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Crónicas


Nueiba: Histórias Rudimentares



As Cinquenta Sombras do Cegonheiro

(A Maldição de São Tiago IX)

¡Ay qué camino tan largo!
¡Ay mi jaca valerosa!
¡Ay que la muerte me espera,
antes de llegar a Córdoba!

Lorca

Párias perseguidos caminharam longas estradas, desde a longínqua Córdova, e apareceram no outro lado da fronteira, a Terra Prometida dos refugiados, agarrados a tradições milenares de artistas de rua, originalmente desterrados dos seus territórios da Índia, e agora de Espanha, amaldiçoados a vaguear sem cessar pelo mundo fora, mala dicha de conquistadores fundamentalistas, enfrentando privações, dor e fome, a troco de não renegarem as suas tradições, identidade cultural e liberdade.

 Estabilidade sacrificada, existência angustiada, tinham como recompensa pequenas aventuras a um viver numa sociedade formatada, insensível e sem coração, onde nunca foram desejados. Um preço altíssimo em dias que se viviam, mas era o destino que lhes colocava pela frente aquela coragem, determinação e ousadia, deixando tudo para trás, para deambular pelo globo terráqueo, sem eira nem beira, com a barriga a dar horas e poder pôr comida na mesa aos mais pequeninos. Um processo doloroso, com custos pessoais, que nem todos conseguiam levar até ao fim. Os que resistiam viviam nos seus guetos, numa espécie de judeus pobretanas, seminómadas, roçando a boémia, entre palmas e castanholas, guitarras afinadas, vozes angelicais, tentando compensar os sofrimentos do dia– a– dia com estas pequenas alegrias.

As beatas, por sua vez, viviam noutro mundo com lógica e cosmologia também muito próprias; pontos em comum com os ciganos eram poucos. Para elas, o Sol era um jovem, godo, louro, vagabundo, que não conseguia estar quieto; enquanto a Lua não passava de um velho com silvas às costas numa Terra imóvel, avessa à diversidade, estática e estéril como uma mula que comera a palha do presépio. Passavam a vida a rezar, contudo, fazer o bem, amar o próximo e ajudar os necessitados não fazia parte da sua conduta. Tinham conservado antes aquela capacidade primitiva de farejar as suas presas e não descansaram enquanto não arruinaram a vida aos roma. A sua verbosidade agressiva semeava a discórdia contra aqueles leprosos. A violência escalava contra quem não podia defender-se, às vezes de forma cruel, pressionando o padre para que, nos sermões, lhes reprovasse o comportamento e, assim, pusesse a aldeia contra aquela seita satânica.

 Os últimos homens livres do planeta, marchando ao retumbar do seu próprio pandeiro, eram uma força subversiva contra as regras sagradas da vida. Então um homem ter dois “estafermos insuportáveis”, à vista de todos, era impensável e as fanáticas aproveitavam o pecado mortal para lhes acabarem com o choio (negócio, esquema). Tão fácil era desumanizar quem não podia defender-se!

As estrelas, aliás, já tinham sentenciado que os roma estavam nos piores dias de su dicha. Era a malvada onda eugénica que varria a Europa, a purificação da raça, o rocim estava pronto para cavalgar até à Solução Final, passando por Porajmos, Holocausto Cigano, fazendo meio milhão de almas. Uma mãe iria ao ponto de usar morfina para acabar com o sofrimento dos seus dois gémeos, Guido e Ina, barbaramente costurados pelas costas por Josef Mengele, em mais um experimento nazi.

 Se dúvidas ainda houvesse, as beatas deixavam cair as suas máscaras; dois pesos, outras tantas medidas:

– O Krisnitóri pode ter as mulheres que quiser, só não as tem quem não tem coragem de se chegar à frente. São os instintos de verdadeiro macho. Desde Lameque a Abrão, passando por David e Salomão... todos as tiveram porque um verdadeiro homem não pode negar-se quando elas se lhes arrimam em cima, um pau levantado não tem consciência. Assim fazem muitos no povoado, como é o caso do Chevrolet, mas ele esconde-as no armário, até acabou por fazer uma caseta nova na vinha coxa (kosher), de São Pedro, para as meter lá dentro. Isso é o que faz a gente de bons costumes, para não dar nas vistas nem contagiar os mais novos, em vez de saltar nelas às claras, como faz o bode nas cabras do Chiquinho!

– Não é para tanto, não é para tanto, mulher! – contrapôs a outra, tagarelando para esticar a conversa.

 – Com os seus disparatados romances, o barrosão deixa uma em cada esquina e até filhos escondidos andarão por aí. Uns aqui; outros em Pitões, para não falar em Tourém... Coitada da de Braga, que passa a vida a costurar para fortalecer aquele garanhão ou Dessetélia (The Stallion), ou lá como, raios partam, lhes chamam os retornados da América, cowboys galopando para o pôr-do-sol, com aquela estranha forma de falar. Parecem trazer uma batata quente na boca. Nem sei como se entendem uns aos outros. Talvez fosse por isso que se vieram embora e não pela tão falada creche (crash) da bolsa. Sabes que mais? Ele não passa mas é de um Casetanova (alusão a Casanova, mulherengo)!

Casetanova!… só cá faltava essa. As coisas que a gente aprende contigo.

A indignação das beatas ante as ciganas era, por sua vez, motivo de galhofa no Cruzeiro. A rapaziada, na idade libidinosa, salivava com a protuberância que lhe empinava para trás, à Kardashian, a saia de Azúcar Moreno, a última lembrança em que o olhar do desejo se focava, enquanto a cigana desaparecia entre as cinquenta sombras do Cegonheiro. À juventude enamorava-se-lhe a fantasia, brindando-a, ao passar na grande montra, com todo o tipo de piropos, que iam do poético-sensual ao rematadamente picante: 

– Que incapacidade a minha! Com tanta beleza à volta e não consigo ser poeta! – dizia um; para logo o outro contrapor:

– Não há pai para o Krisnitóri! Ele com duas... e eu aqui ougado! Quando perder a força, posso emprestar-lhe a charrua para lavrar o quintal da traseira!

Pela Estrada Longa da Vida...

As beatas não davam tréguas às suas projeções. Tudo em que pensavam, pareciam ver, construindo assim novas cenas para a sua guerra santa contra os roma e, agora, também contra o próprio padre, pois este ousara pisar a sagrada margem da nova onda. Era o primeiro gesto simbólico, indícios que algo grande estava para acontecer.

 Num dos seus sermões, o Missionário ousou desembrulhar o artigo 9 da lei referente ao casamento das professoras, condoído pela educadora que tinha chegado de Carrazedo, solteirona, com a felicidade arrancada para uma vida, com a dignidade violentada, pois o aprazado casamento fora reprovado pela sentença do decreto, acabadinho de sair:

 

“O casamento das professoras não poderá realizar-se sem a autorização do Ministério da Educação Nacional que só deverá concedê-lo nos termos seguintes:

1. Ter o pretendente bom comportamento moral e cívico.

2. Ter o pretendente vencimento ou rendimentos, documentalmente comprovados em harmonia com os vencimentos da professora.”

O pretendente até tinha comportamento moral e cívico, rendimentos ou vencimentos é que não. Quando a testosterona apertou, o rapaz não esperou para tio, duvidou do seu destino, mas foi mais forte do que ele, lançando-o em frente. Entrou para a guarda-fiscal. Autodidata, trabalhador, subiu a pulso até ao último degrau de sucesso, primeiro-sargento, num posto vizinho da fronteira. Foi um exemplo para todos, conquistando o respeito não só dos outros guardas, como também dos próprios contrabandistas. Aprendeu com a organização do Chiquinho e teve tudo na vida ou... quase. Conseguiu vencimentos superiores aos da professora, mas a felicidade nunca mais morou com ele. Quando se pensava viver uma vida digna de ser emulada, deu em alcoólico na etapa final, com tanto desgosto acumulado, morreu endinheirado, cantarolando uma canção que acabara de ouvir na Emissora Nacional, pensando até ser dirigida a ele: “...pela estrada longa da vida irei chorando por onde for…meu eterno amor…”

 – Devia de haver leis que proibissem também os casamentos ciganos, em vez de termos estas poucas vergonhas, esta ralé satânica a multiplicar-se por aí fora! – dizia a beata-mor, enquanto a outra adicionava:

– Terão os ciganos comportamento moral, cívico e rendimentos para casar e procriar? E ainda vem cá o padre criticar as novas medidas! Quem não tem dinheiro, não tem vícios. Exterminá-los é o que era, seria assim a solução final, acabar com a caterva satânica. São como a erva daninha, dão-se em qualquer lugar. E, como se isso não fosse suficiente, Nossa Senhora!... quem teria dado autorização a um homem para casar com estas duas cabras do Chiquinho, ao mesmo tempo? – perguntava a outra –  deitados na mesma cama!

E ordenaram, contra a vontade do padre, os sacristães a apedrejarem a casa daqueles malditos descendentes de Caim.

O padre sentiu-se desrespeitado, não aceitava o casamento polígamo, mas discordava dos métodos utilizados para acabar com ele. Os sacristães não passaram sem um valente raspanete, que lhes ficou de emenda:

– Os fins não justificam os meios!

O Zagal de São Tiago

Como tantos outros oriundos de Bustelo, o Chiquinho apareceu em Vilarelho à procura do El Dorado. Cedo aprendeu as técnicas da sobrevivência. Sem dar parte das suas intenções, com o que ganhou no contrabando, comprou uma cabra e, organizado como era, dali a pouco comprou outra, depois um bode, formou rebanho e lançou-se de forma inédita ao campo. Ele e as cabras entenderam-se logo às mil– maravilhas, passando a viver com elas uma vida solitária, tornando-se na figura de maior grandeza entre os guardadores de rebanhos. Quase sempre vestido de escuro, no seu mundo encantado era o arquétipo do antigo pastor, apostado em ressuscitar o mito de Pã.

Contava histórias de pasmar sobre a sua panteísta comunhão com a natureza. Subia com a cabrada ao mais alto dos montes para estar perto do céu, pois o que dava sentido à vida era audível nos ecos das encostas, nos murmúrios dos remansos, no canto do figueirós (papa-figos), contemplado nas incandescentes luzes do crepúsculo. Teria sido uma alegoria perfeita do romantismo, caso tivesse tido uma Siringe ou Dulcineia de quem enamorar-se e, assim, poder desenhar corações atravessados com setas de Cupido, deixar o nome delas gravado nos troncos cor de café dos sobreiros tosquiados da Alvorinha, mas mulher foi coisa que nunca ninguém lhe conheceu. Ainda assim os retornados da América não se cansavam de dizer:

-Little Frank has a crush on Brown Sugar (o Chiquinho tem uma paixão secreta por Azúcar Moreno)!

A memória, essa era de Funes (personagem de Borges) que fazia dele um orçamentista, que qualquer república adoraria ter. Dividia a colheita do ano em 365 dias e só consumia aquela precisa porção. Se, por acaso, um amigo lhe aparecia em casa e lhe bebesse um copito, de boa vontade oferecido, esse copo era rigorosamente subtraído logo na próxima refeição, deixando a povoação embasbacada. Orçamento ajustado, assim passava o ano até à próxima colheita. O dinheiro que sobrava era hermeticamente guardado em caixas de fósforos, escondidas pelos buracos das paredes, para acrescentar membros à sua família, o rebanho, que não parava de crescer.

Sabia a história do Portugal e do Brasil (tinha nascido na América do Sul) de uma ponta à outra e as capitais de todos os países do mundo.

Os Calendários do Chiquinho

De entre a sua longa lista de façanhas intelectuais, era o Zagal de São Tiago que desenhava os seus próprios calendários, que nada ficariam a dever a um antigo calendarista maia de Chilam Balam. Um era lunar e servia, em função da sua luminosidade, para as pastagens e para as saídas noturnas da cabrada; o outro, solar, sem sábados nem domingos e com apenas um dia santo por ano: 25 de julho, dia de São Tiago, o único dia do ano em que não botava as cabras até à meia-noite, não fosse a maldição cumprir-se. O sábado era a sétima-saída; o domingo, a primeira. Neste seu formidável desafio de cabeça, defensor acérrimo dos mais pequenos e necessitados, tentou ainda retribuir ao mês de fevereiro o dia roubado pelo ciumento Imperador Augusto, para que o seu mês (agosto) fosse tão longo – 31dias – como o de Júlio César (julho), mas devido ao facto de tal modificação mexer com o dia de São Tiago, que calharia assim no dia 24, não se atreveu a brincar com a profecia.

 O Cabreiro da Meia-Noite era um homem com um estilo de vida tão maravilhosamente exótico e original que as beatas juravam ter ele ensinado às cabras o código de silêncio do contrabando. Ao ouvirem o seu assovio, imitador do figueirós, os animais escondiam-se, como camaleões, silenciosos, entre as cinquenta sombras dos arvoredos, iludindo as visitas inesperadas dos donos das propriedades. Entre os muitos enigmas da sua vida, creditavam ainda que o “Cabreiro do Apocalipse”  teria um pacto, não com o São Tiago, mas com São Cipriano, pois, como tantos outros da aldeia, lia o exotérico livro Capa Negra com a voracidade que Alonso Quijano devorava o Amadis de Gaula. Diziam que as cabras sabiam exatamente quando chegava a meia-noite do dia 25 de julho: “Os olhos começam-lhes a alumiar, e elas veem como se fosse dia. Nem os lobos entram nelas nessa data!”

Na realidade, o Chiquinho usava outras artimanhas. Falava com as cabras em altas vozes de noite, pelas encostas, para que os ecos multiplicassem a conversa e os lobos pensassem que ele não andava sozinho. Se isso falhasse, as pedradas da sua funda de David eram mortíferas. Gabava-se de acertar em lobos a cinquenta e um metros de distância e, para glória do seu braço, matar raposas a cinquenta, quando estas atacavam os cabritinhos recém-nascidos. Para casos extremos de solidão, levava as cabras a beber, pois os espelhos de água duplicavam a realidade.

Coisa que ele nunca esquecia era de cumprir a sua promessa. O cabrito mais arredondado, cordeiro sacrifical, ia diretamente para o São Tiago, como remissão dos seus pecados, pois, nesse dia, à meia-noite, com a gente no arraial e com as cabras esfaimadas de um dia inteiro, aceibava (devastava) as melhores pastagens. O grande problema aqui eram mesmo os cabritinhos mais pequenos, que não tinham ainda aprendido as técnicas do silêncio nem sido vendidos na festa. Sem outro remédio, deixava-os sozinhos na corte, balindo traumatizados entre a fome e a solidão, não deixando cerrar olho aqueles vizinhos que tinham maus dias e piores noites, e não desejavam que um dia de festa lhes arruinasse a rotina. Os cabritos sabiam disso e vingavam-se na madrugada seguinte, correndo e saltitando alazarados, fazendo-o deitar a língua de fora. Só quando eles paravam, para retouçar pelas veredas, ele conseguia readquirir finalmente o fôlego, à beira de um ataque de coração.

Muito padeceu o Zagal de São Tiago por ter vivido numa época em que não havia direito à diferença, o seu estilo de vida andava nas bocas das beatas. Talvez por isso, o “romany rye” (amigo dos ciganos) se desse melhor com os calós, aliás desenvolvendo um conhecimento apreciável da cultura rom. Sem eles tudo seria mais difícil, pois eram las gitanas as únicas que tinham paciência para fazer contrabando de cabritos para criação, pedigree Chiquinho, símbolo de qualidade. Levavam-nos presos por uma trela ao pescoço e com uns farrapos ensopados em vinho com açúcar, em volta do focinho, onde eles lambiam, não lhes restando tempo para se delatarem com os seus balidos.

O Cabreiro, habituado à solidão bravia do monte, com tempo para meditar, aí ficava horas e horas, com o seu olhar maravilhado, fitando o horizonte, esquecido do tempo, a falar com as cabras. Mas de retorno ao povoado, com necessidade de comunicar-se com gente, não esquecendo o seu lado humano, puxava dos seus badalados choques maravilhosos – não era homem de deixar as beatas sem resposta, seu pesadelo existencial – verbalizando alto e bom som:

 – Que é que estas mulheres têm a ver com o que adultos consentidores fazem na cama, consolando-se uns aos outros sem fazer mal a ninguém? Deus tem muito mais em que importar-se, como inspirar a ajudarmo-nos uns aos outros.

Mas as beatas provocavam-no, alcunhando-o de o “Cabreiro do Apocalipse” e ele contra-atacava com mais uma das suas tiradas peregrinas:

 – Se eu mandasse, por algum milagre, manda vir um avião, ao sair da missa, a chover bacalhau pelas janelas, e depois, enquanto andáveis alazaradas a recolhê-lo, mandava vir outro por cima, com seixos, deixando-vos lá debaixo, enterradas!

Feitiço de Amor

Naquele dia em que o destino marca a hora, a sesta adormecia a aldeia, na pausa do dia. Lá ia Azúcar Moreno, com uma pequena cesta, acabada de fazer, pendurada no braço, mostrando pressa em chegar, ante um Sol abrasador. A beata-mor, sempre vigilante, viu-a e foi no seu encalço. “Contrabando a esta hora não deve ser; e coisa boa daqui também não deve vir!” – pensou.

 Foi atrás dela até aos Moinhos. A cigana abriu a cancela e subiu a custo para cima do cubo inclinado do Lagar, que servia para projetar a água em jato e mover a roda que triturava a azeitona. Toda contente, cabelo ao vento, pediu licença ao figueirós, com o seu assovio, para entrar nos seus domínios, e a autorização veio devolvida no canto do pássaro. Ripava uns figos lampos para a cesta, pensando estar sozinha, mas não era assim.

 A beata tinha-se escondido entre o milheiral da entrada, a sul, perscrutando tudo à sua volta, ciumenta que a cigana conseguisse comunicar-se com as aves, enquanto o Manuel, dentro do Lagar, descansava também ele a sesta. Uns ruídos acordaram-no e o rapaz saiu para ver o que estava a acontecer. A cigana, ao vê-lo, ficou a tremer, pensando que ele iria esmagar-lhe a cesta na cabeça. Mas o jovem, ao contrário, puxou de cima uma cana de figos mais maduros e entregou-lhos com uma gentiliza que a fez corar. Transbordante na química, o ambiente aqueceu. A beata reparou nos faiscantes olhos da cigana que se cruzaram com os de Manuel e ficava deliciada. Mas para o seu azar, cada um retirou a mirada, ainda assim fora como se os dois tivessem ficado enfeitiçados, vontade de beijarem-se não lhes faltou. Naquele estado alucinatório, caras coradas, envergonhados, não se atreveram a olhar mais um para o outro.

Manuel voltou para dentro do Lagar e ela foi-se com uma cesta de figos.

Mas a cigana ficara confundida com aquela estranha sensação, convencida de que o feitiço dos olhos do rapaz a tinham feito pecar. Houvera preferido não ter aquele alboroto no coração. Sentiu de golpe uma paixão que uma mulher casada nunca devia ter. A beata franziu as sobrancelhas e ficou furiosa que a coisa terminasse aí, ainda assim projetou na realidade o que fervorosamente queria que tivesse acontecido.

As suspeitas espalharam-se imediatamente pela Ágora do Cruzeiro. “A cigana tinha estado no Lagar do Chão da Guerra com o jovem criado do Ruivo, recém-chegado de Bustelo a Vilarelho!”

A Serrada da Velha

A Ciganalândia era como um couto cigano dentro da magnética aldeia, do outro lado da fronteira, que, como um messias salvador, Terra Prometida dos refugiados, a todos dava guarida, e aí se acoutaram enquanto a guerra durou. Cresceu assim rapidamente em torno de um grupo forte, chegando a ter, no seu apogeu, cinquenta e um membros, amontoados uns em cima dos outros, pela pequena casa e pela eira do Sr. Domingos, mais os fantasmas da família de Azúcar Moreno.

 Para manter-se coeso, as regras eram espartanas. Se houvesse uma transgressão sexual de uma cigana com um payo, o crime tinha que ser imediatamente confessado e a culpada logo excomungada do clã. Azúcar Moreno não confessou nem tinha que o fazer, pois, entre os dois, fisicamente nada tinha acontecido, mas algo se tinha passado, e era sério, muito sério.

Nunca tivera um sentimento igual nem sabia bem o que aquilo seria, tão diferente daquele que diziam ser amor quando o Krisnitóri a pedira em casamento. Assim de chofre, veio-lhe à cabeça uma dúvida: “amaria em realidade o seu marido?” Pelo menos, paixão assim nunca houvera. Preocupada com o acontecido, foi ter com a astróloga do clã e a reconhecida capacidade de esta visionar o futuro. Contou-lhe o que se tinha passado. Que aquando do seu casamento, no ritual da ânfora atirada ao ar, esta se tinha despedaçado em cinquenta e um cacos, todos tinham escolhido a sombra do Sol, menos um.

A vidente interpretou o acontecimento, manifestando-lhe que alguns presságios conspiravam contra ela: o caco que escolhera o Sol seria ela a apartar-se do clã: “¡Es la Maldición de Santiago!” A lenda aliás referia que o santo tinha expulsado os mouros de Vilaiete – nome mourisco do aldeamento – também por causa da poligamia, mas tê-lo-ia feito, sem saber, de uma forma menos edificante, quando eles tinham dificuldades em defender-se, em pleno Ramadão. A partir daí, coisas más começaram a acontecer nessa data, pragas lançadas pelos muçulmanos, expulsos da sua terra que tanto amavam. Fazia ainda parte da maldição que os próprios fiéis iriam esquecer o padroeiro nesse dia assinalado, tanto que o Chiquinho nem as cabras se atrevia a botar para o monte.

As suspeitas do que teria acontecido continuavam a ouvir-se pelo Cruzeiro, mas o Manuel negava tudo e só acreditava quem queria.

 No dia da Serrada da Velha, as beatas irritadas por não estarem a levar a água ao seu moinho, e já depois da recusa dos sacristães – o raspanete do padre tinha-lhes servido de emenda – instruíram umas raparigas a ir serrar o velho e a cantar uma quadra à cigana. As jovens, na idade da irreverência – também não seria mau eliminar a concorrência – o foco de atenções dos olhares masculinos, dirigiram-se então com as tradicionais latas para o Cegonheiro e começaram a serrar, a rascar as paredes da rústica habitação, fazendo grandes alaridos. Depois fez-se silêncio, pois o velho já estaria aviado. As moças deram então voz cínica à suspeição, lançando mais que uma sombra sobre a cigana:

Hoje serramos este velho

Por não querer acreditar

Que a morena de açúcar  

Mescla la sangre no lagar

A Cigalândia entrou em polvorosa. ¿Mescla la sangre con un payo? ¡La mala dicha !” Mais assustado do que nunca, o Krisnitóri estava arrepiado. Não sabia se devia dar ouvidos aos cânticos ou à sua segunda mulher. Tremendo como uma vara verde, Azúcar Moreno lutava naquele momento fatídico contra o destino. Pressionado pelos membros do clã, o Krisnitóri teve que endurecer a sua posição: o assunto seria dirimido no tribunal do Kris, regido por regras do clã.

 No Kris respirava-se um ambiente de cortar à faca, nervosismo, desconfiança. A votação ditou um empate, mas à mulher de César não bastava ser fiel, tinha também que parecê-lo. Ao Krisnitóri bem lhe custou o que estava a acontecer, mas ele era o chefe e tinha que dar o exemplo. A cigana interpretou a maldição de São Tiago como uma mensagem do beng, as forças do mal que lhe vinham prestar contas por um escândalo de amor proibido: não ter controlado os sentimentos de mulher casada ante o feitiço dos olhos de outro homem, para mais um payo. No tribunal ouviram-se gritos do cante jondo para informar a todos que ela iria ser expulsa do clã. Nem nos seus mais otimistas desejos, as beatas pensariam na comoção que tal invenção iria provocar na Ciganalândia.

Azúcar Moreno sentiu uma dor por dentro, como se agulhas se lhe espetassem na carne, nos ossos, no coração. No patriarca instalou-se o medo e, para tentar atenuá-lo, foi buscar a botelha e bebeu até cair desmaiado.

Foram as beatas, e não as duas mulheres, como aquelas auguravam, que acabaram com o pobre do Krisnitóri. Uns diziam que ele ia perdendo a batalha com a botelha; outros que já tinha perdido a guerra c’a garrafa.

O clã teve que redobrar o trabalho, fazendo albardas, cestos e outros arreios agrícolas, para suprir a organização e a ausência do trabalho do patriarca, trabalhador reconhecido, e as mulheres ocupadas toda a santa noite no contrabando não tinham mais forças nem disposição para alegrias.

O Adeus à Ciganalândia

 Era uma praga, um mau olhado, que as beatas lhe deviam ter lançado. El beng tinha revelado que em pouco tempo não teria lar, que teria breves momentos de felicidade, mas que, ainda assim, fizesse o que o destino lhe reservava, que aceitasse aquele destino mágico, pleno de fantasia e ocorrências sobrenaturais, que seria lembrada até aos fins dos tempos como uma heroína, cantada pelos poetas do povoado. Uma lenda tinha nascido.

Azúcar Moreno regressou na memória à adolescência, aos seus tempos áureos de cantora e bailaora, cabelo apanhado pela peineta, deusa em movimento, braços ondulantes como serpentes, sensualidade requintada, na ribalta das atenções e das honrarias, distribuidora de alegrias em tempos difíceis, via-se subitamente atacada pelo síndrome do elefante. Sentiu saudades de Córdova, queria regressar à sua terra no fim da vida, mas a guerra impedia-a. Pensou naquele dia fatídico em que perdera tudo quanto amava, quando os malditos camisetas azules lhe massacraram a família mais o que restara do clã. Viu-se obrigada a juntar-se a outro grupo que não conhecia, como último recurso para fugir à morte, uma tribo anacrónica que ainda praticava a poligamia.

Entretanto, o tribunal, respirando ódio, deliberou:

¡A partir de mañana serás expulsa del clan!

Houve emoção e lágrimas na hora da despedida, no adeus ao Cegonheiro.

Reconhecessem, ou não, as beatas: Azúcar Moreno era a alma do povoado. O cemitério poderia estar cheio de insubstituíveis, mas não o Cegonheiro, que voltaria a estar encoberto por cinquenta sombras. A aldeia não tardaria a dar-se conta da sua falta, o povoado iria transformar-se num perene velório. As pessoas interrogavam-se “para onde se teria sumido, afinal, o Sol, que agora se recusava a brilhar, aquele oásis de alegria, em tempos tão deprimentes? Onde estaria el cante jondo, el duende, a batida do pandeiro que renovava as energias e amenizava o cansaço nos longos dias de labuta?”

Azúcar Moreno saiu com um esgar de dor e frustração, lavada em lágrimas “¡Cosas del destino, las fuerzas del mal, la Maldición de Santiago! ” com uma salva de palmas e alaridos dos seus fiéis membros do clã, batendo com el palo en el tablao, tentando servir-lhe de consolo. E os ciganitos mais pequenos, os filhos de Maruja, a primeira mulher do Krisnitóri, esperaram-na à saída para uma última ronda de mimos. Tensa por dentro, beijou-os fortemente, com dor, e partiu, numa comovente despedida, mas não sem assombrar as fanáticas com uma última praga, num momento de ira e vingança, em tom premonitório:

¡Abracadabra!

Malhayam las fuerzas del beng 

Que con su maldito querer

Malhayam las viejas malas 

Que en su estral van arder

Estava completamente sozinha. Tão longe de Córdova, de tudo e de todos “¿qué haces en este mundo?”, dizia-lhe uma voz interior. O filme da vida continuava a desbobinar-se-lhe na cabeça. A ideia de deixar para trás tudo o que amava, pela segunda vez, tornou-se insuportável. Pensou no caco do púcaro do matrimónio que escolheu o Sol e não a sombra, como se quisesse tornar-se uno com ele. Reconhecia agora que aquele casamento, que para este clã parecia banal, normal, fora uma necessidade e não amor. Era como se tivesse sido violada uma vida inteira. “¡Cómo es fácil una mujer engañarse! ¡Hay tradiciones que no son buenas: la poligamia, el canibalismo, cuando los hijos dejaban a los padres en el monte de la muerte…!

Estava assustada, aterrorizada, impregnada de presságios. Correu pelo lameiro aos gritos, urinando pernas abaixo, sentindo que o destino a tinha de novo abandonado. Era São Tiago que lhe vinha pedir contas. Um castigo justo. Amaldiçoada pelo tribunal do seu povo, sentia aquela dor aguda, mais por ter que deixar as crianças, as amigas, do que pelo próprio Krisnitóri, de quem na realidade sentia agora mais compaixão do que amor.

Queria esquecer que fora uma mulher revezada, num triângulo de amor, que partilhara um homem. As condições em que vivera tinham-na impedido de forjar a sua própria vida. O desengano tinha chegado tarde demais. Agora, completamente desperta, acabara de compreender o amor puro, compreendendo-se a si; os seus olhos viam com mais claridade. Se tivesse uma segunda vida, lutaria pela igualdade das mulheres ciganas, tidas como coisas, para que deixassem de ser submissas e escravas sexuais.

Enquanto repassava na cabeça o encontro com o Manuel, nos Moinhos, já dono do seu coração, odiou-se momentaneamente. Os pensamentos de culpa não lhe saíam da cabeça. Parecia que o diabo lhe trazia à memória aquele olhar incisivo sobre os seus olhos, os seus seios, as suas ancas… e ficava a tremer, pois, em vez de o repudiar, o feitiço a tinha feito gostar. Tinha sucumbido aos impulsos do corpo. Aquela mirada provocara nela um encantamento que uma mulher casada nunca deveria ter. Ora isso era abominável, era pecar. Estava embruxada! Agradeceu à terra que a acolheu, aos rapazes travessos seus devotos admiradores, pediu perdão a São Tiago por ter desassossegado e conspurcado a sua aldeia. Agora que tinha encontrado o feitiço do amor e, pela primeira vez, se tinha encontrado a si própria, era o sinal que a sua hora tinha chegado. Era a maldição de São Tiago.

No progressivo acercamento de um desenlace, ressaltava à vista a bondade do seu coração. A filha pervertida de Córdova, perdida de Sião, estava muito longe do seu paraíso e nem tinha um fraco rocim que a levasse de volta. “¡Sé rápida muerte y ven pronto!” A pena e a melancolia já vinham acabando com ela. O corpo caminhava para o abandono e o espírito para as estrelas. Queria levar consigo as mais belas recordações do povoado, deixava as pegadas marcadas no pó da jornada, contando os passos da procissão de uma penitente a sós, esta sim, por sua própria eleição, pedindo purificação para o espírito antes de libertar-se do corpo: “¡Ábrase el caminho hacia mi libertad!

Encomendou-se ao Cristo de la Agonia, rezou uma última vez para que a maldição de São Tiago se quebrasse, que Ele não fosse esquecido como ela o foi pelo tribunal da sua gente, gente que tanto amava. Caminhava pelo carreiro sem vivalma, contemplando o crepúsculo.

 O Sol, uma bola de fogo, sumia-se no horizonte. Primeiro reduzido a três quartos de círculo, depois a meio, um quarto, e finalmente...cinquenta sombras, que também desapareciam, quando, repentinamente, Júpiter descarregou uma explosão de luz que a cegou momentaneamente nem se apercebendo que o Chiquinho vinha a correr ao seu encontro.

 O poço da Touça Grande, de águas profundas e cobras vivas, estava ali tão perto... à sua espera. Arrancou a correr, sentiu os pés descolarem-se finalmente da Terra, enquanto já voava pelos ares para... a eternidade...

(em desenvolvimento)

O Nueiba, abril de 2016

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