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Crónicas


Nueiba: Histórias Rudimentares



O Fuxido e o Cabaço

(A Maldição de São Tiago X)

Todas as ordens autoritárias dependem para o seu sucesso da insatisfação orgástica das massas

Wilhelm Reich

Manuel era um sombrio criado de servir que tinha chegado há pouco de Bustelo. De sol a sol na lavoura, contrabando ao luar, jovem, alto e forte, mal apareceu na aldeia, passou rapidamente de um ilustre desconhecido a um dos nomes mais badalados nos meandros do contrabando. Até ao seu aparecimento, era impensável que um recém-chegado subisse aonde ele tinha subido em tão curto espaço de tempo “que ali havia muito que aprender.” O novo sistema da terra não era assim tão fácil de assimilar, mas ele entregou-se de corpo e alma e, em pouco tempo, reclamava um lugar numa quadrilha de Contrabando Titular.

Porém, não era só na atividade noturna que Manuel tinha sucesso. Trabalhador, bom rapaz, elegante e bem-parecido, tornou-se imediatamente num íman para as raparigas. Aqui quem ganhava era o patrão. Nas vindimas do Muro, no arrebanho da folha da Alvorinha, na apanha da batata da Curtinha, da azeitona … as moças casadeiras apareciam de todos os lados, suspirando para estar perto do criado. Um verdadeiro achado. O lavrador dava-se assim ao luxo de rejeitar algumas das moças que se ofereciam a molhado (tarefa de trabalhar por comida) para as fainas agrícolas, ávidas de poderem mostrar os seus dotes ante tão apetecido candidato. Um indivíduo, que nada tinha a ver com a aldeia, identificou-se de tal forma com o seu estilo de vida, que se transformou num verdadeiro portador da sua cultura.

O Fuxido

 Se para Manuel a vida corria às mil-maravilhas, já o Fuxido – uma dupla que só se desfez quando Manuel foi para a tropa - não tinha a mesma sorte. Vivia ainda dias difíceis, que lhe tinham roubado o sono e o sorriso habitual, tendo até deixado de cantar. Com um semblante mais carregado que El Caballero de la Triste Figura, eram breves os momentos de felicidade; cada vez lhe pesava mais a catadupa de espíritos daqueles compañeros que com ele partilharam a carrinha a caminho do fuzilamento (o Fuxido foi capturado por se ter recusado a entrar no exército franquista), vivendo com este fardo permanente às costas. O seu amigo que passara de médico de Oimbra a alcalde republicano de Verín, Carlos Caamaño, já tinha sido fuzilado. Ele próprio parecia viver em tempo emprestado.

Primeiro dado como desaparecido, depois como morto, com a ajuda do Manuel, o Fuxido ia contudo sobrevivendo numa dança de cadeiras entre fugas e sobressaltos, desde a casa do Ruivo, passando pelo Labirinto do Desaparecimento (no palheiro grande), até aos Moinhos. Mais que uma vez, a Secreta e a Brigadilla se apresentaram em casa do patrão a procurá-lo e o Fuxido escapava pela porta detrás, pondo-se a caminho da casa do padre de Bustelo. Dormia de dia, vivia na noite, sem comunicação com o exterior, nunca se adaptou ao silêncio ensurdecedor dos fantasmas fuzilados e à claustrofobia dos seus esconderijos. Para tentar acalmar os nervos, libertar-se daquele isolamento exasperante, tinha apanhado o vício dos “mata-ratos” os cigarros Provisórios.

Os Provisórios e os Definitivos

Não se sabia, de facto, como os Provisórios tinham aparecido no mercado. Na cartilha podia ler-se Tabaco francez, para efeitos propagandísticos. Eram, porém, fabricados pela Companhia Portuguesa de Tabacos. Era uma resposta à concorrência, que acabava de lançar uma nova campanha publicitária agressiva e bem organizada sobre os Definitos “os cigarros dos conservadores, cuja vida sexual frustrada e medo ao desconhecido os obrigava a viver sempre no passado, nunca evoluindo ” diziam os republicanos. O Filósofo, o evolucionista, ia mais longe: “Se fosse por eles ainda não teríamos descido da árvore, muito menos levantado as patas da frente!”

Os cigarros Definitivos traziam também o seu trocadilho: “Vale mais fumar Definitivos provisoriamente do que Provisórios definitivamente.”

– Não fiques aqui parado, homem, faz alguma coisa!- dizia-lhe o Manuel.

Na realidade, desde tempos remotos que o tabaco, proveniente do Brasil, era dos produtos mais contrabandeados, mas a guerra tinha dado lugar a produtos de primeira necessidade: a farinha e as batatas. Era mercadoria leve – não precisava de acarretar os tradicionais 30 quilos de volfrâmio ou armas, produtos que ele se recusava passar, pois iam diretos para os golpistas - e ele por si só se valeria como mochillero independente.

– Arrisca, nem que seja com uma descida aos infernos- atirou-lhe o Manuel. - Leva os cigarros para dar ânimo às Brigadas Portuguesas! Consciencializá-las é preciso!

Apesar do Estado Novo financiar generosamente os falangistas, ainda havia por cá quem suportasse os republicanos, e ele tinha que aproveitar a oportunidade, colocar humildemente o seu grão de areia na luta, fazer valer todas as situações que se lhe apresentavam. Sairia, assim, do atoleiro em que estava enterrado. Venceria aquele sentimento de impotência, apaziguaria a guerra que se situava nas suas entranhas. Aliás, o lema no maço do tabaco continha um germe verdadeiro: a aversão que grande parte dos portugueses tinha por Salazar era a mesma que Los Republicanos tinham por El Caudillo. Com o racionamento de La Tabacalera Española, o Fuxido ressuscitava assim o tabaco como produto a contrabandear.

De sevilhana no bolso, enfiou o pasamontes na cabeça, agarrou o bastão junto com a marmita, meteu uma garrafa de aguardente no saco, pois a noite ameaça chuva e …toca a andar, ao sabor do vento, que só pelos montes, de noite, poderia saborear a liberdade, quem sabe se não se cruzaria com Azúcar Moreno, a mais bela contrabandista que agora passava pelos trilhos da natureza. Outra desamparada fruto de mais um capítulo da maldição de São Tiago.

 “É um homem com cojones!” dizia-se entre dentes na aldeia. Com o medo de ser apanhado, fazia-se acompanhar pelo cão do Ruivo, treinado para atacar falangistas. O animal atacava logo que pressentisse o dono em perigo. Tinha que defender a sua carga e ao mesmo tempo iludir, pelas fragrâncias da floresta, captadas pelo cão, os seus perseguidores.

Ganharia bem, se esse fosse o objetivo, mas o seu verdadeiro desiderato era ajudar a causa que muitos já davam por perdida.

As Brigadas Internacionais iam fazendo o que podiam, enquanto Hitler, Mussolini e Salazar ajudavam Franco massivamente, armando-o até aos dentes. Portugal tinha-se transformado subitamente no maior importador europeu de armas, material que por aqui passava diretamente para os franquistas. Ainda assim, meio vencido, mas não convencido, o Fuxido podia perder tudo na vida menos a esperança.

A cartilha de 24 custava 1 escudo e 50 centavos. Se levasse uma quantidade mínima de cem maços, ele podia vendê-la a dois; não aceitaria pesetas pela sua volatilidade, numa altura em que um guarda- fiscal ganhava 250 escudos por mês e um jornaleiro 5 escudos por dia.

Numa só saída, conseguia transportar as cem cartilhas e ainda trazia no regresso um fardo das famosas baratuchas alpargatas, dos poucos produtos que continuavam a vir de lá para cá, uma vez que aquela maldita guerra tinha acabado com quase toda a produção espanhola. Um bom negócio, se a saída tivesse sucesso. Se fosse apreendido, perderia tudo, seria novamente apanhado e... aí não haveria mais contemplações…fuzilamento.

Mas a sua prioridade era levar a mensagem às Brigadas Portuguesas que atuavam na fronteira, aquele significado escarrapachado em sigla do nome dos cigarros. A guerra já desenhava um fim e eles estariam em maus lençóis quando regressassem a Portugal, se é que pudessem regressar!

Los Rojos: O Fuxido, o Demétrio e o Juan

Para alguns um revolucionário, para outros um aventureiro, o Fuxido, de alpargatas e calças atadas no fundo com um cordel, que As Chás o esperavam, sempre pronto a dar-lhes corda, com um cigarro na boca, usava a boina preta com a dignidade do alcalde republicano de Verin, à procura de um destino indefinido, que os astros se alinhassem e trouxessem outro destino, saía esporadicamente de noite do seu esconderijo, para levar o tabaco ao Muiño do Demétrio.

O Fuxido, Demétrio e Juan tinham nascido durante os anos da implantação da Confederación Nacional del Trabajo, altura em que em Portugal se implantava a República, fundação anarco-sindicalista, ao mesmo tempo que as organizações patronais formavam grupos de pistoleiros cujo objetivo era assassinar líderes sindicais. Os três, oriundos de outras tantas aldeias galegas vizinhas: San Cibrao, As Chás e Casas dos Montes, conheciam-se intimamente antes de La Guerra Civil, das festas, do futebol e do contrabando. Agora eram colegas de luta antifranquista, de ideologias diferentes que nem eles sabiam lá muito bem destrinçar. Só não era uma contradição porque tinham Franco como alvo. Nunca tinham ouvido falar de Marx nem de Bakunin, tinham, porém, assimilado por contágio uma ou outra das suas ideias. Mesmo assim, aprenderam novas palavras: falangistas, comunistas, anarquistas, vocábulos de que tampouco sabiam o seu significado, apenas declamavam os seus chavões mais por reação a Franco do que por ideologia: “De cada um de acordo com as suas possibilidades, a cada um de acordo com as suas necessidades.” dizia o Fuxido, para Demétrio e Juan retorquirem a frase mais libertária:

"Cada ato de destruição é um ato de criatividade. Há que destruir ordem vigente para que algo de novo apareça!"

La Falange

Fundada por José Primo de Rivera, inspirada no Il Fascio italiano e no darwinismo social nazi, La Falange foi o partido político por detrás do Alzamiento Franquista. Ideologicamente associado a fundamentalistas religiosos, El Falangismo assentava no culto da tradição empedernida e, incompreensivelmente para um verdadeiro cristão, como o Missionário e o Filósofo não se cansavam de dizer, menosprezo desumano pelos mais fracos, pelos perseguidos e pelos indefesos, cuja onda eugénica, pureza racial e seleção artificial, podia levar ao extermínio raças indesejadas, das quais os judeus e os ciganos eram os primeiros a abater.

 Fechada sobre si mesma, a gnose fascista era iluminada por dogmas, falácias e tabus, com grande influência sobre os menos ilustrados, promovia a repressão sexual que, segundo Wilhelm Reich, um dos psicanalistas mais estudiosos do fascismo, causava neuroses, afetando o desenvolvimento normal da personalidade.

 Para um fascista, a cultura era assustadora. Goebbels, ministro da propaganda do Terceiro Reich, não demoraria a confirmá-lo com a sua frase niilista mais famosa: “Eu quando ouço falar em cultura, lanço a mão à pistola!” A educação que desmontasse os seus mitos e preconceitos era a depravação social. Os intelectuais não passavam por isso das bestas mensageiras do Apocalipse. O verdadeiro sentido da vida era para eles um constante combate até à autodestruição, luta até à última gota de sangue, como aliás o seu lema não se cansava de apregoar: “¡Viva la muerte!”

É neste contexto que Juan fica confuso. O que estava a defender não encaixava, afinal, com quem ele era realmente. Apercebe-se, então, no estômago do monstro, que a guerra tinha sido desencadeada por um ditador autoritário, em prejuízo da democracia, contra gente sem poder, sem meios e sem instrução, classe a que ele pertencia. Era um golpe dos poderosos sobre os mais fracos para impedir que o amanhecer chegasse a todos. Franco deixava, assim, de ser o seu modelo. A mudança não foi fácil no início. Teve que fugir à constante perseguição, aprendeu a viver sozinho pelos montes, entre as fragas escorregadias e silvas arranhadoras, amante da caça, destro com a pistola, atraído pelo perigo, transformou-se num franco- atirador, levando a liberdade até aos limites. Começa assim uma nova vida para ele, que de repressões bastara-lhe o exército franquista, e passou-se para o extremo libertário, numa transição antagónica e abrupta: o anarquismo. Transformou-se num transgressor que, nos intervalos da luta, ia fazendo pela vida como gaiteiro, animava as festas e as mulheres da sua perdição, enquanto Demétrio era passador, utilizando o Muiño, parado já há algum tempo, para armazenamento de contrabando.

 Fora, aliás, Demétrio, que tão bem conhecia os Moinhos do Chão da Guerra, um dos primeiros a levar comida ao fugitivo, logo que soube da sua fuga. Este seu companheiro, o Fuxido, preferira lutar a entregar-se, feriu vários dos seus captores no percurso, saltou da carrinha a alta velocidade e escapou da morte monte dentro como uma lebre, valendo-lhe, para além da alcunha o Fuxido, outro cognome em galego, o Coello. Anos volvidos, Juan e Demétrio viriam a ser imortalizados no Bombardeamento do Cambedo.

 A Missão   

Quantas vezes o Fuxido tinha moído farinha nos Moinhos, feito azeite no Lagar, quantas vezes tinha aí descansado na estância perdida!?

 Quantas vezes necessitara de um lugar solitário como este, no meio do nada, resguardado pelo arvoredo, onde podia escutar a floresta e sonhar, disfrutar do seu tempo sozinho, que lhe tirasse da cabeça cenas onde só a injustiça e as trapaças triunfavam!?

 A solidão ajudou-o a entender melhor os seus sentimentos. Mas agora, tanto tempo escondido, longe da família e dos amigos, a vida virou um pesadelo. Num abrir e fechar de olhos, parecia um homem de outro século, tal era o feitiço do tempo.

A memória trazia-lhe de volta aquele dia assinalado em noite de lua cheia, quando ele se ergueu pela primeira vez, após o escape, para se lançar à reconquista da liberdade. Tinha matado a sede na Facha, deixou o cão beber para estarem melhor preparados para uma travessia longa e tormentosa. Cerca de meio quilómetro mais à frente, o cão farejou a porta do Lagar, que servia como armazém onde se guardava o contrabando, e começou a esgaravatar.

 Da virgindade selvática do monte, ouvia-se o regougar da raposa e o uivar do lobo. Era a sua primeira saída, sentiu-se como um intruso.

 Entrou, acendeu o mechero (isqueiro) para apagar a escuridão e encontrar o paquete dos cigarros que Manuel aí tinha deixado, entre os sacos das batatas, à espera do mesmo fim. Olhou para o velho espelho na parede e tomou consciência do muito que tinha trocado. O espelho sempre exercera sobre ele um grande fascínio, mas desta vez estava tão resplandecente no claro-escuro que lhe fez estremecer o coração. Não conseguiu passar sem mirar-se várias vezes, para ver se ainda existia, se a reflexão era mesmo a da sua própria cara ou a de algum fantasma dos seus compañeros que agora o acompanhavam na tela da mente. Relembrou o momento aquando o moleiro interrompera o trabalho para lhe dar guarida e fora obrigado também ele a fugir acossado pela Brigadilla. Sentiu saudades dos momentos mais felizes da sua vida que aí tinha passado, dos figos da figueira, das uvas, do cheiro do azeite, do pão de milho, das migas, das lebres assadas recém- caçadas, das farras, das mulheres nas noites de Vénus… e reencontrou a alegria.

Os edifícios pareciam-lhe menos espaçosos, entre o contrabando da esperança e o esconderijo do seu desespero, uma vez que um homem não deve pensar muito na liberdade quando lhe falta.

 Já não cantava há tanto tempo! Soltou a imaginação por aquelas quatro paredes, a bússola dos homens que caminhavam no escuro! Pegou na mochila do tabaco e saiu cantarolando a canção das Brigadas Internacionais:

Si me quieres escribir,

Ya sabes mi paradero

Tercera Brigada Mixta   

Primera línea de fuego …

 Os Provisórios não só eram o tabaco dos republicanos, como a sigla encapotada posta a descoberto iria levantar-lhes o astral, dar moral aos portugueses voluntários que ainda lutavam na fronteira pela liberdade, que por esta altura deviam estar nas lonas. A coragem não estava a ser recompensada e o fim anunciava tragédia, augurando represálias salazaristas a que iriam estar sujeitos.

Quando os cigarros apareceram no mercado, já a Brigada estava na luta e ele queria mostrar-lhes que por cá ainda havia quem não os esquecesse, republicanos que os traziam no coração. Nunca se poderia deixar um amigo para trás, que a um soldado querido nem as balas lhe entravam. Havia, portanto, que espalhar a mensagem, animar as hostes, levantar-lhes o espírito, pois poucos sabiam o que a cartilha escondia, poucos sabiam o significado emblemático.

Quando entregou o primeiro paquete a Demétrio, colocou-lhe um pequeno maço na frente dos olhos e disse-lhe “¡escúchame bien!”, explorando a sigla, para que este passasse a mensagem, cada letra era a inicial de uma palavra, recitando entusiasmado, alto brado, o acrónimo Provisórios para ser gritado ou simplesmente repetido como um mantra:

Portugueses republicanos os vossos irmãos soviéticos ordenam retirar imediatamente oliveira salazar.

O Candidato

No polo oposto, a vida corria às mil-maravilhas ao seu companheiro. Tinha finalmente chegado à fase da confirmação como elemento nuclear do contrabando, estava a um passo da jornada iniciática. Manuel era daqueles que não pedia muito tempo para se integrar, estava prestes a dar o salto. “Parece que já vem com o trabalho de casa feito”, dizia-se na quadrilha.

Quando mostrou estar graduado nas lides, viu-se assim selecionado para prestar provas finais na sólida e competitiva Quadrilha dos Guerreiros, na exotérica atividade da noite, que faziam do povoado uma verdadeira Aldeia que Nunca Dorme, visto que de noite ali ninguém pregava olho. Enquanto uns corriam com o fardo às costas, outros não dormiam com o barulho das corridas, adicionados aos latidos dos cães e ao ruído das pistolas, a star dos guardas-fiscais, a astra dos carabineiros.

Para um jovem que há pouco tempo saíra de Bustelo, cheio de sonhos, ser Contrabandista Encartado era o culminar de uma saga, símbolo de estatuto social, seria respeitado e temido. Finalmente, cumpridos todos os requisitos, via-se agora escalado para o famoso clã, a quem teria que jurar lealdade de tribo, pois a Quadrilha dos Guerreiros gabava-se de selecionar os seus membros com a mesma exigência que Cristo escolhera os seus discípulos. Era uma organização de tal forma sólida e compacta que assustava os agentes fronteiriços.

Quando tudo parecia bom demais para ser verdade, eis que apareceram nuvens negras no horizonte. A ascensão do forasteiro foi tão rápida, naquele ambiente tão competitivo, que causou alguma surpresa nos secretos círculos do contrabando. Muitos mostravam admiração pela inclusão do novato. “Parece impossível que um forasteiro inadaptado chegue aqui e nos passe logo a perna!”

 Manuel não conseguia disfarçar a felicidade, punha grande entusiamo em tudo o que fazia. Partilhar o trabalho com uma das figuras mais emblemáticas do contrabando era uma honra. Ninguém representava tão viva a mística, passador a tempo inteiro, com larga experiência. O Quadrilheiro era o mestre. E quem não queria trabalhar com o mestre? Chamado para um posto de grande responsabilidade, o candidato fazia tudo para o acalmar: já tinha palmilhado os trilhos, os itinerários, esforçava-se por conhecer as manhas dos guardas e dos carabineiros, aprendera as senhas e as contrassenhas, uivando como os lobos quando a quadrilha ia mais dispersa, trinando como os rouxinóis quando ia mais compacta. Nem ele próprio imaginava que as coisas lhe fossem correr tão bem.

Falem Agora ou Calem-se para Sempre

A proposta de inclusão do Manuel na quadrilha vinha do próprio Quadrilheiro: O Arquétipo, consciente do potencial do futuro Contrabandista Encartado, também com medo que fosse desviado pelas quadrilhas da concorrência.

– É um verdadeiro contrabandista, transporta a mística vilarraiense! Basta olhar nos pequenos detalhes para ver que estamos perante alguém especial - disse o capataz - oiçam só como ele repete as regras. Já fala como um de nós: “Há comportamentos que todos temos que respeitar ou seremos expulsos da quadrilha… Provocar danos mínimos nas terras por onde passamos, deixar tudo como quando se entra… Feitos prisioneiros nunca revelar a nossa procedência… O que se passa no grupo fica dentro do grupo…”

Mas a inveja montou a barraca do medo à diferença, ao desconhecido. E a melhor maneira de construir uma conspiração é vesti-la de xenofobia. Rezingão, alcunha que rimava com ação, longe de ser um mero moço de recados da ordem vigente, era um rebelde dentro da quadrilha e começou logo por questionar a inclusão do novato, não fosse passá-lo na hierarquia, lançando farpas para apertar ainda mais o escrutínio.

– Ele não é vilarraiense, não é um de nós!

Mas não ficava sem resposta:

– Encarna cada vez mais a nossa cultura! E os de fora aqui sempre foram tratados com respeito. Está na génese da aldeia, uma boa parte da população tem procedência na Galiza, outra em Bustelo. Então em que ficamos? – perguntou, de forma retórica, o capataz.

Mas outros membros com peso dentro do clã também não queriam que ele entrasse no grupo de mão beijada, num exemplo de exigência e pluralidade.

– Deu um salto maior que a perna. Parece impossível que um passarinho novo de arribação chegue aqui de longe, ainda inadaptado, e, num ápice, salte todas as barreiras!

A relação entre Manuel e os quadrilheiros mais pastelões tinha-se azedado quando estes se queixaram de uma carga demasiado pesada para tão longa distância. E ele, na irreverência própria da idade, pediu ao capataz que lhe pusesse, ao invés, mais dez quilos de farinha ao lombo, que doaria, a expensas suas, ao “banco alimentar” dos republicanos com fome que dormiam ao relento pela linha da fronteira. A partir daí, ninguém queria medir forças diretamente com o “indomável”, estavam sempre a cortar-lhe na casaca.

– Sempre a falar bem do gajo. Que tem isto, que tem aquilo. Eu quero lá saber. Vai ver-se depois como o cabrão sobe, na prova final, com a farinha às costas, a ladeira da capela de Sant’Ana e desde aí até ao Muiño do Demétrio. Vai borrar-se todo. Mais a mais, ele não pode ser um Contrabandista Encartado porque ainda não a provou! E um garoto não é homem enquanto não a meta em quente! - concluiu o Rezingão

Os quadrilheiros mais realistas sabiam que Manuel tinha vindo para ficar e davam um efeito diferente ao mesmo dilema. Pensavam que o candidato era como um touro selvagem e uma experiência sexual o poderia amansar, não fosse rebentar com eles com as suas corridas infernais monte acima:

– É preciso amansá-lo! É como os touros bravos, só depois de montarem numa vaca ficam um pouco mais mansos!

O Cabaço

Depois de intenso debate, a inclusão de Manuel na quadrilha ficava cada vez mais tremida.

– Ainda tem que comer muita côdea! Ainda não a tchincou (provou)! Ele que o diga! - soltou o Rezingão, com os seus esporádicos comentários um quanto desmiolados, que contrastavam com as suas contribuições significantes para o grupo e que às vezes serviam também para sair da rotina.

– Então ainda não passou da fase de garoto a homem. E os garotos não podem ser bons contrabandistas porque ainda não chegaram à idade madura! - ouviu-se outra voz dentre os quadrilheiros.

  O capataz ficava angustiado com o que poderia acontecer, mas tinha as mãos atadas. Eram as regras. Bastava o veto de um dos membros para que ele não fosse aceite, o que desagradava sobremaneira ao Quadrilheiro.

– Ainda ninguém lhe satisfez as necessidades, não lhe tiraram as cócegas! Alguém que o desmame, que o garoto fique a saber finalmente quem é! Que lhe tire o cabaço! Eu não quero um pimpolho virgem a correr ao meu lado! - voltou à carga o Rezingão.

 E o Quadrilheiro, antes que houvesse uma disputa interna entre membros do clã - desrespeitar um dos afiliados era desrespeitar todo o grupo -, sentenciou logo a questão, como um verdadeiro líder, para dissipar todas as dúvidas. Mas sobretudo temendo que o Manuel fosse parar a outra quadrilha, pois o forasteiro seria um elemento indispensável para ir na frente do pelotão e puxar pelos quadrilheiros mais pastelões. Se dúvidas ainda houvesse se Manuel tinha tido ou não uma relação com Azúcar Moreno, aqui ficavam enterradas.

O Quadrilheiro, impaciente, tirou da cartola mais um coelho. Era algo insólito, que deixou a todos boquiabertos, mas o Rezingão estava mesmo a pedi-las:

– A inveja é um direito que nos assiste, como qualquer outro, e o medo ao desconhecido é uma doença. Mas como foste tu a levantar a lebre, vais ter que ser tu a caçá-la. Se não aparecer alguém que o desmame, teremos então que agarrar-te a ti e deixar que ele te sodomize na frente de todos; assim servirão como testemunhas e a situação ficará resolvida de uma vez por todas!

Sou do quê? – perguntou o Rezingão, não entendendo o que sodomizar queria dizer, enquanto os outros lhe explicavam, entre uma risada geral.

Houve um silêncio sepulcral. O Rezingão entrou em pânico, um cheiro nauseabundo começou a invadir a sala. O esclarecimento causara-lhe tal transtorno, que as tripas não se lhe conseguiram aguentar. Ouviu-se depois quase num sussurro:

– Bem feito! Afinal, quem se borrou foi ele!

O que acontecia dentro do grupo era para ficar dentro do grupo, mas, aparentemente, neste caso, isso não tinha acontecido.

 O sigilo entre os membros da quadrilha era tal que houve casos macabros, como foi o horrendo assassinato de Aquiles, membro dos Guerreiros, às mãos de três afiliados da quadrilha dos Mouros, eterno mistério, crime imperdoável, que nem mesmo a justiça se atreveu a investigar. As próprias beatas não ousavam falar nesse capítulo da maldição de São Tiago.

Mas a regra de silêncio não teria sido aqui cumprida. E foi a partir deste momento que Manuel ficou a ser conhecido metonimicamente por essa alcunha, o Cabaço - vocábulo que tinha sido trazido pelos ex-soldados do ultramar e que significava virgo ou pessoa que não tivesse ainda vivido o rito de passagem sexual.

E foi assim que, a partir deste cognome, se iniciou um novo decreto: Para ser-se membro da Quadrilha dos Guerreiros, não ser virgem, não ter o cabaço, passou a ser uma condição sine qua non, sem a qual não podia ser-se Contrabandista Encartado.

(em desenvolvimento)

O Nueiba, junho de 2016

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