.

– Segundo alguns especialistas, os ossos não seriam os de São Tiago, mas os de Prisciliano, o herege, decapitado! Verdade ou ficção, o certo, certo, é que ele apareceu aqui primeiro, transformando esta região no arquétipo das terras de São Tiago. Aliás, aí estão petrificadas as patas do cavalo branco gravadas, as relíquias, na Fraga, o mais conhecido testemunho da sua aparição. Quem subir ao Castro de Vamba e vá ver as ferraduras, não passará sem lá voltar! É um fenómeno digno de ver-se, um sonho de poeta.

– Virgem Maria puríssima! – diz a beata-mor. – Será que estou a ouvir bem? Isto é um mau presságio, mau demais para ser verdade. Se te continuo a dar ouvidos ainda perturbo o meu espírito. Não entendo como o padre pode gostar tanto de ti, com essa doutrina de Satanás! E já agora, porque não se fala mais disso, então? – perguntou a mulher, ainda tomada de surpresa.

– Não se fala por causa da intolerância social e religiosa, das memórias reprimidas durante anos e anos a fio e, se calhar, também pelo que aconteceu aos bispos em Braga.

– Como assim? – repostou a beata ofendida.

– Segundo a profecia mourisca, São Tiago teria entrado aqui sob o signo da maldição. Diziam que um dia viria a ser esquecido pela sua própria gente. Então do seu sábio rival, Alvorinha, um muladi (filho de um mouro engendrado de mulher cristã),  nada se sabe, para além de ter legado o nome à montanha, a sul do Castro de Vamba. Tiago tinha sido alvo de uma praga que os mouros lhe rogaram por ter entrado durante a época do Ramadão, altura em que estes enfraquecidos pelos seus rigores alimentares foram por cima apanhados de surpresa enquanto rezavam. Mas eu não quero entrar por aí, já tive problemas no colégio por ter contado isso por lá. Tudo aqui acontece porque não pode acontecer em mais lado nenhum, na Terra da Ingratidão. Um dia teremos que quebrar esse feitiço.

O Lamento de Alvorinha

De facto, do váli poeta ninguém falava. O preconceito deixara -o cair lentamente no esquecimento, durante séculos e séculos e, para cúmulo, com a chegada da Inquisição, o acontecimento virou um verdadeiro tabu, mesmo entre os cristãos novos, agora tão escondidos durante o Estado Novo, como estiveram nos tempos mais cruéis do Santo Ofício, os únicos que guardavam estes segredos. A destruição dos vestígios foi lenta, mas quase completa. Quase tudo o que dele perdurara viria a ser recuperado e cantado, mais tarde, por um popular, Cipriano Facha, que se sentiu na obrigação de passar a palavra, numa pobre cantiga intitulada O Lamento de Alvorinha.

Quando Cipriano a cantou, sabia que era das poucas memórias vivas daquele váli poeta, o último mensageiro, e isso comprometia-o, incumbido por intuição de guardar aquela memória para que o segredo não se perdesse para sempre. O despretensioso poema era a revelação de uma civilização que também, goste-se ou não, faz parte da identidade desta terra (estudos recentes da American Journal of Human Genetics revelam que 20% da população da fronteira de Portugal e na Galiza tem ascendência norte africana, com uma igual percentagem de judeus sefarditas).

Uma simples cantiga encapotada explicava o mistério que nos inicia no estudo da infinita e complexa Vilaiete, nome mouro destas terras, prescindindo dentro do possível do julgamento religioso e ideológico, em homenagem a um muladi sem preconceitos, não fosse ele portador dos genes dos três povos, ademais casado com uma cristã, resgatando assim a história perdida, a partir de contos veiculados pelo Filósofo nos famosos serões do Alambique da Eira.

 É, aliás, pela própria boca de Alvorinha que sabemos do aparecimento de SãoTiago na batalha do Chão da Guerra, o que provoca uma rutura na ordem mourisca que prevalecera durante meio século. O muladi desaparece na contenda, perde tudo o que construiu, incluindo a família, de uma forma trágica, comovente e angustiante. Faz-nos sentir, na sua luta contra um santo, a impotência, a luta inglória contra o real, contra o destino, mostrando-nos o desespero, a ausência antecipada, desejo ardente e melancólico da poesia árabe, das kharjas, a génese da saudade, segundo os arabistas, fundida num contexto de cantar de gesta. É um recalque de todas as despedidas, os paraísos perdidos dos nossos dias, a ilusão e os sonhos, acabando por ser a homenagem possível a um herói esquecido, imortalizado para a posterioridade, com ideal elevado, que a letra ainda é a coisa mais perdurável de toda as coisas perduráveis do nosso mutante universo:

Adeus Chão da Guerra p’rá sempre sozinho
Pinheiros, giestas em amarelo esplendor
Meandros sustento do eterno moinho

Adeus figueiras, milhais, mimosas em flor

Alma angustiada, mouro desencantado

Em Vamba meu tesouro vou sepultar

As penas doloridas aos céus vão voar

Príncipe de tão efémero reinado

Calai rolas das madrugadas de verão

Rouxinol mil e uma noites d’amor e paixão

C’o Cisne Moreno não voltará a cantar

Meu nome Alvorinha lego em gratidão

Pousando vem São Tiago no monte irmão

Uma vida nova vai começar: Allahu Akbar ...

Era assim como os cristãos novos preservavam essas histórias, passando-as de geração em geração, com uma elevação dignificadora da diferença, mantida quase de uma forma sacramental, para que um dia tomássemos consciência de que também eles e os mouros faziam parte da nossa família, da nossa riqueza cultural. Pode inferir-se ainda pela narrativa, que Cipriano teria a sua talisca sefardita, pois estes eram os únicos que preservaram secretamente o que realmente teria acontecido aos vencidos da Reconquista.

Em termos cronológicos, a cantiga leva-nos para numa época em que se perdeu o último bastião mourisco da região, ali pelos anos de 765, depois de Cristo, altura em que o território de Vilaiete seria novamente cristianizado, agora com o nome de Terras de São Tiago. É um episódio inédito, a norte do Douro, uma pequena janela aberta para aquela época remota, tesouro escondido pela singularidade do acontecimento, tornando a história mais viva.

As duas mulheres ouviam e iam desaprovando com a cabeça:

         -Isto é uma blasfémia, a luta entre o bem e o mal – diz, finalmente, uma delas.

O Filósofo voltou ao assunto do esquecimento:

– Não se fala mais nisto para não ferir os interesses, não olharmos para o óbvio, com o nosso pontinho negro no mapa a aproveitar também alguma glória que Compostela merecidamente tem. Estas histórias não eram veiculadas ainda porque a Inquisição abafou o pouco que restava. Estes cristãos novos teriam, não sei, talvez alguma racha mourisca.

– Só faltava mesmo essa! Que queres dizer com isso, calmão (cripto-judeu, pejorativo)? – disse a beata-mor com um olhar altaneiro de superioridade.

– Olhem para a gente do povoado, as caras não enganam, os seus olhos furtivos, que nos deixam trémulos, deviam ser motivo de satisfação, e verão esses arrebatadores traços morenos, de tão bonitos e sensuais, que é uma vergonha ignorar. Deviam ser antes o nosso orgulho pela sua riqueza e diversidade. Abderramão, por exemplo, pintava o cabelo e a barba de negro para parecer mais atraente, mas o preconceito contra a tez da pele só acabará quando aparecerem líderes mundiais de pele morena. É uma insensatez da nossa parte porque quando alguém tem vergonha daquilo que é…o que podemos dizer…olhem para as caras das pessoas. Não podemos renegar aquilo que somos!

– Mas tu estás maluco ou quê, rapaz?! Estás a dizer que também temos esse sangue excomungado nas nossas santas veias, os genes desses infames que invadiram as nossas terras? – questionou, estupefacta,  a beata, mais ofendida que nunca.

– Bem, os mouros vieram para cá porque a linhagem do nosso rei Vamba, nascido na montanha que leva o seu nome, os foi chamar no seguimento da violação da encantadora Florinda, da sua linhagem, por Rodrigo, rei visigodo, de uma linhagem rival, quando ela tinha sido enviada para a corte como um símbolo de paz e boa vontade entre os dois clãs. Ponto final! E os judeus já cá estavam quando os cristãos aqui chegaram, mas não podemos entrar por aí. O preconceito contra os judeus só acabará quando houver um estado hebraico e os seus líderes comecem a expor as atrocidades contra eles cometidas. Parágrafo!

– Estou impressionada com as tuas satânicas profecias – diz a segunda beata, agora troçando – e mais tarde não haverá também uma Ciganalândia, um país para ciganos?

– Todos nos culpam por não reivindicarmos a nossa história, o mais doloroso dos deveres de cada cidadão desta terra. Passam pela aldeia os caminheiros para Santiago e não sobem lá cima para verem com os seus próprios olhos as pegadas, antes que desapareçam. Pelo contrário vão, ironia da história, a Compostela, sem passarem pelas origens. É como ir a Roma e não ver o Papa. Que ingratidão!

O Marista pediu então que o Filósofo falasse sobre a versão que dizia ser Compostela apenas uma reação a Córdova, teoria que lhe valera uma suspensão no colégio, tese em que ele não acreditava, apenas se tinha limitado a contar como um exemplo de perspetiva.

– Isto agora fica mais misterioso do que nunca! – diz uma das mulheres. A outra é que não gostou nada da conversa:

– Uma reação a Córdova? Isso é heresia, um pecado mortal! – disse a beata-mor, dispondo de todo um arsenal de verdades absolutas.

– Conta lá, então, isso, rapaz –  diz a outra mulher dessa gente tão feia, mascotes do Satanás!

– Não, não, não me atrevo, que ainda aparece por aí a secreta numa rusga de todo o tamanho que me põe a ver o sol aos quadradinhos.

– Uma anti Córdova? Estás a ir longe demais, apóstata, líder de seita.– protestou a beata-mor , visivelmente contrariada. – Eu não sei nada dessas pestilentas coisas que nos contas, sou uma pobre aldeã, apesar de ter vivido meia dúzia de anos no colégio. Não falo línguas modernas de gente fina: francês, italiano, inglês…nem sei filosofia alemã.

– Bah! – responde o Filósofo – também não é para tanto. A narrativa cordovesa insurge-se contra a forma como a história vem sendo contada. Segundo essa versão, e por estranha que pareça, a onda de caminhantes a Compostela não passaria de uma reação cristã inspirada nas peregrinações do hajj (viagem que os muçulmanos empreendem pelo menos uma vez na vida a Meca), ao então chamado Farol do Ocidente – respondeu de forma controversa, escondida pela corrente dominante, que divergia das convenções sociais e da retórica do dia a dia. – Em Vilaiete faziam-se pequenas peregrinações às milagrosas Águas da Facha, onde os pais de Alvorinha, Albarrania e Solange, se conheceram e casaram. Depois de chegados, os caminhantes replicavam o seu ritual do amor, provando da água bendita e atirando pedras à má sorte.

– Ao que chegaste, rapaz! Nomes tão poéticos, coisas tão bonitas para gente tão feia quão malvada. Não estou a perceber nada da tua lengalenga chavasca (cripto judaica, pejorativo) – disse a beata-mor.

– A versão é polémica, enigmática, e até pontilhada de hiatos e contradições. Ainda assim, a narrativa cordovesa traz-nos novas metáforas, eleva o ideal, é o reverso da medalha, e cada um puxa a brasa ao seu bacalhau, como se faz no Alambique. Mas que o nosso mundo fica mais rico, mais imaginativo, lá isso fica. Longe vão os tempos das batalhas do Chão da Guerra, da de Ourique, dos suicídios templários, dos temidos esquadrões da morte, dos assassinos do Velho da Montanha, dos nossos parceiros e adversários de viagem. Pela narrativa mourisca, podemos lançar uma nova luz sobre as nossas penumbras. Quem não pudesse ir a Meca uma vez na vida, ia pelo menos a Córdova, ao tal Farol do Ocidente, segundo os próprios alemães. Os nossos antepassados iam à Facha, lugar sagrado onde se congregavam todas as culturas sem descriminações nem preconceitos. – disse com a habitual sedução dos seus longos discursos.

King Kong: O Elo Perdido

A beata-mor ia meneando a cabeça em desaprovação e diz:

– E tu acreditas nisso, meshuga (doido em hebraico)? Fala-me às direitas, homem de Deus.

Mas o Filósofo respondeu à provocação com um paradoxo unamunesco:

– Neste mundo só não é meshuga quem não tem juízo.

– Troca lá essa chavascada por miúdos, rapaz, que eu não estou a entender nada do que dizes.

– Quem não tem juízo segue a carneirada do rebanho, percorre o óbvio caminho que os outros lhe traçaram. Já quem o tem trilha o seu próprio roteiro. O primeiro macaco que desceu da árvore e levantou as patas da frente, naquele ato extremo, ousado, foi considerado um meshuga por todos os demais. Estranhíssimo? Foi apenas ele mesmo, um visionário. Os que ficaram na árvore macaqueando os outros, por lá continuam guinchando. O que desceu despertou o género humano, iniciou uma revolução social, que deu luz à nossa vida, a primeira e mais bem-sucedida desde o princípio da Humanidade. É o nosso primeiro antepassado.

As mulheres estavam em estado de choque, contemplavam o Filósofo com estupor. A beata-mor não aguenta mais e desabafa ao ouvido da companheira:

– Eu não te dizia?! O ca…ralho do rapaz está possuído! Parece ser o braço direito do Diabo que visita na Calheia dos Namorados. Não tarda muito que o mandem embora do colégio para sempre.  Depois vira-se para ele – Estás a dizer que descendemos do macaco? Então quem é o nosso Deus? O King Kong? – pergunta a beata com linguagem sagaz, manipuladora.

Mas a irreverência do Filósofo travou mais uma vez o bullying dissimulado da mulher:

– Não, não, o Rei Kong é o elo perdido, cresceu é tanto que desapareceu. Foi a transição entre primatas superiores e inferiores. A função do homem, primata superior, no mundo é fazer algo diferente, é isso que o distingue do primata inferior, o macaco. Para ele, cada dia tem que ser algo novo, uma nova aventura. Para os que fazem sempre a mesma coisa, a mesma rutina… peritos em imitação, bem…é isso… a beataria é sinónimo de macaquice.

A beata ficou furiosa:

– Bem sei que as ideias que defendes provêm do Mafarrico, com quem conversas à meia-noite, Hora do Demo, na assombrada Calheia dos Namorados. Eu sou uma pobre ignorante, que vivi enclausurada num colégio, não tenho armas para combater ideias tão avançadas, mas sei que não tens razão. Então essa da anti Córdova e das peregrinações às Águas da Facha …São Tiago nos valha! – concluiu a beata-mor.

– Cada um rega o seu bacalhau com o melhor azeite que pode dos Lagares do Chão da Guerra, vê as coisas à sua maneira, que a imaginação é quem manda. Muito do que acontece fora de nós é fruto da nossa consciência. A gente é, em parte, aquilo em que acredita, o pensamento do grupo que nos define. Mas a narrativa cordovesa de que lhes falava permite-nos, pelo menos, adentrar numa cultura, não é que estejamos de acordo com ela, é apenas uma amostra de uma perspetiva diferente, de que também podemos fazer parte, mas que os nossos preconceitos persistem em apagar.

Cristãos Novos em Estado de Negação

– Contam ainda os arabistas – continua o Filósofo – que a opinião dominante não aceita esta teoria devido às memórias falsas implantadas e às opiniões negativas veiculadas sobre pessoas ou grupos, memórias e opiniões com origem na sua religião, etnia ou raça, tintes racistas. Não esqueçamos que também podemos ter sangue semita ou, então, não conheceríamos esses termos todos!

 – Olha, olha para este! Eu proíbo-te de dizer uma coisa dessas! – diz a segunda beata, para logo a outra acrescentar:

– Uma coisa é ter essas ideias, outra coisa é manifestá-las.

– Pois, olhem – contrapôs o Filósofo – se eu tivesse a veia poética de Alvorinha ou do escritor argentino, transmontano descendente, Luís Borges, não teria vergonha em aceitá-lo nem deixaria que a opinião pública me fizesse a cabeça, renunciando àquilo que sou, só porque eles querem, e cantaria mais ou menos assim:

Nada ou pouco sei dos meus antepassados

Mouros, os Alvorinhas, vaga gente

Que prossegue em minha carne, obscuramente

Seus hábitos, rigores e temores

Melhor assim. Cumprida a faena

São Vilaiete e aquela famosa gente

Filhos da Taifa Magnífica a Ocidente

– Pois eu, se tivesse esse veneno dentro de mim – contrapõe a beata– mor – faria um corte numa teta e poria lá um morcego negro, obra do Diabo, que querendo criar um passarinho como Deus, saiu-lhe antes essa criação à sua imagem, a chupá-lo todo cá para fora, para que não envenenasse o nosso sangue santo, ariano – disse com indignação – depois ainda dizes que Córdova era a cidade mais importante do mundo ocidental e que aqui se faziam peregrinações à Facha? Ao que chegaste, moreh (professor em hebraico)! Isto é uma profanação! Espero que não despertes a ira de Deus, que te mande diretamente para o Inferno! – concluiu com visível desconcerto e azedume.

– Não é profanação nenhuma nem questão de opinião. É um dado comprovado. Aí não há mistério nem controvérsia que lhes valham. Um pouco antes da viragem do primeiro milénio, al-Ándalus era o estado mais avançado da Europa, apenas desafiado por Bagdad, a nível mundial. E ao que parece, as peregrinações a Córdova tiveram tanto sucesso que os mouros acabaram por construir, com tanto dinheiro que ali caía, Medina Azhara, nos seus arredores. Uma cidade em homenagem à preferida de Abderramão III. O mouro que construiu o Taj Mahal, por exemplo, um tal Shah Jahan, é hoje badalado por todas as partes, e acho que com mérito, pela beleza do seu palácio. Mas ele apenas construiu um mausoléu para a sua preferida. Abderramão construiu uma cidade inteira e ninguém fala dele! Só para que se faça uma pequena ideia do que é a propaganda.

– Eu, se fosse a ti, deixava de ler essas coisas dos nossos inimigos, que ainda te vão tornar num infiel. Estou desiludida com a tua deslealdade. – disse a beata-mor,  para logo a outra adicionar, cheia de curiosidade:

 – E quem era, afinal, esse tal berra irmão? – perguntou, um pouco menos mal-humorada.

Abderramão era o califa e Azhara era a sua mulher preferida. Ele eternizou-lhe o nome na cidade.

– E que tem isso a ver connosco? – perguntou a segunda beata, em contraposição.

– É que mesmo que essa ideia viesse um dia a ganhar vida e chegasse à corrente dominante, o que duvido por vir de uma estirpe socialmente desprezada, mas nunca se sabe, que o dinheiro é quem manda, e o petróleo é quem pode, o hábito ainda faz o monge, o nosso esquecido padroeiro estaria desde logo protegido.

As Terras de São Tiago poderiam, por subtração, até vir a ganhar maior relevo. Veriam finalmente legitimado o seu verdadeiro valor na história, um povoado arquétipo, a metáfora por excelência do nosso mal-amado patrono, como aliás já devia ser assim! Esta efeméride do 25 de julho devia exaltar a sua chegada às nossas terras, em vez de andar por aí mais esquecido que o esquecimento provocado pelas águas do rio Letes em Xinjo de Limia, só por Tiago ter virado também padroeiro de nuestros hermanos?! Quando ele aqui chegou, ainda Portugal e Espanha estavam em cascos de rolha.

– Mas, afinal, que tipo de cristão és tu, mohel (circuncidador em hebraico)?

– Eu sou um cristão que vê na religião uma norma de conduta que fomente uma saudável convivência entre todos, seja qual for a denominação, que meta essa arrogância pagã na gaveta, que se reumanize, como Cristo nos ensinou e não como uma arma de arremesso, segundo os ditames pagãos de Constantino, ao lado das forças opressoras! Isto só trocará de paradigma quando aparecer um papa proveniente de um país descolonizado, que sentiu a opressão do jugo tribalista, um evolucionista, com laços afetivos, uma nova esperança, porque distinguirá, como nunca antes aconteceu, os primatas superiores dos inferiores, as forças opressoras das oprimidas.

As beatas estavam cada vez mais confusas e preparavam-se para se porem a andar, que dali não levavam nada, mas, antes de saírem, o Filósofo ainda deixou cair mais esta:

 – Ide e pregai o que acabastes de ouvir, mas não quem o pregou! 

As mulheres, com cara de poucos amigos, lançaram-lhe um olhar estranho, reagindo de forma invulgar, ficavam convencidas de que não tinham argumentos para um homem tão bem informado. Resignadas, e para que a desavença não crescesse, era importante que na aldeia todos se dessem bem, mostraram alguma cordialidade. Foram buscar, não sei onde, honra lhes seja feita, finalmente, uma nesga de tolerância, de que todos andavam precisados, maculada com a ironia rural, que ia contra o seu habitual fundamentalismo campeador, acabando por amainar a tensão.

– Olha, rapaz, todos te gabam a sabedoria, então o padre, que nutre por ti uma profunda admiração, nem se fala, não fosse ele também marrano. Mas diz-me cá uma coisa: de que alambique andas a beber aguardente? – concluindo – …porra! E depois … ainda dizem que a cachaça é água!  provocando no interlocutor uma gargalhada que acabou por relaxar a interação.

– Estou mesmo a ver esse berra irmão – disse a beata-mor – outro perro, cabeça-atada, polígamo, pior do que estes ciganos, a atirar-se àquelas mulheres todas. Espero que os mouros tivessem já nessa altura ferreiros do calibre do nosso ano sim (de anussim, judeu forçado à cristianização), para lhe aguçar o pico todas as noites!

– Será então por isso – respondeu a segunda – que ultimamente o padroeiro nos tem brindado com pedradas atiradas do céu. Andará desgostoso com a ciganagem que veio parar à sua terra, que a fez regredir à poligamia mourisca do antigamente. A mesma gente, as mesmas ideias, a mesma escumalha que nasceu para pandemónios, orgias e paridelas! Sei que é pecado, e que São Tiago me perdoe, mas se o Xastre lhes fizesse umas camisinhas de tripas de porco, atadas com um baraço na abertura, assim uma espécie de meio chouriço ou um saco de batatas, que a fraqueza da carne está acima de tudo, não fosse ela originada pelo Belzebu que te aparece na Hora do Demo na Calheia dos Namorados, antes que as ciganas infestem a aldeia com essa peste negra, tropa fandanga, praga que varre a terra, que perpetuarão essas parideiras pelos tempos fora.

E a outra mulher encerrou a conversa, enquanto desandavam:

– Só nesta terra! É que já não bastava vir parir aqui a galega, agora vêm também parir as ciganas! 

(em desenvolvimento)

O Nueiba, setembro de 2015

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