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Nueiba: Histórias Rudimentares



Serões com Vida: Uma Aula Sobre a História da Raia

(A Maldição de São Tiago VII)

As pessoas só veem o que estão preparadas para ver

Ralph Emerson

 

A aguardente começava finalmente a correr da longa pia. O Rezingão meteu uma folha de bacalhau, batatas, linguiças e maçãs ao lume, enquanto o futuro Quadrilheiro, seu instrutor de destilação, lhe dava as últimas dicas. O azeite, esse, era “o mellor da rexión”, testado pelo futuro Fuxido, com migas de pão, no Lagar do Chão da Guerra, quando fora extraído. Alimentavam a fogueira os suspeitos do costume: o Druida, o Pacifista e o Filósofo, este a passar uns dias em casa, vindo do colégio. O Chevrolet deu uma volta à chave da porta, que assinava um decreto “o que acontece no Alambique, fica no Alambique!”

Trazido pela mão do Fuxido de San Cibrao, o médico vinha conhecer aqueles propalados cenários, os enigmáticos serões no Alambique, que se prolongariam inverno dentro, entregando a sua sorte nas mãos do companheiro, cicerone de esconderijos, para onde pudesse escapar, quando fosse necessário, que a situação, do lado de lá da raia, estava cada vez perigosa.

Daquelas tertúlias embriagantes que se haviam tornado símbolos da cultura do povoado, rompendo padrões, carregadas de história e filosofia, já tinha ouvido maravilhas o doutor Robin dos Bosques, como também era conhecido, no seu escritório do Oimbra, mas acolheu-as com alguma relutância “deben ser historietas”, pensava, “propaganda de clientes amantes de su aldea.” O inédito aparecimento do médico no primeiro serão da época era, então e apenas, uma desculpa para ver in loco como as coisas funcionavam do lado de cá da raia, trabalho exploratório, para estudar possíveis estratagemas de fuga. Também não demorou muito o seu engano. Afinal, tal como lhe diziam, ali, livre de espartilhos seguidistas, havia mesmo algo de especial: boa comida, calor humano e a arte de bem receber era contagiante naquela Terra Prometida para refugiados, El Dorado para contrabandistas, imortalizados em tertúlias como esta sem as quais não se conheceria bem o grande livro da raia.

 Se do lado de lá da fronteira ainda se lutava, do lado de cá, a onda eugénica que varria a Europa tinha já desaguado no Estado Novo. Quem não gostou do que via era o futuro Fuxido, de regresso a San Cibrao, depois de uns anos passados na Argentina. Mal ele sabia que estava a ser seguido pelos franquistas, que o traziam debaixo de olho, já há uns tempos. Idealista inquieto, a sua conhecida luta pela justiça social e pela solidariedade com os mais desafortunados, chocou frontalmente com o que vinha a encontrar, disparando com o que parecia mais um grito de revolta do que conhecimento íntimo, isto já num galego misturado com o espanhol da Argentina: 

Algo cambiou para mal na fronteira de Rabal! O cura é menos despiedado que os fieles, os ricos menos que los pobres e os amos menos que los gauchos!

Mas o Rezingão, fazendo jus à sua alcunha, homem dado ao confronto, uma espécie de advogado luciferiano, polémico, mas no fundo rapaz de bom coração, abanava com a cabeça, da esquerda para a direita, não concordando com a radicalização do galego. Considerava antes que ele não tinha avaliado bem a situação.

O Druida fez, por sua vez, o ritual do costume. Benzeu-se com a terapêutica aguardente, depois brindou “saúde, dinheiro e amor” seguiu-se-lhe o Fuxido, que retorquiu “¡salud, dinero y amor sin suegra! ”. O Druida tomou outro cálice, colocou um cesto barreleiro ao alto, saltou para cima dele, e começou a pregar, como era seu costume, acabando o seu discurso com o lema do professor do povoado, que tirara ilações parecidas, com a súbita mudança de atitude, deixando o Rezingão e o Pacifista colhidos de surpresa. A frase simbólica do professor (juntamente com o Fuxido viriam a ser os dois arquitetos da fuga de Álvaro Cunhal para o estrangeiro, nos anos sessenta, quando este transpôs o Tâmega, em Vila Meã, numa barca, disfarçado de pescador, cenas que viriam a inspirar o filme Cinco Dias, Cinco Noites com o padre Fontes no papel de barqueiro) que pensava que o povoado vinha adoecendo de alguns anos atrás, ficou célebre: “Pelintra de novo, trauliteiro de velho!” (partidários da Traulitânia, movimento monárquico ainda em voga, ultraconservador, tradicionalista, truculento: metaforicamente falando, pessoas sem coração nem sentimentos solidários).

O Quadrilheiro distraído e algo meditabundo não tinha ouvidos para o que eles diziam, ia aconchegando as brasas ao bacalhau, cantarolando, mas a sua voz era abafada pelo carquejar das galinhas, ali empoleiradas, escandalizadas por as terem despertado para mais uma aula que, como tantas outras, teria tanto de longa como de aborrecida:

O António há de morrer

A Oliveira há de secar

O Sal há de derreter

E o azar há de acabar...

O Robin dos Bosques, por sua vez, estava embasbacado com aqueles estranhos costumes, com as apaixonantes histórias que ouvia e com a camaradagem demonstrada, ficando particularmente impressionado com a eloquência do Filósofo, um adiantado da sua época. Aquela alucinante e portentosa imaginação traziam-lhe até lembranças de um don Quijote, cujas façanhas aconteciam na sua cabeça de tanto livro que lera. A conversa fluía sem qualquer esforço. Era um prazer ouvi-lo. “ Yo me quedaría aquí toda la vida”, pensou. Pediu-lhe então para que lhe falasse da enigmática aldeia, tão admirada e badalada do lado de lá da fronteira, do seu misterioso passado, dos enigmas que os seus clientes lhe contavam no escritório.

Cuando usted guste empezar...disse o médico corunhês, diplomado em Santiago e enviado pelos republicanos de Celanova para o Oimbra, quando o seu rival, o todo poderoso, doutor don Pedro já contava espingardas.

O Filósofo dava tudo para agradar ao médico, que este mesmo tentando disfarçar, expunha sem querer costumes bem mais refinados que os restantes membros da tertúlia:

– Diz-se por aí que todas as aldeias da redondeza são iguais. E à primeira vista até poderá assim parecer, mas isso não passa de uma grande falácia, é um mito rural. Vilarelho profundo, por razões ainda pouco conhecidas, é um povo diferente e um pouco complicado até. Tem tantas faces, que se tornava impossível entrar no seu âmago. A sua vitalidade, ao longo dos tempos, as suas contradições, a ambiguidade e a diversidade da sua gente transformam-no numa aldeia tão admirada pelos forasteiros como difícil de explicar.

Apenas o Filósofo começara o recital e já ao Robin dos Bosques lhe parecia a terra do impossível, pois o don Quijote de la Raia falava com tal propriedade e paixão, que era como se tivesse vivido todas aquelas peripécias que ia contando. “¿Tendrá también su Dulcinea?”, pensava, e... tinha, enquanto o Fiósofo parecia ligado à corrente:

– Podem estudar-se as suas raízes, o que se passou ao longo dos tempos, de que eram feitas as suas crenças, os seus sonhos, as suas ambições, que uma cultura tão rica deixa-nos apenas com a vaga sensação de um enigma, e exige uma intensa reflexão, para tentar entender as complexas forças que a terão trazido até aqui.

Hábleme de sus mistérios – pediu o médico.

 Ele não resistiu ao chamamento:

– Pela sua situação geográfica e pela sua história é uma povoação híbrida. Dilata-se num semicírculo em volta da raia, cercado de aldeias galegas. Aqui tudo se misturou. Desde os alvores da nacionalidade, que quase todos beneficiaram com esta situação geográfica, fortemente marcada pelo contrabando, permitindo aos seus moradores viver acima dos povoados da vizinhança.

-¿Y cómo son hechos eses contactos con Galícia? – perguntou o médico.

– Para o contrabando não há terra como esta, mas os contatos não vêm exclusivamente desta atividade, vêm mais da convivência do dia a dia. Rabal dista a uns quinhentos metros, San Cibrao, Tamaguelos e Mandín a dois quilómetros, Oimbra a cinco, Verín, em linha reta, a sete, e sobretudo pelos laços familiares. Esta troca de ideias e mercadorias explica de certa forma o florescimento económico e cultural. Desde o mais humilde passador tradicional aos grandes contrabandistas de gado, todos aqui encontravam terreno fértil para o seu empreendedorismo.

Adelante – disse o médico, cada vez mais intrigado em saber como em tempos tão conturbados era ainda possível contrabandear gado.

– Os lameiros do Boial, ligados a San Cibrao, são o lugar para a troca de bovinos – é daí que lhe advém o nome – caprinos e molares, alguns terrenos espanhóis ficam já em Portugal e vice-versa. Tocam-se uns bois ou um rebanho para o pastoreio e trazem-se ou levam-se outros para casa. Quando esta atividade está no seu auge, o contrabando é mais lucrativo que os próprios proventos da lavoura e da pecuária, fonte principal de riqueza, que nos permite viver acima da linha da miséria.

No Tempo dos Cavalos Loucos

Com o advento de La Guerra Civil, quase tudo no lado espanhol da fronteira vai parar.  O gado, a farinha, o azeite, a batata e, como é evidente, a telha, que passavam para o lado de lá, traziam proventos significativos. A telheira portuguesa foi aí erguida para suprir o abandono da galega durante o confronto bélico, pois a telha passou a ser muito procurada, fruto dos derrocamentos provocados pelos bombardeamentos.

O futuro Fuxido, antes do destino lhe colocar os franquistas pelo caminho, era o mandatário na Galiza para aí vender a telha e outros produtos. Para amassar o barro eram utilizados cavalos que o pisavam, rodopiando sobre si mesmos, até que ao fim de uns tempos ficavam loucos. Era então imperativo abatê-los, com um tiro na cabeça. Em tempos de guerra, não havia carne ruim. Grande parte da carne do cavalo abatido foi parar à guerrilha anti franquista, com os miúdos fez-se uma parrillda a la gaucha, tradição introduzida pelo Fuxido, que acabara de chegar desde as longínquas pampas. Como a fome espreitava por todos os cantos, a cena transformou-se num grande festim, provocando um enorme alarido e atraindo tanta gente como atenções indesejadas.

É neste contexto que aparece o C’rabineiro Negro, perito em descobrir fragilidades nas engrenagens e, assim, impedir que as mercadorias fossem alimentar os republicanos do eixo Oimbra-Verin. Isto, por sua vez, vai obrigar as quadrilhas a organizarem-se.

             O médico, rendido aos conhecimentos do Filósofo, pedia apenas que não perdesse o fio à meada, que a sua charla parecia cada vez mais interessante.

 – Ao princípio, como aliás todas as outras aldeias dos arredores, foi terra de iberos, celtas, fenícios, gregos, cartaginenses, romanos e suevos. Até aqui tudo igual. A partir daqui tudo troca. Já com os visigodos, as diferenças começam a aparecer. Isto é apenas uma hipótese, com muitas inconsistências, mas com algumas provas que a sustentam, pois esse estudo está ainda por fazer. Segundo então consta, tendo Vamba nascido aí no Castro que leva o seu nome, quando chegou ao trono em Toledo, não teria esquecido a sua terra natal. Mas a grande diferença acentuou-se com os mouros, que aqui teriam levantado uma espécie de comunidade autónoma fundada por Albarrania, com o nome de Vilaiete – o preconceito nunca teria admitido uma abordagem a este tema – talvez a única a sul do Douro– e continuada pelo seu filho, o váli muladi, Alvorinha, respondendo assim a uma zona fértil, então desertificada pela invasão islâmica, de que os mouros tão bem souberam tirar partido.

O aproveitamento das suas águas, os terrenos férteis, a floresta, os viçosos prados e outras riquezas escondidas, entre elas a mineração no sítio dos Lagares, em Vila Meã, pertencentes a esta mesma freguesia, eram razões mais que suficientes para a sua ocupação. As caraterísticas físicas dos povos semíticos estão ainda hoje bem estampados nas caras da população, mas negadas devido à carga negativa que tal asseveração transporta. Musa conquistou Lugo em 714 depois de Cristo e, um ano mais tarde, os mouros estavam aqui. No ano 750 foram expulsos da Galiza, durante uma guerra civil entre Abol-Jatar e Tsuaba, mas por cá, aparentemente, ter-se-iam aguentado mais uns 15 anos.

 Bem mais tarde, durante os pogrons ora em Espanha, ora em Portugal, e isto pela facilidade que havia em escapar, repentinamente, de um lado para o outro, consoante a situação o impunha, aumentou o número de judeus fugidos da perseguição religiosa e política. Tudo isto mantido no maior dos sigilos pelos ditames da Inquisição. Ainda mais tarde, nos séculos XVIII, XIX e XX, para aqui vieram famílias galegas influentes: primeiro os Sánchez, depois os Amorins, mais tarde os Gómez, os Sapas, e, por último, os Carvajais, entre outros.

¡Manda hóstia! – diz o galego– ¡Somos más hermanos que pensava!

– Recentemente, trazidos pela Grande Depressão da América do Norte, regressou à base um grupo de gente diferente daquela que por cá ficou, com duas leituras da realidade: latina e anglo-saxónica. Sempre up to date, como eles dizem, são distintos em costumes, aparência e trazem uma atitude maculada com tiques protestantes da meritocracia na livre interpretação de uma Bíblia do rei James, que os mantém mais próximos das Escrituras do que do feudalismo clerical.

 Para aumentar esta diversidade transfronteiriça, aqui chegam os mais aventureiros contrabandistas da região em busca do El Dorado, os refugiados das guerras espanholas, contribuindo para esta multiplicidade, que se reflete num pensamento mais abrangente e tolerante. Mas gente apaixonada, ao mesmo tempo, alguns deles por amor morreram jovens.

Se para o Robin dos Bosques, o Filósofo era o don Quijote, então, ao Rezingão restava-lhe o papel correspondente de Sancho Pança, homem simples e analfabeto sem sonhos de uma vida diferente. Mais atarefado com a queima de outro pote de bagaço do que com conversa, estava bem concentrado, quando, subitamente, se sentiu esquecido pela charla e resolveu incorporar-se à discussão:

 – Ó Marrano (tabu de que só se falava no Alambique depois da porta fechada), se não podes comer as linguiças, lá por causa das leis de Moisés, entretém-te mas é com o bacalhau, alheiras não temos, que eu não entendo patavina do que dizes!

 Mas o Filósofo não lhe prestou atenção porque entendia como ninguém o seu complexo de inferioridade:

– Para tentar entender tão rico e complexo mosaico, e as forças que o compõem, é preciso examinar, através dos tempos, nas escassas pistas que nos aparecem e especular apenas do que teria acontecido. A forma como este aglomerado de gente tão variada influenciou uma aldeia rude e austera como todas as outras, mas com tintes modernos, bem vestida pelo contrabando, deixando traços de orgulho bem patentes nos seus habitantes. Ante o entusiasmo do médico “me parece que he vivido aqui toda mi vida”, o Filósofo estava imparável:

          – O contrabando dá a ilusão que as dificuldades económicas são passageiras, todos aqui aparentam ser mais ricos do que realmente são. Pensam que podem, através desta atividade, com uma boa dose de sorte e sacrifício à mistura, subir na escala social, concluindo com mais esta:

– É daqui desta diversidade, da família do arco-íris, desta circunstância rara, que advém o nosso dinamismo e a nossa complexidade. Esta amálgama de gente, este multiculturalismo tinha tudo para enfraquecer o povoado, mergulhá-lo numa confusão anárquica, mas enriqueceu-o, pelo contrário, resistiu à uniformização do género, tornou-o mais interessante, mais forte, deu-lhe um sentido pluralista e uma variedade ímpar de soluções para os seus múltiplos problemas. Na contradição está a base do conhecimento.

Transformação: Vilarelho Sou Eu

Cada vez mais intrigado com o passado da aldeia, o médico perguntou:

¿Qué causó entonces este cambio de que hablan Luis y el profesor?

O Filósofo mais uma vez dava uma resposta longa e cabal sobre o tema:

– Forças retrógradas o puxavam em direção contrária. Como o advento do nacionalismo, que exalta as diferenças étnicas, o espírito do povoado sofreu um rude golpe a que não se exclui a onda eugénica que varre a Europa. A intolerância aumentou exponencialmente também no lado de cá da fronteira, já por si forte entre o Beatério, uma organização criada no que poderia chamar-se madrassas do Absolutista, um abade que aqui tinha chegado pelas mãos dos miguelistas. O clérigo ganhou um grande protagonismo político quando Vilarelho foi incorporado no recém-alargado concelho de Ervededo, como último bastião absolutista, teocrático, governado pelos arcebispos de Braga, que não aceitava, misoginamente, uma mulher no trono. O abade passou então a ser ele o legitimador da ordem social, tipo Vilarelho sou eu, cujas pegadas são inapagáveis. Mas ainda assim, não conseguia controlar a todos. Entre os dissidentes liberais estava um pequeno grupo, os letrados (as poucas pessoas que sabiam ler na aldeia), que tentavam dar a volta à situação.

 – Ó Marrano, para lá com essas tretas, que o que a gente leva deste mundo é comer, beber e uma boa potra para saciar nela a voracidade dos apetites, nas horas do desejo! – atirou o Rezingão, com os seus olhos lascivos, sempre com resposta na ponta da língua, pois constava que ante uma das raparigas do povoado, a Desejada, a sua Dulcineia, por quem o Filósofo salivava, este perdia a sua compostura habitual, ficando literalmente sem fala. Esse acanhamento era, aliás, uma das razões que o levavam a continuar no colégio. Reconhecendo que o Rezingão o conhecia bem, o Filósofo fez apenas um esboço de resposta e depois continuou, mas aquilo ficara a remoê-lo por dentro:

– Vilarelho era, então, a freguesia mais periférica do concelho, que continuou, por causa das circunstâncias, mas a contra gosto, fiel à causa absolutista, como reação ao iluminismo galopante. Uma aldeia subitamente empobrecida pelo seu imobilismo, onde começavam a saltar à vista as privações e a miséria, não admirando, portanto, que fosse a aldeia do novo concelho mais virada para uma mudança, apostando na única estratégia possível.

 O grupo dos letrados ameaçou juntar-se ao concelho do Oimbra, Galiza (metade do Cambedo já pertencia a este concelho, a outra fazia parte da freguesia de Vilarelho), o que não passava de uma bravata como meio de reivindicar um lugar mais digno e justo num Ervededo ultraconservador. Como as missas no Cambedo estavam alternadamente a cargo do abade e do cura do Oimbra, a contestação subiu de tom. Os letrados, por falta de melhores argumentos, meteram uma lança em África, passaram a ir de Vilarelho à missa do cura, ao Cambedo, como forma de pressão e em sinal de protesto.

Da Ameaça de Separação à Anexação do Cambedo

– Os arcebispos tinham-se valido do abade, um tradicionalista, empedernido, proveniente da Galiza, com os liberais à perna, conhecedor do terreno, com informação pertinente e uma grande experiência na matéria, para estancar a evolução.

O tema é algo controverso, mas o que aconteceu em pouco tempo, menos de um quarteirão de século, foi que o povoado se tornou irreconhecível, transformou-se numa espécie de aldeia contrafeita, virada às avessas, deixando de estar ao nível da cultura que havia produzido. A versão que mais se aceita é que as ameaças da desintegração por parte dos letrados era apenas folclore, um meio para colher dividendos, uma simples estratégia para assustar os arcebispos na longínqua Braga.

 O certo é que foi o mote, o ponto de partida para uma discussão assídua sobre a extinção do concelho de Ervededo, impasse apenas resolvido com o novo Tratado de Fronteiras. A parte do Cambedo que pertencia a Oimbra foi, então, integrada na freguesia de Vilarelho da Raia, que, por sua vez, voltou a fazer parte do concelho da Vila de Chaves. Coincidência ou não, a facto é que, quando o Absolutista se foi, houve uma lenta mas segura retoma, como aliás pode ainda ver-se nas fachadas das casas, inscrições com datas das suas construções, sendo a primeiríssima de todas a do Primeirinho. Seguiu-se-lhe a casa paroquial, residência do Missionário, a da minha própria família, mais essa que está na esquina do Cruzeiro, ainda a que dá entrada para a eira do Guerra, o Forno do Povo e por aí fora... como pode ler-se nas padieiras das portas. Pelo contrário, do período anterior não há uma única. Apesar disto ser apenas uma teoria, está amplamente apoiada nas datas dos edifícios.

– Então... e a casa desse tal matrimónio José Braz Sánchez -Maria José Daira Calvão, que dizem ser os progenitores da maioria dos Sanches, e não só... porque os filhos dos membros femininos da família perdem o sobrenome, de Vilarelho, Bustelo, Meixide, Carrazedo...? – perguntou o Druida.

– Essa é mais velha que o Matusalém! É já do século anterior – respondeu o Filósofo – dos pais do José: Frilano Sánchez e Andrea Rodríguez, oriundos de um pequeno povoado ganadero, a cinco quilómetros de Lugo, San Mamede dos Anxos. Aí está, a data de 1784, bem visível na ombreira horizontal da porta!

– E a do Sardinha? – Voltou a perguntar o Druida, desafiante.

– Bem, aí tens razão. Essa é, em realidade, do tempo do Absolutista, mas é a exceção que só confirma a regra, defendeu-se o Filósofo e voltou a pegar o fio à meada:

– De uma aldeia vanguardista, admirada pelos visitantes, passava lentamente a um povoado formatado de seguidores, gente que se fosse por eles nunca haveria transformações na vida. A filosofia do Absolutista ainda pode hoje ser confirmada nos vários escritos que nos deixou. Apesar das ideias inovadoras e progressistas da época, que convidavam o povo a participar na transformação das instituições, ele continuava a defender o absolutismo, confessional, dos reis e dos religiosos, com direitos adquiridos, direitos divinos, onde a herança continuaria a superar o mérito. Criacionismo puro. A legitimidade ainda era outorgada por Deus e não pelo povo, contrariando a razão, a natureza e o bem-estar. O abade assumiu tal preponderância e poder na aldeia não só no aspeto religioso, como também no aspeto social e político, que deixou marcas indeléveis, implantadas na consciência das pessoas, traços que foram passando de geração em geração, até aos dias de hoje.

¡Hay siempre un freno a la evolución! – diz o médico.

– Passou então a haver um certo distanciamento da realidade através de uma mirada para o passado, padrões antigos, onde ainda se tentava resolver os problemas pelo campo da magia. Atribuíam-se as catástrofes à má sorte e a funestas forças sobrenaturais, cedendo à mortificação que elas impunham. Havia medo de ser-se diferente, de não fazer parte do rebanho. As pessoas passaram a viver mais reprimidas do que nunca. As soluções estavam sempre fora do indivíduo. Imperavam as superstições. Os homens cortavam o cabelo na Sexta-feira Santa para não ficarem calvos, antes da lua nova para o cabelo crescer menos, davam pão nos funerais para não doerem os dentes, promoviam-se procissões para que chovesse ou para amaldiçoar as cigarras e os gafanhotos. Tudo isso agora voltou. Longos vencelhos são atados entre árvores das margens para que as cigarras, os gafanhotos e escaravelhos passem o ribeiro em direção às aldeias inimigas... que vão roer as quintas dos vizinhos galegos. Fazem-se rezas ao coxo de cobra, lagarto e rato, para que não procriarem dentro dos corpos afetados.

¡Joder! – diz o médico

– O padre que agora temos, o Missionário, é um pedrista (padres que seguiam a versão original de Pedro, mais humanista, como oposição aos constantinistas, àqueles visavam cristianizar a religião, que Constantino tinha politizado). Proveniente do ultramar, apareceu aqui sem exigir uma boa casa, nem um bom carro e muito menos indumentária de alta costura. Polémico, mas intrépido; corajoso, tenta, agora, três gerações passadas, devolver a aldeia ao que fora antigamente. Mas não está a ser coisa fácil trocar mentalidades nem ele é entendido e anda em colisão com o Beatério, que, empurrado pelo ideário do Estado Novo, resgata numa cápsula do tempo, as ideias do Absolutista, sob égide do totalitarismo. Inquietado pela falta de humanidade de alguns dos seus fiéis, cruéis e trauliteiros, o padre dispara nos sermões:

– Parem de mostrar o que não são, aqui ninguém é rico nem fidalgo, parolice atroz, como se não conhecêssemos todos as nossas muitas misérias!– rematando – Cristianizem-se!

Fazendo justiça ao que o Filósofo dizia, o Missionário bem tentava harmonizar a moral cristã com os avanços da época, denunciando ao mesmo tempo as injustiças sociais.

 – Defender os menos afortunados não é uma questão política, está na Sagrada Escritura!

Apesar de todas as dificuldades, o padre ia levando a água ao seu moinho. Mas as beatas cresciam para ele em tom ameaçador. Como se não bastasse, colocou umas antenas em casa para ouvir, das ondas da rádio, as notícias do mundo, orientar os fiéis com a predições atmosféricas lidas dos almanaques nas notícia, promoveu o teatro religioso e, numa altura em que andava em voga uma lei contra a inovação tecnológica, abusou da sua sorte, montando uma turbina eólica no telhado para retirar das forças do vento a luz para a igreja. “O mistério da luz” como lhe chamavam.

– Energia ruim, uma coisa monstruosa, espírito do mal. Isso são coisas do outro mundo! É uma coisa maléfica, diabólica mesmo, que o Diabo tem que ter a mão metida nisso, deve ser a troco da sua alma, que também não deve valer muito – protestavam elas – para logo adicionarem – como poderia ele doutra forma fazer luz do vento? De graça nem os cães ladram! São as chispas dos olhos do Demónio que se transformam em luz, mas a que preço, senhores..., a que preço? O impensável era que as beatas acreditavam verdadeiramente naquilo que diziam e não o faziam exclusivamente para porem o padre fora da aldeia.

– ¡Miserables! ¡Pelintras, como dice el profesor! – concluía o médico arrepiado.

– Uma aldeia que sempre fora a vanguarda da inovação que a fronteira e este mosaico de gente lhe conferiam, admirada pelas povoações que a rodeavam, voltava a tombar para o lado formatado, padronizado de seguidores, beatas e rezadeiros. A força com que batem no peito produz um som que faz lembrar os coelhos com as patas nas coelheiras.

Confirmando o que o Filósofo dizia, a Igreja deixava, contudo, de ser um lugar escuro para converter-se no lugar da luz, tanto física como metaforicamente.

O Missionário vestia confortavelmente como os fiéis e não com o requinte exibido pelos padres constantinistas, marca da sua autoridade, o que contribuía para a erosão da sua imagem entre os aldeãos mais empertigados, mais parecendo um João semana, religioso de mãos largas, pouco propício a fazer parte do rebanho da nova ordem. Os seus sermões inflamados e polémicos continuavam a ecoar num terreno minado, sob a vigilância implacável dos agentes secretos e da horda de beatas, as protegidas do sistema, que dele discordavam abertamente.

 Neste clima de guerra, quando quis por fim às procissões pagãs, deparou-se com uma vinha arrancada noite dentro, mais tarde cortavam-lhe as oliveiras do adro e do quintal. Era apenas o pronúncio do vendaval que aí vinha. “Foi um castigo de Deus” diziam as beatas.

 Conta ainda hoje um padre, que tinha chegado a Vilarelho para um serviço ocasional, que o Missionário, descuidado no vestir, com a camisa fora das calças, que o hábito não fazia o monge, o teria recebido com a seguinte frase: “Quem aqui chega vem condenado como os antigos cristãos em Roma!”, referindo-se ao paganismo fanático e a um fundamentalismo sem coração, fora de tempo, que espreitava pelo povoado.

 O Missionário, sem o espalhafato nem o vedetismo do padre que o viria a substituir, antes um inovador e percursor de uma nova era, fascinado com as novas invenções da época, ficou para sempre esquecido, nunca sendo devidamente entendido nem reconhecido. Quando mais tarde o padre que substituiu o seu substituto tentou resgatar, repetir a fórmula, pondo em prática os seus antigos e famosos sermões, em defesa dos oprimidos, acabou nos calabouços da polícia secreta.

Quando os Franceses entraram em Vilarelho

 Ante o entusiasmo do médico, O Filósofo não tinha pano para mangas:

– Esta alternância entre padres pedristas e constantinistas que vinham para a aldeia acontece pelo menos desde as invasões napoleónicas.

A entrada dos franceses na fronteira, vindos de Monterrei, fez-se pelos campos de Calvelos. Rezam as crónicas que aí teriam acampado. A primeira escaramuça, em terrenos portugueses, deu-se no lameiro do Chão da Guerra, palco de todas as batalhas. “Alguns franceses ficaram aí enterrados em bala comum”, escreve Justo Méndez em Costumbres de Otros Tiempos. As tropas de Soult teriam entrado e levado a prata da Igreja, destruíram e pilharam o que puderam, deixando a aldeia devastada. O Filósofo pegava o fio à meada:

– Respeito quem sempre defende o óbvio, mas a crise é a mãe da invenção, sepulta o conformismo, a rotina, e a criatividade é filha da angústia. Contavam que o pároco da época, um personagem misterioso (a informação sobre ele é quase inexistente; sabe-se apenas que seus acólitos o apelidavam de o Magnânimo, enquanto que o Absolutista o apelidou de o Afrancesado, talvez pela rivalidade entre ambos) em quem sobressaia a dignidade e a tolerância, parecendo inclusive que uma nova consciência tinha despertado no povoado, tanto assim que tinha mais aspeto de lenda do que feito comprovável, capaz de resolver os problemas mais bicudos. Era reconhecido pelos fiéis, respeitado e admirado pela sua generosidade, criatividade e inteligência, num cenário quase utópico.

– Mas o Rezingão não dava tréguas, às vezes tirava do sério a mais paciente das pessoas:

– Para de inventar, Marrano! Sempre com os olhos metidos nos livros – voltava ele – tentando disfarçar o ciúme que causava a eloquência do amigo a um analfabeto, como era a esmagadora maioria do povoado, mas o único entre os presentes no serão, e disparou, desta vez cuspindo fogo:

 – Isso só te aumenta a grossura das lentes. Se os metesses antes na carne fraca da Desejada, em vez de passares o tempo em bacanais manuais que só te trazem a cegueira, nem precisarias mais dos óculos, que dizem que acende mais a abêbora dela do que a eletricidade do Missionário, sempre a ir-se e a vir-se! – concluiu o Rezingão com o seu conhecido duplo sentido.

Desta vez, o Filósofo ficou sobressaltado e assumiu o confronto, pois o Rezingão tinha-o atingido no que lhe era mais íntimo “que pensa ele...que ela é dessas que andam a mostrá-la aí pelo rio de Rabal?”, disse para consigo, e malhou-lhe forte e feio com uma batata na testa que o atirou do banco abaixo. O Rezingão contra-atacou com uma maçã que lhe ficou esmigalhada na cara.

Antes que as coisas descambassem em vias de facto, e fazendo jus à sua alcunha, intrometeu-se entre ambos o Pacifista, conhecedor que o Rezingão fervia em pouca água, mas que depois de refletir sempre perdoava, pedindo desculpa:

 – Benfica  – 1 Porto – 1, deliberou ele. O desempate fica adiado para o último serão da época, lá para o Entrudo. Este tipo de interações, algumas delas nada meigas, serviam para mostrar que a amizade suportava quase tudo. O Filósofo sabia que era o complexo do analfabetismo – problema ditado por um sistema que tinha horror à escola – a falar por ele. Lá se recompôs e continuou:

 – O padre condenava certas formas de vida que mantinham a injustiça social. Tinha o dom de mudar as coisas, chegando à sua versão da quadratura do círculo, fé e razão de mãos dadas, cujas ideias giravam em volta do progresso humano, preocupado com os problemas económicos e educativos, acreditava no homem total, analisando o seu mundo interior e exterior num realismo psicológico. Subia ao púlpito e sermonava “rezar é bom para a alma, mas não basta, para o corpo é preciso ajudar o próximo!” Ele próprio dava o exemplo com sua contribuição mais célebre. Ajudou um freguês que, por sua vez, ajudou outro, este o próximo, até o favor chegar à procedência.

Quando isso acontecia, levava a ideia para a próxima aldeia da freguesia, até se cumprir um ciclo, que a próxima o esperava. Com aquela onda de solidariedade e motivação, excedendo até as espectativas, a freguesia foi assim reconstruida rapidamente. Uma onda de entreajuda varria a aldeia, mas com o advento do novo pároco essas práticas caíram em desuso. A memória é curta e a gratidão não é eterna. De quem a povoação se lembra é do Absolutista que o veio substituir, alterando tudo que o seu antecessor tinha feito.

-¿El Absolutista era pago por los miguelistas para cambiar todo?-pergunta o médico.

– Sim, sim, era isso tudo, era aqui o seu às de trunfo, já muito depois das lutas liberais! Promoveu assim um absolutismo tardio, ocioso, fechado sobre si mesmo, fortemente ligado a um clero controlador, imobilista e trauliteiro. Mas que era um grande ideólogo, escritor prolífico, lá isso era. As suas ideias encontram-se espalhadas por várias publicações. O abade teria formado um grupo de beatos e beatas – evangelizadores, peões de brega – uma espécie de Guilda ou Sindicato do Bem, onde o fim justificava os meios, eximindo os membros de obrar pelo interesse comum para lutar por ideais mais tradicionais e abstratos. Preconizava uma vida estática mais baseada na memória do que na criatividade, ou na inovação e no desenvolvimento, formas que já tinham perdido a sua atualidade e a eficácia. Era ademais um misógino, as mulheres e os homens subiam já separados as escadas do adro. A sua obra é vasta e com alguma projeção. Li em alguns do seus escritos o seguinte – e citava de memória: “o meu Rei, e Senhor D. Miguel vive, que he todo o alívio da minha saudade e toda a consolação dos meus cuidados pela Pátria, que me sustenta, pois a Mão de Deus está com Ele para o salvar e salvar Portugal.”

– Para quê Coimbra?  Há os bons e depois... há este – intrometeu-se o Chevrolet.

O Filósofo agradeceu com um simples olhar e, sentindo agora as suas ideias apoiadas, concluiu com esta estocada final:

– Se Antero Quental tivesse por aqui passado, podia até dizer-se que fora onde se tivera inspirando para escrever, um pouco mais tarde, a sua tese que apontava o absolutismo como uma das causas da decadência dos povos peninsulares.

Como se ainda fosse necessário dar autenticidade ao que o Filósofo dizia sobre o Absolutista, apareceu um livro editado em 1994, Crónica da Vila Velha de Chaves, onde pode ler-se: “Este padre continuou a ser um incansável e furibundo seguidor de D. Miguel até à convenção de Évora Monte, constatando-se largo usufruidor de favores reais por quanto realizou com a pena e o cacete.”

Há quem diga ainda mais: que o Absolutista teria pedido perdão pelos seus erros e mudado de posição no decurso do reinado de D. Maria II – um misógino que sempre defendera que uma mulher nunca teria a capacidade de governar um país-. O que nunca mudou foi essa cicatriz anacrónica, ultraconservadora, formatada ainda hoje na separação dos sexos, pouco aberta a novas ideias, desassociada da classe a que pertence, empapada em mitos e superstições no subconsciente das pessoas, que uma minoria da população luta ainda por se desenvencilhar dela.

A Explosão da Granada

Como avatar da cultura absolutista, apegado ao passado, este fundamentalismo tardio, deixou fortes raízes implantadas no povoado. Quase um século mais tarde, aparecia ainda sob a égide do totalitarismo, estando por detrás de um misterioso “Duelo ao Pôr ao Sol”, como se o destino trouxesse de volta os malefícios do Absolutista.

Com a filosofia do “olha p’ró que eu digo e não olhes para o que eu faço”, o galanteador padre da época, bem parecido, bom falante, melhor sedutor, apesar dos seus sermões puritanos, que pareciam tirados da gaveta, usados com pouca propriedade, pois fazia simplesmente o oposto daquilo que pregava – ademais coabitando com duas concubinas – via-se repetidamente metido em sarilhos de saias.

 O imbróglio do duelo deu tal resultado que teve que construir umas granadas artesanais e armadilhar com elas a casa em volta. Mas ante a ameaça dos seguidores do Missionário – a luta entre dois galos para o mesmo poleiro, um defendendo o São Tiago; o outro, o Senhor das Almas, nem isso lhe valeu. Teve que fugir para o estrangeiro sem tempo de limpar o terreno minado.

 Uma destas granadas foi encontrada mais tarde pelo sacristão e trazida para a entrada da Eira, no Bairro do Barreiro. Sem saber o que aquilo era, o sacristão começou a brincar com ela, atraindo outros rapazes para o jogo. Atiravam o exótico objeto uns para os outos como faziam com as laranjas. O sacristão apercebeu-se, então, de uma cavilha. Puxou por ela com os dentes, retirando o pino de segurança. A granada começou a fumegar e foi atirada ao chão. Eis que de súbito aparece o Sorridente atraído pelo alarido da rapaziada. Este, um homem mais velho, tinha feito a tropa, e ter-se-á apercebido do que aquilo era. Trepou na granada antes de rebentar, tentado impedir, pensava ele, a sua detonação. Mas os estilhaços da explosão quase lhe levaram a perna – esteve a ponto de ser amputada – atingindo várias pessoas, entre elas algumas crianças, despedaçando um carro de bois, ali estacionado.

A explosão sacudiu a vizinhança. A onda de choque chegou a sentir-se até à capela da Santa Catarina. Ficou célebre a frase proferida pelo Chevrolet, motorista do Missionário, e concorrente do padre galã às mulheres:

– Ainda bem que ele não era perito em granadas como era em saias ou, então, em vez de estar a levar agora esta gente para o hospital, estaríamos a ir para o cemitério.

O Labirinto do Desaparecimento

Eram altas horas da madrugada e os galegos preparavam-se para o regressar à Galiza, que a aula já ia longa. Antes da despedida, o Chevrolet sentiu aquele misterioso presságio, tinha que protegê-los, que o perigo espreitava desde a raia, e revelou-lhes, por último, o segredo mais bem guardado da povoação – o labirinto da sobrevivência, “o lugar onde a gente desaparecia”, como se dizia entre dentes. Contou-lhes os pormenores todos, tintim por tintim, da forma mais detalhada que sabia, caso se vissem apertados pela secreta. Os galegos ouviam perplexos:

– Não se preocupe doutor, ali em frente, no palheiro grande, há lá ao fundo um alto monte de feno. Se La Brigadilla aparecer, podeis-vos lá esconder, em cima, subindo apoiado nos buracos da parede. Podeis aí dormir à vontade no aconchego do feno. É um refúgio seguro.

Se a rusga vier, há uma cana de foguete, com os nós furados por um ferro quente, no fundo do monte de feno, só encontrada por quem deliberadamente a procurar. Está na esquina esquerda, ligada para o exterior e funciona como um aparelho de respiração. Antes de começar a viagem, respirai fundo, tereis apenas que suster a respiração por um minuto, olhos fechados para a escuridão, tempo que leva a furar feno dentro, até lá chegardes.

Os agentes secretos nada sabem disso e sem treino também não conseguirão lá chegar. Nesse tubo de ar podeis inspirar oxigénio antes de continuar. Há um buraco na parede, tapado por umas pedras soltas, que, ao empurrardes, caiem para o palheiro do lado de lá. Voltais a inspirar para mais uma travessia de um minuto, já no outro palheiro, e podeis desaparecer pela eira do Sr. Domingos. Ao furardes, o feno volta ao estado inicial, sem deixar rastos para quem vos procura. Isso da inspiração treina-se no rio, em Tamaguelos ou em Rabal, debaixo de água, sustendo, primeiro a respiração e, depois, inspirando por um cano de cabaceira (aboboreira) curvo, que recebe o ar da superfície! 

A cena que acabavam de ouvir parecia-lhes espantosa. O futuro Fuxido não ficava tão surpreendido como o seu companheiro, pois também ele era contrabandista, onde cenas destas eram o pão nosso de cada dia, mas, vendo o Robin dos Bosques tão perplexo, perguntou-lhe, sobressaindo nele o voceo do seu espanhol da Argentina:

¿Che, qué piensais, vos?

¡Hóstia! ¡Tengo envidia de no ser contrabandista! Lo que uno se pierde, escenas así no tienen precio!¡Se me eriza la piel! Ésta, o viene directamente de Palermo¡o fue sacada de la película del agente secreto de Hitchcock!

Era como uma premonição. Mal ele sabia que para ser-se membro da quadrilha, brevemente a ser organizada, viria a ser obrigatório fazer-se um ritual completo, com um juramento solene, inspirado nas praxes da Cosa Nostra.

E, assim, terminava o primeiro dos famosos serões da época, que se prolongariam inverno dentro.

Vilarelho dormia no profundo silêncio dos justos. Eram altas horas da madrugada, confirmadas com três distantes badaladas do relógio de Mandín, despertador pioneiro das redondezas, quando a porta do Alambique se abriu.

(em desenvolvimento)

O Nueiba, dezembro de 2015

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