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Crónicas


Nueiba: Histórias Rudimentares



O Evangelho do Quadrilheiro

(A Maldição de São Tiago VIII)

O principal objetivo na vida é evoluir; criar pessoas capazes de fazer coisas novas e não simplesmente repetir o que outras gerações fizeram

Jean Piaget

Em tempos de um unanimismo imposto, olhos postos no passado, gente prisioneira da situação, humildes pais de família encravados no mesmo trilho do rebanho, velhas rotinas repetidas dia após dia, eternamente, foi o Contrabando Titular que levou a fronteira à maior transformação de que havia memória.

Muito fazia o contrabando tradicional, que, apesar de manter todas as suas qualidades intatas, e sem desprimor por tudo o que havia feito, vivia agora dos seus tempos mais difíceis.

Era um período de desassossego na fronteira. Passadores reféns de um inesperado acontecimento, despreparados, sem saída face à nova realidade, atuando ao serviço dos Barões do Contrabando, que muitas vezes os exploravam, despreocupados com as dificuldades e os abusos a que eles estavam sujeitos. Com tantos contratempos a multiplicarem-se, o contrabando tradicional, suspenso num limbo, deixava, subitamente, de conseguir passar os seus fardos. Clamava-se por uma mudança. Talvez só uma equipa especializada pudesse resolver os grandes problemas colocados na raia por La Guerra Civil e pelo C’rabineiro Negro.

Naquela atmosfera quase irrespirável, com a fome a dobrar a esquina, criar algo novo era preciso, que um ofício da noite, como os gatos e os mochos, tinha também que ter mais que uma vida. E foi assim que a necessidade se virou para o engenho, deu um salto evolutivo, aparecendo uma nova ordem na fronteira. Num abrir e fechar de olhos, entrava-se no limiar de um tempo novo.

Havia tanto para fazer que não sabiam por onde começar.

No início, foi muito mais difícil do que pensavam. Lá iam os passadores derrengados, de fardos às costas, noutra jogada à roleta russa, vagando pelos labirintos do sopé do Castro de Vamba, como fantasmas perdidos, passando noites ao relento, quais lobos famintos, atormentados pela necessidade. Era assim que este bando de homens tentava romper o cerco que El Falangista e os franquistas lhes haviam imposto.

Os Guerreiros de São Tiago

 E, de repente, aquilo era muito mais que uma simples quadrilha. Depois de um ritual místico, alegórico e hipnótico a São Tiago, os poucos escolhidos, de perfil escrutinado, pulmão inesgotável, que elevariam o contrabando a poucas limitações, ficavam entregues agora a rígidos costumes disciplinares, fazendo parte de uma irmandade, uma seita, como se fosse uma religião.

– Como o maná não cai do céu – dizia o Quadrilheiro – o Contrabando Titular serve como a guerra para pôr os homens à prova!

Despontava assim uma nova mentalidade, em contínua mutação, jovens que esqueciam momentaneamente a individualidade para fazerem parte de um todo, ajuda mútua, direitos mínimos garantidos, normas não escritas, que todos passariam a conhecer. E se a balas lhes zoassem pela cabeça, pois …abandonar campo só quando ordens fossem dadas. Também os cavalos de troia, os denunciadores infiltrados, grandes inimigos dos quadrilheiros, atuando ora em benefícios dos agentes, ora das companhias concorrentes, tinham agora que ver-se com um escrutínio apertado e com a força coletiva de um grupo.

E a Quadrilha, com formas de organização simples, foi aprendendo, crescendo em complexidade, até os contrabandistas aparecerem cada vez mais soltos, mais eficazes no cumprimento das suas tarefas, atingindo altos níveis de organização. Em pouco tempo, transformaram-se nos melhores especialistas da matéria, um verdadeiro clã de quadrilheiros encartados.

Não era, por isso, um agrupamento qualquer. A sua fama começava a dar brado pela fronteira, fazendo com que outros grupos, fascinados pelo seu sucesso, seguissem o mesmo caminho.

“Estão à frente do seu tempo!” começava a ouvir-se pelo Cruzeiro.

Apareceram então mais duas quadrilhas, formando outras tantas equipas de futebol, para aprimorar a componente física dos quadrilheiros, os seus estratagemas, as suas táticas e técnicas.

 “Valentes, empenhados, organizados” eram outros dos adjetivos elogiosos com que viriam a ser agraciados. Até os mais céticos do contrabando tradicional consideravam o que eles tinham conseguido, em tão pouco tempo, uma proeza.

Código de Silêncio

Apesar dos boatos e dos rumores, muito pouco se sabe como estas quadrilhas funcionavam verdadeiramente – abundam os hiatos naqueles tempos carregados de lendas e silêncios – especula-se apenas, pelo que Manuel da Costa e os filhos do Quadrilheiro deixaram escapar que uma nova conceção estava em marcha.

A quadrilha seria composta por um corpo entre uma dúzia e dúzia e meia de elementos, empregava extras, quando a situação assim o exigia. Quando não havia trabalho para todos, a escolha era feita segundo a hierarquia. Os fardos pesariam por norma uns 30 quilos, não mais, transportados diretamente às costas, por vezes sustidos por cordas finas. Mochila era apenas para o chefe. Antes de cada saída, o capataz e o vigia estudavam meticulosamente o íngreme trilho da noite, ficando com uma compreensão total das rotas, curvas e contracurvas, tanto que nas saídas pareciam levar um GPS na cabeça. Nas noites de luar, utilizavam as estrelas como um cameleiro tuareg nos oásis do Saará. De uma forma geral, o capataz encabeçava a fila, seguido pelo vigia, que tudo monitorizava e ia, ora na cabeça, ora ao lado ou na cauda, fechando uma fila bem sintonizada. Se o Falangista usava roupa camuflada, para dificultar ser visto entre o arvoredo, os quadrilheiros respondiam com galhos de árvore, uma ideia trazida por antigos soldados das campanhas da Índia. Atavam-nos ao peito e escondiam-se detrás deles, tornando-se mais difíceis de serem detetados no meio da floresta.

 “Dá gosto vê-los passar os Pardieiros, com sacos de farinha às costas, subir o sopé a nascente do Castro de Vamba, que chegar ao moinho do Demétrio – futuro guerrilheiro antifranquista no Cambedo – nas Chãs, não é fácil, escondidos entre as ramas de amieiro que cortam no ribeiro, à saída dos Moinhos” eram alguns dos comentários que se ouviam no Cruzeiro. “Quando, em movimento sincronizado, parece até que a floresta também se muda ela para a Galiza.”

O silêncio com que se moviam era um dos seus trunfos. O vigia, por sua vez, além de uma observação meticulosa de tudo à sua volta, levava uma carga fictícia, geralmente feita de palha, para confundir-se entre os carregadores, aproveitando a ausência de peso e, assim, poder-se movimentar à vontade entre o princípio e o fim da fila. O grupo mantinha uma distância de dez a cem metros entre quadrilheiros, consoante as necessidades dos percursos, que, como um harmónico, se alargava ou encolhia, segundo os ditames do capataz, que enviava senhas para dentro do grupo. Se algum agente fosse avistado, era o capataz ou o espião a dar o primeiro sinal. Se as coisas começassem a dar para o torto, havia uma manobra de diversão, em forma de engodo. O vigia atrasava-se ou corria numa direção contrária ao grupo, atirava o seu fardo ao chão para que fosse apreendido, desequilibrando os agentes induzidos em erro e ganhando assim algum tempo para que os restantes quadrilheiros se escapassem.

Havia rumores que numa das quadrilhas da concorrência, com votos de honra, solidariedade e violência – escolhera o Senhor das Almas como santo protetor – tinha por lema: “sangue puxa sangue.” Se Os Guerreiros de São Tiago tinham fundado uma equipa de futebol como ansiolítico para a componente física: Os Águias; estes, os excêntricos e intratáveis Mouros, como se autointitulavam, contrapuseram, como réplica, a equipa d’Os Onze Negros. Rivais de ofício, não gostavam uns dos outros. E a aldeia previa o mais que latente confronto entre ambas, pois os membros desta quadrilha andavam armados com pistolas. Os jogos de futebol entre as duas equipas levantavam, muitas vezes, mosquitos por cordas, terminando ao murro e à pancada, passando a ser preâmbulos para crónicas de mortes anunciadas.

Já a terceira, Os Godos, tinha escolhido a Santa Catarina como padroeira, e era a mais moderada das três, pois os da Quadrilha dos Guerreiros, algo intempestivos, também não eram anjos nenhuns, andando eles, em forma de defesa, igualmente armados com navalhas e punhais, escondidos ora nos bolsos, ora nas meias. O capataz e o vigia eram geralmente portadores de armas de fogo.

 Com o aparecimento destas quadrilhas, era o fim da inocência do contrabando e a atividade nunca mais viria a ser a mesma.

Senhas e Contrassenhas

Apesar de tantos fracassos iniciais, o que a Quadrilha tinha conseguido, em tão pouco tempo, era impressionante. Sendo a pioneira e a de maior sucesso, provocava inveja nas outras duas, que viviam das inovações que esta impunha.

 Os Guerreiros apostavam na desteridade como imagem de marca, tendo como estratégia a dispersão. Quando se viam em apuros, ouvia-se a senha conhecida e replicada por todos, o trinar de um rouxinol, cada quadrilheiro fugia para seu lado e nunca mais se viam uns aos outros, perdidos na noite, na escuridão momentânea, entre os aromas exasperantes do arvoredo, só reagrupando mais tarde, livres de perigo, ao som da contrassenha: o piar da coruja ou, se estivessem muito afastados uns dos outros, o uivar de um lobo, debaixo de um luar deslumbrante, às vezes norteados por um mapa feito de pontos de estrelas. Sabiam pelo som, incompreensível para o C’rabineiro Negro, se o perigo estava perto ou longe, o que acabava por acalmar os quadrilheiros, quando dispersos e desorientados.

Às vezes escondiam os fardos num lugar e saiam a correr por outro, quase num êxtase, ébrios de alegria de criança. Os agentes poderiam assim apanhar um ou dois contrabandistas, mas pouco mais. O desgraçado que infelizmente caísse nas garras do Falangista estaria em maus lençóis, que a guerra estava no seu auge. Aqui não se brincava em serviço e a punição era severa. Ia do espancamento à prisão e, em casos extremos, como viria a acontecer num caso de má memória, o fuzilamento de um antigo trabalhador do ferro carril de Campobecerros, que vivera, disfarçado, em Vilarelho.

Motivada por uma atroz perseguição política, o trágico fim do José, nome com que passara a viver, uma aventura tristemente estupenda, nunca ficou bem entendido.

Em sentido inverso, havia o exemplo do Lelé. Quando o famoso grupo do Juan, guerrilheiros antifranquistas escondidos no Cambedo, saía de fardo às costas pela calada, uma noite, foi confrontado, repentinamente, por um guarda-fiscal do posto de Agrela de Ervedo. Lelé considerou aquilo um ultraje, o desplante com que eles passavam nas suas barbas, então saltou, enraivecido, aos tiros atrás do grupo. Juan, mais destro com a pistola, deixou cair o fardo, ripou da arma, apontou e atirou…

O Rapa a Tega

O estratagema do Rapa a Tega (fardo) foi o grande trunfo apresentado pelo Quadrilheiro. Era um método que consistia em reaver os fardos capturados, num jogo do rapa e foge. O contrabandista perdia o fardo, seguia detrás do carabineiro ou guarda, semiescondido pelo galho de árvore, com os olhos postos na tega. Às vezes passava ali a noite, lutando contra o sono, na solenidade da natureza, rondando os carabineiros, outras vezes esperava angustiado entre o medo e a tensão. Quando o carabineiro abandonava o fardo, pousado no chão, para tentar aprisionar outros, o contrabandista reaparecia, rastejando como uma cobra, resgatava-o, fugia com ele na iminente possibilidade de ser alvejado. Era uma das manobras mais difíceis de pôr em prática, tinha todas as caraterísticas de guerra. Esta estratégia exigia muita prática e era, por isso, treinada à exaustão, às escondidas, com acrobacias e travessuras à mistura, nos montes da Alvorinha ou nos lameiros do Chão da Guerra.

Os contrabandistas podiam, assim, perder uma tega, pouco mais. No novo sistema de contrabando, em que os prejuízos eram divididos, o primeiro fardo perdido era da responsabilidade da companhia, o segundo dos quadrilheiros e assim sucessivamente… de forma que a Quadrilha só perdia se dois fardos fossem levados. As percas eram divididas pelos membros do grupo.

Com todas estas estratégias bem oleadas, as saídas pelos montes tornaram-se legendárias, altamente lucrativas, principalmente para as companhias, apesar da época miserável em que se vivia. Pequenas fortunas que encheram os bolsos dos Barões do Contrabando, convertidos subitamente no ápice da pirâmide social do povoado. Com esta nova fórmula, foram passados fardos em doses industriais e a influência do Contrabando Titular começava a sentir-se pela franja da raia, impressionada com a quantidade de produtos contrabandeados, numa altura em que quase tudo começou a passar-se, transformando Vilarelho numa das aldeias mais pujantes das redondezas. Não obstante tempos deprimidos, novas casas se levantaram – ainda hoje se exibem como testemunho do bom gosto da época – apareceram os automóveis, os comércios floresciam, havia uma dúzia de tabernas sempre a abarrotar, gente bem trajada…Os proventos afetavam toda uma comunidade, que mesmo sabendo que era uma atividade fora de lei, estava legitimada pela miséria, pela repressão e pela fome.

Solidariedade com a Guerrilha Antifranquista

Conscientes das necessidades dos vecinos, que continuavam a resistir ao Levantamiento Franquista, os quadrilheiros respondiam generosamente às necessidades dos irmaus, em condições de auto sacrifício, com o intuito de atenuarem a forma desumana como eles eram tratados na sua própria terra.

 Do lado de lá da raia chegava-se ao extremo de não haver nada para comer e as mulheres chegarem desgraçadamente ao ponto de se prostituírem para alimentar os seus filhinhos. Os dois lados compreendiam-se às mil-maravilhas, pois a fome e o sofrimento eram facetas que nenhum dos dois grupos desconhecia. E os galegos também não eram gente ingrata nem se esqueciam de quem lhes fazia bem. Agradecidos com a solidariedade dos seus vizinhos, perguntavam-se até se fosse ao contrário, se conseguiriam ir tão longe.

Os dois povos viveram assim irmanados até ao fim da luta, mesmo quando já corriam rumores de que a guerra estaria perdida, pois a presença de soldados italianos e até alemães começava a fazer sentir-se. Os quadrilheiros partilhavam assim uma parte do que levavam para uma espécie de banco alimentar da época, enquanto a perseguição política subia a níveis nunca antes vistos. Ainda hoje os seus descendentes têm orgulho daquilo que os seus pais fizeram, ajudando no que podiam e os galegos não se cansam de agradecer quando contam estas histórias.

  Naquela escassez, quase tudo passou a ser subitamente contrabandeado. Para além dos tradicionais comestíveis, como farinha de centeio, trigo, cevada e milho, passava-se a batata, peixe salgado, sardinhas de conserva, queijos e fumeiro, o café, aparecia ainda o volfrâmio, os tecidos, a sucata, o tabaco...

 Apesar da época sufocante em que se vivia, os quadrilheiros encontravam espaços para ambientes mais livres e inovadores, onde as ideias se escapavam sem estarem sujeitas aos autoritários regimes vigentes, mais alinhados com causas humanitárias, numa altura em que fazê-lo era mais perigoso do que nunca. Mesmo ante este remoinho turbulento, o número de quadrilhas triplicou, o que serve para demonstrar a importância que o Contrabando Titular tinha alcançado em tão pouco tempo. O instinto de sobrevivência, às vezes, supera tudo.

Os Guerrilheiros e a Operação Cambedo

Mas a duração destas quadrilhas foi efémera. A hegemonia deste novo método de contrabando teria durado pouco mais de uma década. Estes clãs, que refletiam o espírito do tempo da freguesia de Vilarelho da Raia, teriam durado até ao bombardeamento do Cambedo, nos fins do ano de 1946, altura em que foram desmanteladas, sob o pretexto de terem dado ajuda ao famigerado grupo guerrilheiro de Juan.

Quase mil agentes portugueses e espanhóis – soldados, guardas-fiscais, guardas – republicanos, polícia, agentes secretos, carabineiros, La Bridadilla …– cercaram a aldeia escondida, no sopé, a poente, do Castro de Vamba, na grande Operação Cambedo, para abater três humildes guerrilheiros antifranquistas: Juan, García e Demétrio, que o povoado acolhera com hospitalidade, apesar de, de vez em quando, apertados pela fome, exigirem comida aos moradores mais abastados. Ángel, o quarto guerrilheiro, tinha abalado para Vilar de Nantes, na sequência de uns amores frustrados com a filha do homem que lhe dera guarida.

A aldeia foi incendiada, esmagada por canhões e morteiros. O bombardeamento deixou alguns palheiros e casas em escombros, uma delas ainda se encontra hoje rebeldemente no chão, nunca mais foi reconstruida, exibindo-se aí como uma cicatriz contra o esquecimento. “An overkill”, como diziam os que tinham vindo da América, a pedido da ala ultrarradical do clero, como mais tarde o Missionário deixara escapar. Uma organização dentro da organização, que não convivia bem com a democracia, muito menos com os sentimentos cristãos de paz, amor e harmonia.

Com grande influência no interior das forças franquistas, havia presbíteros e supranumerários nos dois lados da fronteira, que lutavam lado a lado contra a democracia. “Los Rojos”, como lhes chamavam, “quieren acabar con la religión y la Iglesia”, dizia-se do lado de lá da raia; “têm ideias que metem medo; são uns atracadores, socialistas, anarquistas, bandoleiros … ” ouvia-se no lado de cá. Antifranquistas convictos, sim, numa reação possível à ditadura imposta pela força, alguns dos membros do grupo teriam estado, segundo evidências, vinculados à anarco-sindicalista Confederación Nacional del Trabajo.

O famigerado bombardeamento da paradisíaca aldeia, escondida entre o silêncio e a solidão dos montes, vinha no seguimento da morte do Pinto de Negrões – um ajuste de contas – e de um assalto à carreira de Braga, que trouxe os guerrilheiros para as parangonas dos jornais, uma encenação, ao que consta, montada pela Brigadilla, como pretexto para a pôr em prática a grande Operação Cambedo. Naquele período conturbado da freguesia, o contrabando quase parou por completo.

  Com a consolidação de Franco no poder, no rescaldo da Segunda Guerra Mundial, e o reatamento da produtividade em Espanha, o contrabando tinha sido reduzido de forma drástica, não só em produtos de primeira necessidade, mas também em volfrâmio, que por aqui passava, proveniente das Minas da Borralha, seguindo depois para fábricas de material bélico. Da noite à madrugada, o Contrabando Titular via-se assim obsoleto, de forma traumática para os quadrilheiros, que perdiam a maior parte do seu ganha-pão.

Alguns dos contrabandistas foram interrogados, o Quadrilheiro foi preso, por suspeita de ter dado assistência ao “grupo malfeitor”, não só no contrabando, como também no encobrimento da morte do guarda-fiscal da Agrela de Ervededo, altura em que as quadrilhas foram desmanteladas.

E Tudo o Vento Levou

Com Juan e García mortos – o desenlace da refrega resultou em quatro mortos, dois para cada lado – Demétrio preso e Ángel fugido para o Brasil, as autoridades dos dois lados da fronteira começaram a passar a pente fino tudo o que acontecia na raia. Havia mesmo quem dissesse que os próprios guardas-fiscais, fazendo o papel de Calças de Ferro (guardas subornados pelos contrabandistas), se tinham infiltrado nas quadrilhas, para acabar com elas. A demanda por comestíveis também tinha caído, com a subida da economia espanhola, tornando a atividade dos quadrilheiros menos necessitada.

 Embora a Espanha não fosse incluída no Plano Marshall, isto no rescaldo do seu auxílio militar ao Terceiro Reich e não obstante os discursos em contra, Truman vinha ajudando Franco, secretamente, ainda antes do primeiro crédito dos bancos americanos ao governo espanhol, por volta do ano 48. Longe de ser uma recompensa pela sua posição ideológica durante a guerra fria – o autoproclamando Sentinela del Occidente velando al Rojo – era fruto de interesses geoestratégicos. Truman estava interessado na instalação de bases militares em território espanhol.

A retoma da economia espanhola trazia graves problemas para os quadrilheiros. As mercadorias que antes iam apenas na direção Portugal-Espanha, altura em que os espanhóis na penúria nada tinham, voltavam a passar nos dois sentidos, mas o seu volume tinha caído de forma abrupta. Era um fim patético para estes grupos organizados. Os quadrilheiros passariam agora a viver apenas nas memórias como símbolos das gerações do porvir e na aldeia ficava um grande vazio.

Os métodos da Quadrilha, que tinham revitalizado as economias fronteiriças, dando apoio à guerrilha antifranquista, por obra e graça do caráter obsessivo do arquétipo, o seu fundador, iriam apenas sobreviver no contrabando tradicional, que assimilou alguns dos seus estratagemas, nas novas casas que se ergueram, nas três equipas de futebol, das quais Os Águias era a mais emblemática, agora fundidas no novo Grupo Desportivo de Vilarelho da Raia, que, em 1952, ganhou o Campeonato das Aldeias do Concelho de Chaves, no Estádio Municipal.

Sem as quadrilhas organizadas, prevaleceu o contrabando tradicional arreigado entre as populações, mas já sem a exuberância do Contrabando Titular, pois todo o simbolismo de um clã se tinha perdido. Todas as tentativas de conter este tipo de contrabando foram, pelo contrário, infrutíferas, só desparecendo, mais tarde, com o acordo de Schengen e a abertura das fronteiras.

Resgatando lembranças nostálgicas, com melancolia e ternura à mistura, contavam ainda os filhos do Quadrilheiro que, quando o Contrabando Titular acabou, com ele teria também morrido uma boa parte do seu progenitor. “A melhor parte da sua vida tinha sido vivida como Quadrilheiro.”

Depois do período do El Dorado, do qual sabemos tão pouco, as quadrilhas desaparecem e ficaram para sempre esquecidas, até que venha alguém e as resgate das brumas do esquecimento, do mistério e da poeira dos tempos.

(em desenvolvimento)

O Nueiba, fevereiro de 2016

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