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Crónicas


Nueiba: Histórias Rudimentares



O Horizonte Reconquistado

(A Maldição de São Tiago VI)

A mente humana tem que primeiro construir formas, independentemente, antes de poder encontrá-las nas coisas

Einstein

As ciganas do cante jondo tinham acabado de chegar ao quase enforcamento, estavam ainda arrepiadas com a ferida a escorrer sangue do pescoço do Quadrilheiro e queriam ir tocar os sinos para anunciar o milagre, mas ele ficou furioso, descompondo-as ali mesmo sem mais nem menos. Ao clamor dos familiares e à visível dor no rosto do contrabandista juntou-se a sua reação que as assustou:

– Calem-se mas é, suas feiticeiras! Isto não está para júbilos; qual tocar sinos, qual cara...mba! Isto é uma vergonha! – disse sem se deter e sem rodeios, mostrando já o discernimento necessário de quem estava restabelecido da quase tragédia.

– Se não tendes mais que fazer, ide mas é derramar la sangre com o felizardo do Krisnistori, enquanto uma e outra bate palmas!

E lá se foram as ciganas com o cante jondo das segadas, naquela terra de maldições, terra de milagres, onde tudo acontecia, realismo-mágico puro, do mais fino quilate, que teria sido a sorte de qualquer autor latino-americano se tivesse por cá passado. Em que outra parte do mundo o padroeiro, vigilante, com o seu olho que tudo vê, castigaria os seus féis, à pedrada, por causa das taras sexuais de umas ciganas, em noitadas proverbiais, que escreviam as mais lindas páginas de amor, por elas popularizadas, na Kama Kurta do Cegonheiro?

Mas as especulações em surdina sobre o contrabandista continuaram audíveis pelo Bairro do Barreiro. Os que se atreveram a falar do assunto, em voz alta, e não foram muitos, persistiam em dizer que tinha sido um milagre, que a espada de fogo do São Tiago tinha cortado a corda.

Sem reconfortos sobrenaturais, os mais prosaicos sustentavam, contudo, que, no momento cirúrgico da paragem respiratória, algum familiar se apressou com a navalha. Soube-se mais tarde um pouco sobre o assunto da própria boca do Quadrilheiro, mas ainda assim sem desvendar totalmente o mistério. Adiantava apenas que se tivesse morrido naquele preciso momento, em que viu a luz ao fundo do túnel, teria sido uma morte indolor, sem sofrimento, deixando os seus confidentes surpreendidos, incrédulos, boquiabertos de espanto.

Em Busca do Tempo Perdido

De uma maneira ou de outra, o facto de a corda ter sido cortada naquele preciso momento era por si só um milagre que aumentava os mistérios existenciais. E quando um milagre acontecia não vinha só. Contra todas as expectativas, apareciam também os donos das mercadorias, que se tinham atrasado a ponderar tão revolucionária proposta, naquele deserto de ideias de um tempo oprimido, onde nada de novo acontecia, rendidos ao plano do Quadrilheiro, que o contrabando ainda não se tinha cumprido.

 – Estamos perante algo relevante, um novo conceito, o princípio de um avanço extraordinário. Antes assumíamos nós todos os riscos, agora serão divididos, o que mostra grande confiança da tua parte e acima de tudo muita coragem. É um motivo de inspiração para nós, estamos orgulhosos por ti. O que nós queremos é que a mercadoria chegue incólume ao comprador. É essa a nossa prioridade.

 – Ufff ! – respirou fundo o Quadrilheiro.

Finalmente fumo branco. O Guerreiro do Contrabando estava pálido, desmoralizado e envergonhado, mas não morto. É nestes pequenos detalhes que os milagres acontecem. Titubeante no começo, tinha que reencontrar rápido o seu ADN. Reclamou a confiança, resgatou o seu sonho, ajoelhou-se, ergueu o braço à Cervantes, beijou a pulseira e rezou a São Tiago: “Se foi outrem que cortou a corta, foi a mando do benfeitor do El Dorado!”

  Com as marcas da corda bem visíveis no pescoço, o Quadrilheiro reconquistava lentamente o seu mundo. Estava vivo para a tarefa e, com o acordo dos donos da mercadoria, tinha cumprido a primeira etapa do seu desiderato, a magia estava de volta. Da negação à afirmação foi um passo. As lágrimas da tristeza transformaram-se em alegria. Havia de novo aquele brilho nos seus olhos. Abraçou os donos das mercadorias e saiu a correr, repleto de ilusões, que São Tiago tinha grandes planos para ele e para o El Dorado. Era agora o espelho da felicidade.

  Num assomo de entusiasmo, excedendo-se até, passando da depressão à euforia, que o tempo minguava e o contrabando o chamava, lançou-se de corpo e alma ao projeto, iniciando assim um plano inédito, o mais importante do seu longo historial de contrabandista profissional. Era um caminho nunca antes percorrido, sem provas de sucesso, é verdade, mas tega às costas e fé no padroeiro. Depois da teoria, a prática, do guião à atuação, até às últimas consequências, recuperar o tempo perdido. Ia agora jogar todas as fichas. Tencionava dentro de um mês, trinta dias apenas, transfigurar aquele humilde “rancho de vagabundos desalinhados” em verdadeiras feras do contrabando. Dava à luz um novo tipo de contrabandista, que o viria a consagrar como o Guerreiro do Contrabando.

Os Calças de Ferro

Se o processo evolucionista da vida é a dispersão, tinha que criar um antídoto, uma espécie de cola para cimentar o grupo, a união, aliás a origem dos vocábulos yoga e religião. Num novo fulgor de imaginação, começou por fundar uma equipa de futebol como trampolim: Os Águias. Todos os carregadores teriam que estar no auge da sua forma, meio para atingirem um fim. Além dos exercícios que o desporto exigia, desenferrujavam outros aprendidos na recruta. Às vezes iam nadar a Rabal, caso fosse preciso passar o rio com a tega à Camões, fardo bem levantado numa mão e a nadar com a outra, estariam preparados para a função do contrabando mais leve, mas de grande valia. Preparação era, aliás, coisa que não faltava, acelerando o desenvolvimento, adquirindo ao mesmo tempo a coesão de grupo.

Os guardas-fiscais, por seu turno, andavam desconfiados com mais um quebra-cabeças. Não sabiam o que estava a acontecer. Iam vê-los treinar a altas horas da sesta, no campo de Lamares, debaixo de um calor insuportável.

– Se puxas mais por eles, rebentam! – diz o guarda, que não conseguia disfarçar alguma apreensão, ante a simpatia do Quadrilheiro, domesticador de todas as raivas e invejas.

– Sabes, vamos jogar com os do Oímbra e queremos estar bem preparados.

– Então porque não joga a equipa da aldeia, o Grupo Desportivo de Vilarelho? – perguntou o guarda-fiscal, tentando esticar a conversa.

– Esta equipa não passa de uma versão encurtada da nossa!

– Que nada, homem! Eles até pensam que, fisicamente, nós opomos mais dificuldades. Três dos nossos jogam na seleção do povoado, como sabes, e, se tecnicamente estão acima da média, já os outros podem ter menos talento, mas coração não lhes falta! Concentração, paixão, luta e capacidade de percorrer longas distâncias. Jogo sempre rasgadinho, sempre no limite, sempre a merecerem o nosso respeito.

 E pôs-se a relatar o jogo, buscando ao mesmo tempo a sua aprovação:

O Santa Camarão agarra a bola numa só mão,

O Cerejo é jogador de muito traquejo,

A cabeça do Amorim à bola diz que sim,

Gooooooooooooooooolo ...dos... Águias!

– Sim, sim, sim, para lá com isso! Isso é verdade, mas aos outros sempre daria um jeitinho acertar, de vez em quando, com os tijolos na bola. – foi a resposta gracejada do guarda-fiscal, que fazia também parte do Grupo Desportivo. 

Este tipo de remoques dava para entender que a relação entre guardas e passadores era amistosa. Nem era invulgar jogarem juntos na equipa do povoado, como era este caso, mas as beatas maldizentes aproveitavam logo para disparar todo o tipo de comentários: “uma vergonha, uns vendidos, uns batoteiros, andam os contrabandistas todos feitos com estes Calças de Ferro”, nome por que eram conhecidos os guardas-fiscais subornados, pois viviam acima dos outros, vestindo elegantemente calças de pana galega, bombazina, doadas pelos contrabandistas, mas aqueles, petulantes como eram, nem conta se davam que estavam a auto delatar-se.

O Início de uma Nova Madrugada

O novo conceito ficou conhecido entre eles como Contrabando Titular, não se sabendo, ao certo, como a designação teria surgido ou de onde teria vindo. Há quem diga que já existia noutras partes da fronteira, outros diziam que teria sido retirada precisamente do futebol, que se refletia, como oposição ao Contrabando das Reservas, àquele feito de contrabandistas de uma elite, fruto do rigor, técnicas e táticas treinadas ao limite. Mas os estratagemas mais apurados, entre eles o do Rapa a Tega – um verdadeiro coelho tirado da cartola – treinavam-nos em lugares onde não fossem vistos, para não atrair a atenção pública, numa altura em que até as paredes pareciam ter ouvidos.

Com tanta preparação, os resultados não se fizeram esperar. Os contrabandistas estavam prontos para as saídas noturnas e para as ainda por revelar legendarias correrias do contrabando, naqueles tempos de La Guerra Civil Española, agora habilitados a escrever a sua própria história.  

 Sombras no Horizonte

Mas do outro lado da barricada, nas antípodas, estava o C’rabineiro Negro e a horda de herdeiros de Primo de Rivera, que pareciam ter emergido do inferno. Frios, insensíveis ao desespero dos passadores e à angústia dos vecinos famintos, supersticiosos e preconceituosos, os guarda-fronteiras traziam ordens muito específicas: acabar com os contrabandistas, espancá-los se fosse preciso e... se eles oferecessem resistência ...atirar a matar para fechar aquele corredor de assistência aos antifranquistas do eixo Oímbra-Verín, salvar ainda a honra e uma futura promoção.

O C’rabineiro Negro e o seu companheiro, El Segundo Falangista, vestiam por vezes roupa camuflada – dizia-se que tinha sido tirada dos corpos ainda quentes de soldados caídos da Lincoln Brigade – inovação caricata para a época, mas que funcionava às mil-maravilhas. O certo é que podiam vigiar os contrabandistas no meio do mato, sem que fossem vistos, o que aterrorizava os passadores, beneficiando apenas o São Tiago, que não tinha mãos a medir com tanta promessa para os salvar daquele personagem diabólico. A fama da sua crueldade não parava de aumentar: “homem excomungado, onde ele põe os pés nem os tojos crescem, cão de fila que se faz valer das suas técnicas mais travessas!”

Diziam os republicanos galegos, escondidos pelos montes do Ladairo e pelas margens do Tâmega, que, na sua presunção e demência, o C’rabineiro Negro teria tido um sonho em que fazia o discurso de uma imaginada e futura condecoração com El Generalíssimo, já instalado no poder, contando dividendos esperados para poder fugir daquele desterro para onde o tinham enviado. Com os pés num lado e o coração noutro, tierras lejanas, no meio de gente rústica, onde nem a língua entendia, longe de la civilización y de la gente querida de Castilla, treinava todos os dias o seu conteúdo na memória – qual Nero buscando a perfeição, a imortalidade, numa peça de teatro – para não falhar naquele evento marcante, experiência de uma vida, começando para não variar, de forma pretensiosa, com uma cita dos “tanto monta, monta tanto Isabel como Fernando”, à procura de uma epifania.

Mantener la España una e indivisible: una patria, una lengua y un caudillo por la gracia de Dios, el Centinela del Occidente, hombre que nunca duerme velando al Rojo (...) que acabe con los dialectos y con las culturas regionales que son un foco de división y perpetuación de la ignorancia (...) y sí uno muere en la frontera con un balazo de un contrabandista maleante, un fuera de ley, en la cabeza, pues, que Dios le dé tiempo para gritar un ¡“Arriba Franco” antes de morir por la patria!

A Morte de Robin Hood: O Médico dos Vilarraienses

Na floresta do monte Soutullo ouviam-se os ruídos de uns passos, estalavam galhos quebradiços, os contrabandistas entravam num estado de medo patológico, fugiam cada um para seu lado, perdendo-se no emaranhado do bosque, no meio dos arbustos bravios.

Em algumas das suas rondas, o C’rabineiro levava o seu grupo em passeios dissimulados. Escondiam-se entre arvoredos, fragas e matagais, aí ficavam à espreita, uma noite inteira, parecia ser o único a quem não aborrecia uma escuridão, iluminada apenas pelos pontinhos mágicos dos pirilampos. Depois aparecia subitamente do nada, no maior dos silêncios, nem vento parecia soprar, de forma tão matreira que os arrepiava. Era um combate muito difícil de vencer, mas, para quem vivia exclusivamente dessa atividade, era uma questão de vida ou de morte, a tudo tinha que se sujeitar.

Uma boa ajuda para animar o Quadrilheiro tinha vindo dos guerrilheiros antifranquistas do eixo Oímbra-Verín, a quem a tinha solicitado, seus preciosos aliados – e chegar a eles nessa altura não era nada fácil – que já mexiam os cordelinhos, agora determinados como nunca, numa reação estoica ao fuzilamento do seu companheiro – e para grande tristeza do contrabandista – Carlos Reino Caamaño, seu amigo íntimo e dos vilarraienses, em geral, clientes assíduos, enquanto exercera as funções de médico no Oímbra.

 Conta ainda hoje María Paulos Valles, de 96 lúcidos anos e memória de elefante, que, quando Caamaño chegou ao Oímbra, a maioria dos clientes de Vilarelho e não só ... tinham trocado o mítico, com estatuto, prestígio e pedigree, don Pedro pelo novo médico. Era à benevolência e à maneira humana como Carlos tratava as pessoas que muitos vilarraienses agonizantes de tuberculose, da meningite e do garrotilho ficaram a dever a sua vida, uma vez que o futuro Último Alcalde Republicano de Verín era um verdadeiro multiplicador de generosidade, transbordando nele o que faltava no coração de outros – quem tinha dinheiro pagava, quem não tinha pagava com géneros e quem não tinha géneros recebia tratamento gratuito – pois compreendia, como ninguém, que uma vida estava acima de tudo, daí a alcunha Robin dos Bosques lhe assentar na perfeição.

Quando se soube do seu inacreditável e cruel fuzilamento, em Vilarelho, onde Carlos, trazido por Luis González, o Fuxido de San Cibrao, vinha muitas vezes, em segredo, refugiar-se, houve angústia e tristeza, naquele rincão onde era tão querido. Sabia-se que os rumores podiam ser verdadeiros, mas ninguém queria aceitar o seu eterno desaparecimento. Só mais tarde vieram a ter plena consciência do seu brutal assassinato, aceitando-o finalmente de dentes arreganhados, por não poderem chorar uma alma arrancada à sua intimidade. Tentavam apenas reconfortar-se mutuamente e em surdina: “Que descanse em paz aquele a quem tantos de nós devemos a vida!” (em agosto de 2015, as vítimas do franquismo foram homenageadas em Verín. Em frente à Casa do Concello, foi colocada uma placa com uma lista de cinco fuzilados, encabeçada por Carlos Reino Caamaño).  

Estes fuzilamentos vinham na sequência dos atrozes assassinatos dos três carrilanos portugueses (trabalhadores dos caminhos de ferro) em Campobecerros, concelho de Castrelo do Vale: António Ribeiro, José Maria Sena e Ramiro, cujos corpos foram deixados por lá apodrecer, no alto do Lombo do Marco, a caminho de Portocamba, dois deles trazidos depois pelos vecinos para o povoado, mas impedidos de serem sepultados no cemitério da aldeia (no alto do Lombo do Marco há hoje uma placa, à beira da estrada, em homenagem aos três). Deste grupo tinha ainda escapado um quarto, por intervenção do cura, que adotou o nome de Manuel, entre outros, e se escondeu numa aldeia galega próxima da fronteira, vivendo mais tarde, com o nome de José, em tempo emprestado em Vilarelho. Apesar de trocar de identidade por várias vezes e de fugir dos falangistas como o Diabo da Cruz, o seu destino tinha sido traçado.

No seu pedido de ajuda aos antifranquistas, o Quadrilheiro deu conta do seu destino, por intermédio de Luis González, que se preparava para fazer-lhe chegar farinha e outros mantimentos, ajudando assim a sufocar a fome e a angústia. E foi com este tiro de partida, uma reação impressionante, que se iria assistir ao regresso do contrabandista, deixando os guerrilheiros admirados com a sua coragem:

¡Coño, camaradas, que el hombre los lleva bien puestos!

Os antifranquistas, vindos, então, dos seus esconderijos, deixaram um aviso sério ao Falangista. Contava o filho do Quadrilheiro que, quando o desalentado contrabandista se inteirou do que tinha sucedido, deu-lhe um novo ânimo, ficando até emocionado, com o que eles tinham feito. Sentiu-se redimido. Tinham colocado um papel na porta do C’rabineiro, em bom português, para ele pensar que tinha vindo do Quadrilheiro, com a seguinte mensagem:Nós também temos pistolas. Se disparardes sobre nós, retribuiremos fogo!” – deixando ainda colado no papel uma bala mauser 6,5 em cima do aviso: “Com o endiabrado Quadrilheiro, não brinques tu, C’rabineiro!”

Contava ainda o filho do Quadrilheiro, abrindo mais uma janela para o passado, que, quando o Falangista deu com os olhos na bala, tinha ficado consternado, o seu sorriso aceso teria murchado com aquele ultraje ao domicílio. Tacitamente entendera que podia continuar a fazer o que vinha fazendo menos disparar sobre os contrabandistas.

A caminhada até aqui fora longa, mas o Guerreiro do Contrabando tinha ganho a sua primeira, pequena, mas simbólica batalha. O horizonte acabara de ser reconquistado.

O padroeiro, São Tiago, anjo da guarda, que se preparasse para trabalhar 24 horas, sete dias à semana, para o proteger, pois o Quadrilheiro bem o iria necessitar.

(em desenvolvimento)

O Nueiba, outubro de 2015

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