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Nueiba: Histórias Rudimentares



Dos Moinhos com Amor

(A Maldição de São Tiago XI)

El amor tiene sus raíces en el sexo, pero su follaje y sus flores se bañan en la pura luz del espíritu

Salvador de Madariaga

O corpo flutuava à tona das águas. As longas saias, insufladas de ar, tinham-no impedido de afundar. O Chiquinho corria a toda velocidade e, à semelhança daquilo que tantas vezes fazia quando as cabras caíam aos poços, valeu-se das suas habilidades de nadador para resgatá-lo.

 Azúcar Moreno tinha ingerido muita água e apresentava-se inconsciente. A Maria da Telheira, que por ali passava de regresso a casa, correu igualmente para o lugar do afogamento. Depois de uma intensa luta, o Zagal de São Tiago agarrou a cigana por debaixo dos braços e conseguiu sentá-la num alcatruz. Pediu então à Maria que tocasse a nora, antes que se fizesse tarde, que o tempo se esgotava. Com a ajuda da contrabandista, o Chiquinho trouxe a cigana para terra e estenderam-na no chão, de costas, desmaiada. Não perdeu tempo num processo de reavivamento com uma compressão torácica. Mas a cigana não despertou. Seguiu-se uma prolongada respiração boca a boca. A água ingerida foi então expelida subitamente num jato. Lentamente Azúcar Moreno voltava a si, abrindo os olhos, como se estivesse a despertar de um sono profundo. Deram-lhe um tempo de repouso, e quando os sinais deixaram de ser preocupantes, meteram-na entre os dois e levaram-na para a casa da Maria. Mas ela estava tão debilitada que o Cabreiro da Meia-Noite teve que carregá-la às costas, na maior parte do tempo, ante uma escuridão crescente.

A casita da contrabandista era a primeira da aldeia galega de San Cibrao, mas entrava Portugal adentro (o Abílio, neto da Maria, viria a ficar célebre por ser o único soldado que se apresentou à tropa sem falar português), construída quase em cima do marco da raia, a dois quilómetros de Vilarelho, na zona conhecida por A Telheira, uma espécie de terra de ninguém. Havia ali uma pequena fábrica de telha espanhola, desativada durante a guerra civil, o que deu azo à abertura de uma congénere portuguesa, no lado de cá, para suprir as necessidades de casas bombardeadas no conflito bélico.

 Para além do Quadrilheiro, a Maria era a única pessoa em Vilarelho que vivia exclusivamente do contrabando. Escondia-o quer de um lado quer do outro da raia e ... apanhem-no se puderem. Não temia nada nem ninguém: guardas, carabineiros, lobos, ladrões… a solidão.

 O Chiquinho vendo que a sua paixão secreta estava em boas mãos, despediu-se com a promessa de ajudá-la no que fosse preciso. Sabia o que ela precisava sem o pedir, partia apenas com a lembrança do sabor a mel dos lábios da sua musa. Já tinha vivido momentos desses em sonhos, cenas mais escaldantes, que não se tinham ficado por aí. No dia seguinte voltaria com uma cabrita que começara a dar leite, pois as duas bem a mereciam. A contrabandista teceu os mais rasgados elogios ao resgaste heroico do Cabreiro, e este despediu-se, deixando para a história aquele mergulho ímpar como imagem de marca daquilo que era capaz.

- O São Tiago não deixa que os seus heróis morram, quando estão na mó de baixo, sem direito à imortalidade.

 Estas foram as últimas palavras do Zagal antes de sair, com o orgulho em alto, elevado pelas loas da contrabandista. Ainda assim partiu cantarolando a canção do pastor desesperado, uma vez que o mundo nunca foi justo para àqueles que verdadeiramente o merecem:

¡Adiós, adiós, compañeras

Las alegrías de antaño!

Si me muero de este mal

No me enterréis en sagrado;

No quiero paz de la muerte,

Pues nunca fui bien amado;

Enterreisme en prado verde

Donde paste mi ganado….

Entretanto, na Ciganalândia pensava-se que  Azúcar Moreno tinha regressado à casa-mãe, em Córdova, para se juntar a outro clã.

Qual não foi o espanto ao saberem que a cigana, à beira do afogamento, tinha sido resgatada do poço da Touça Grande e que estava em casa da Maria da Telheira?! Subitamente parecia que o único acontecimento no mundo era esse, e que seguiria sucedendo, tal era a sina da mala dicha, das forças negativas, que o mundo estava povoado de gente e coisas ruins. As mesmas rancorosas que a quiseram ver o mais longe possível do calor do clã, diziam agora que aquilo era uma vergonha! O nível a que uma cigana se tinha rebaixado, vivendo com uma estúpida paya! “¡Quién no es gitano, es burro! ”Até as amigas mais íntimas e os filhos de Maruja, que afinal de contas Azúcar Moreno também os considerava seus, foram impedidos de falar com ela, para que a decisão pudesse servir de exemplo de uma cigana lejana y sola, desterrada em terras de ninguém.

Uma vida tão atribulada dava dores de coração, parecia nunca mais ter fim e Maria, vendo-a destroçada, abraçou-a comoventemente. Como última alternativa de sobrevivência, habituada a viver com pouco, naquela época tão dura, a contrabandista, cuja generosidade era proverbial, ofereceu-lhe pousada.

Um Novo Amanhecer

“A maior desgraça na vida é não ter uma única alma com quem contar” dizia-se no povoado. Graças à contrabandista, a cigana tinha contudo onde dormir, alguém que lhe desse comida e ainda uma pessoa sensível que a escutava, a confortava no choro e na agonia, impedindo que ela morresse esfomeada, sozinha na raia perdida, lejana y sola.

 Azúcar Moreno passou então a ser um teste ao espírito solidário, uma fonte de motivação de tudo e todos à sua volta, trazendo à superfície uma onda do que há de melhor no ser humano. A prova de que afinal a bonança sucede mesmo à tempestade.

A nova inquilina, por sua vez, estava abismada com tudo o que lhe estava a acontecer. Até há bem pouco só pensava que a má sorte a perseguia, chorando lágrimas de sangue. Agora, num piscar de olhos, tudo transparecia esperança. Só podia ser uma dádiva de São Tiago que teria unido forças com Cristo de la Agonia para a salvarem. Passou a ver na Maria a reencarnação da sua irmã fuzilada pelos camisetas azules. Sem saber como agradecer, fez jura que a partir daquele momento nunca esqueceria quem lhe deu a mão e estaria à disposição dela para tudo o que desse e viesse. As duas contrabandistas, agora a tempo inteiro – São Tiago tinha criado o contrabando para que os pobres pudessem sobreviver - irmanadas na cooperação, o céu passaria a ser o limite, trepando por cima do pão que o diabo amassou.

 Pela aldeia a história corria de boca em boca até que chegou aos ouvidos do Rezingão, o qual, atónito, não perdeu tempo em puxar pela sua ditosa e muito amada imaginação, a grande inimiga do preconceito e da exclusão social, que permitia a um caminhar nos sapatos doutro, mas apenas aquela imaginação específica capaz de criar empatia. Não dormiu de noite e, quando se levantou, tinha o plano bem desenhado na cabeça. Era um momento ideal para arrepiar caminho, reinventar-se, dar a volta por cima, ir buscar o melhor de si que ultimamente tinha andado desaparecido. Intervir para ajudar, mas também para salvar a sua própria pele, desde que o Quadrilheiro lhe fizera o ultimato. Então perguntava-se:

“E se eu fosse falar com o Cabaço, lhe fizesse ver que Azúcar Moreno está neste estado por se ter perdido naquela mirada no Lagar e que, apesar dessa paixão, foi em frente com grande dignidade e honra, o que para mulher bonita, solicitada por tantos olhares masculinos, é um dom incomparável?”

Depois, repetiu a fórmula com  Azúcar Moreno:

 - O Cabaço admira a tua coragem, a tua beleza, as tuas canções, as danças, essa tua magia própria que contamina o ambiente... Ele é um rapaz forte e pode proteger-te dos perigos, defender-te das ciganas más, dos guardas e dos carabineiros. Quem sabe se não te faz sorrir novamente como tu mereces? Porque um homem apaixonado não tem limites naquilo que pode fazer!

Sem estar consciente, o Rezingão acabava por ajudar à inclusão de um membro de uma etnia demonizada pelo sistema, estimulava a diversidade, abria-se a novas ideias em vez de assimilar apenas as que já existiam. Era uma forma de fomentar as relações através do coração e não as impostas pelo regurgitar retrógrado das etiquetas tradicionais, que inibiam a evolução da vida, o que para uma época de tantos preconceitos era ainda algo revolucionário. As suas palavras começavam a dar volta à cabeça da cigana.

- No me digas? - questionou ela.

- Sabes que naquele encontro, nos Moinhos, o Cabaço teve até que lutar contra o próprio coração para não tomar a iniciativa de um amor clandestino com uma cigana? Agora sem ataduras, tudo é diferente. Está disposto a ajudar-te no que for preciso!

Azúcar Moreno não acreditava no que estava a ouvir. A jovem a quem a guerra fez desaguar sobre si um caos inteiro, desencadeando uma teia de desgraças que quase lhe acabaram literalmente com a vida, teve que colocar de parte os seus sonhos, as suas utopias, ir ao extremo de entrar num retrógrado casamento polígamo, que acabou por lhe violentar a alma, como única forma de sobrevivência, poderia agora recriar a sua felicidade. Tinha que aproveitar os poucos momentos que apareciam pelo caminho. Os astros tinham-se alinhado numa combinação perfeita, como se quisessem recompensá-la do tempo perdido.

E Foi Assim Que Tudo Começou

Naquela manhã, o patrão tinha incumbido o Cabaço de ir trabalhar para a Telheira e ele aproveitou a ocasião para passar pela casa da Maria, impulsionado pelos sentimentos que as conversas do Rezingão nele tinham despertado. Levava consigo um favo de mel, a custo de mil e uma picadelas, que diziam dar sabor aos lábios de Azúcar Moreno, afinal o nome não lho tinham posto assim à toa.

A cigana atendeu uma batida na porta e ficou estupefacta com a inesperada visita – mais parecia um sonho! – olhos nos olhos com o rapaz de quem agora não conseguia desviar a mirada. O seu coração abria-se, intuindo que ali havia algo profundo, encontrado pela primeira vez. O momento que tanto esperava! Fixou-se de tal maneira no perfil do Cabaço, deixou seduzir-se pelos sentimentos, que ele, sentindo toda aquela energia incidir sobre si, não pôde mais conter o que lhe ia na alma:

- Desde a última vez que te vi, naquele momento encantado, não me sais da cabeça. Sonho contigo de noite! Apareces-me nos Moinhos com uma rosa nos dentes, cantas e danças para mim…

A cigana começou a abanar com a mão, como se fizesse um leque, por falta de ar, tinha ficado subitamente sem respiração, parecendo que ia desmaiar. Mas sentia ao mesmo tempo que, ao pé dele, o medo se desvanecia, a coragem se agudizava. Ela que não queria envolver-se com um payo, para não acicatar a mala dicha, pressentia contudo que aquela força interior era mais forte do que ela. Com o seu sotaque andaluz, que suprimia algumas das consoantes, sobretudo os ss finais, respondeu à declaração de amor:

- ¡Tu palabra me deja sin repiración porque yo tengo un sueño parecioo!

O Cabaço limpou o suor da testa e despediu-se nervosamente, com as pernas a tremer, desculpando-se que tinha que ir extrair barro do lago do Boial para fazer telha. Disse-lhe apenas que tinham que encontrar-se outra vez no Lagar para reconstituir aquele momento mágico, que voltasse a aparecer por lá, pois tinha várias coisas para lhe oferecer, em época de tão escassos recursos. Fez-lhe uma carícia rápida, roubou-lhe o primeiro beijo na cara e entregou-lhe o favo de mel. A cigana foi-se fechar dentro de casa comovida, emocionada, com as pupilas dilatadas, os receios de uma paixão de alma inflamada.

 O génio estava fora da garrafa! A partir daí nada mais seria igual! Voltariam os astros a alinharem-se para dar início ao mistério dos sentidos? Levar o Cabaço até ao fim, até ao paraíso, até à metamorfose onde o rapaz termina e o homem começa? A passagem da infância à maioridade, segundo os novos códigos dos Guerreiros de São Tiago?

Nada nem ninguém consegue deter a paixão de duas pessoas apaixonadas. E eles mereciam-se reciprocamente.

O Lagar e o Moinho

Desta vez, o Cabaço tinha ido trabalhar para o Chão da Guerra - nome que estava ligado na história à batalha entre mouros e cristãos, estes ajudados por São Tiago - um pedaço do reino maravilhoso, no sopé daqueles altivos penhascos, escadarias do céu, enfeitados por castanheiros em flor, além da floresta primordial. Era o lugar que ele mais gostava no mundo. Andava sobretudo enamorado daqueles engenhos hidráulicos que o intrigavam e não queria perder a oportunidade de ver como tudo aquilo funcionava.

 Nos momentos que tinha a sós, adorava a aventura de poder gozar os prazeres da solidão campestre, enfrentar os seus segredos por sua conta e risco. Às vezes desafiava com um assobio os pássaros para sentir-se acompanhado. Outras vezes punha-se a gritar bem alto e esperava que o eco lhe devolvesse a voz.

Tinha ficado impressionado com as técnicas do meio- moleiro, meio- azeiteiro, no ano anterior, que tinha presenciado no final da colheita da azeitona, já de raspão, e queria ver como tudo aquilo funcionava, para melhor poder ajudar. Entendeu logo a importância do azeite, que naquela altura, sem frigoríficos, era a base de quase tudo. Servia para as candeias alumiarem, para cozinhar, temperar, barrar o pão, pois a manteiga era ainda um produto de luxo só utilizado por uma elite diminuta. O azeite era ainda utilizado nas igrejas e em certas curas ancestrais. Queria ter uma compreensão total do Lagar porque queria fazer dele uma espécie de fortaleza. Parecia-lhe até que os Moinhos tinham sido construídos para que ele pudesse decifrar os seus segredos. A advinha de sabedoria popular também não lhe saía da cabeça:

Verde foi meu nascimento

E de luto me vesti

Para dar a luz ao mundo

Mil tormentos padeci

No meio da verdura e do silêncio, esperava com ânsia a época da colheita da azeitona para esmerar-se em produzir o azeite mais puro e balsâmico da região. A força motriz dos engenhos era a água desviada do ribeiro do Cambedo por uma longa levada escavada no solo, que dividia a montanha, quer do lameiro quer dos terrenos de cultivo. Desde o Moinho ao Lagar de Azeite, a água corria por uma acéquia granítica de origem mourisca, um longo canal em forma retangular de cerca de 35 metros de comprimento feito de uma cantaria única na região. Aquelas pedras tão bem encaixadas, umas nas outras, sem cimento, para que a água não se perdesse, pareciam unidas segundo as técnicas da cantaria incaica. O Cabaço era um rapaz curioso, sempre disposto a aprender, queria estar preparado para quando viesse o tempo de fazer o azeite.

Inicialmente, a vastidão da empresa pô-lo nervoso, mesmo assim fez uma experiência com a mó em vão, mas como não chovera já há uns tempos, a água não teve a força suficiente para mover a mó, deixando-o irritado. “Fiquei a perceber tanto disto como de lagares de azeite!”

Saiu fora, fez então um vasculho de giestas, agarrou-o pelo cabo, sentou-se nele e deixou-se escorregar a toda a velocidade cubo abaixo, cuja grave inclinação fazia correr a água como uma cascata, até bater estrondosamente com os pés no fundo do cubo, numa pedra vertical perfurada por um buraco por onde a água escorria. Virou muito a custo o seu corpanzil e espreitou pelo orifício circular, como se estivesse a espreitar pelo buraco de uma fechadura, ficando a perceber várias particularidade do processo: a pressão da água movia o rodízio de ferro, que por sua vez movia a mó de pedra que triturava as azeitonas, para fazer escorrer delas àquele líquido maravilhosamente dourado.

A moagem de cima era de cereais: centeio, trigo, cevada, com uma mó própria, outra para o milho num processo semelhante ao do Lagar de Azeite, mas a força da queda de água não exigia a mesma intensidade, os dois cubos eram mais pequenos.

O Cabaço arrependeu-se logo, porque aquela água teria sido suficiente para fazer mover uma das mós deste moinho e, assim, poderia ter testemunhado como as coisas funcionavam de verdade. O trabalho de uma manhã ruiu em minutos. Nada lhe saía bem, era um daqueles dias para esquecer. Tinha a festa estragada. Não conseguiu levar a água ao seu moinho!

Advinha Quem Vem De Visita   

Tinha feito uma sopa de couve e posto o restos do almoço merecido na cesta, depois do árduo trabalho matinal, nos terrenos da propriedade contígua, interrompido apenas pelas suas tentativas de azeiteiro falhado, descansava as forças de um dia azarento, contudo pressentia que as coisas poderiam mudar a qualquer momento. Estava um pouco agitado como se algo estranho estivesse para acontecer.

Dormia a sesta em cama macia de folhas de milho, quando ouviu um bater à porta que o despertou. Abriu a porta e ficou fascinado com a surpreendente visita, quebrando a mala dicha de um dia azarento. A sorte parecia ter virado: o mais esperado dos encontros aconteceu mesmo. A sensação do momento era inebriante. Ficou nas nuvens! Seria um sonho? Tinha ali à sua frente a mulher mais bonita do mundo!

 Mas uma tremedeira apoderou-se dele, ainda que lhe parecesse um encontro irreal - já tinha passado bastante tempo desde o último encontro na Telheira - que lhe aumentava um conflito interno. “Coisas destas nunca acontecem!” Atacado por uma ansiedade profunda, aí se misturavam a felicidade e a comoção, questionando-se se estaria à altura da situação, caso o amor lhe fosse oferecido.

A cigana entrou, gostou do que viu e inspirou o aroma do azeite colado nas paredes, que parecia esconder um mistério.

- Bem-vinda ao meu palácio! – disse o Cabaço.

Ela não se conteve, numa expressão de primeira vista sobre a estampa física com que se deparava:

-¡Qué macho!

 Querida e atenciosa, Azúcar Moreno colocou o punhal no chão e pôs-se à conversa com ele, como um ato preliminar. Com os seus olhos esverdeados, cabelo negro e natural caído sobre as costas, e uma cara cor de azeitona, pôs-se à vontade. O ambiente era rústico e aconchegante. Trazia um ramo de flores que tinha colhido ao passar o ribeiro e que exalavam um olor afrodisíaco. Enfeitou-o, atou-o à porta principal e começou a mostrar os seus dotes de dançarina, tentando mimetizar o que o Cabaço lhe contara que tivera em sonhos, disposta a tornar reais as suas fantasias.

Deu as primeiras pinceladas. Com uma rosa nos dentes, uns sapateados de flamenco, depois começou a canção sentimental, que antes emocionava as plateias dos pequenos povoados rurais, nos arredores de Córdova, por onde passava a barraca teatral da família, antes de o seu clã ser exterminado pelos franquistas, naquele crime contra a humanidade.

Era um momento especial e Azúcar Moreno queria reviver a melhor fase da sua vida, altura em que era o centro das atenções, queria ser novamente admirada como quando se sentira feliz e realizada, antes daquela maldita guerra lhe vir desmoronar o seu mundo. A memória avivou-lhe a saudade e a ausência da ternura e dos carinhos da sua linda família. Era um momento difícil porque eles agora não a acompanhavam, mas o seu amor continuava presente. Pressentia que com o Cabaço poderia voltar a ter alguém com quem contar, quem sabe o seu primeiro amor verdadeiro.

 Sem perder mais tempo, transformou o Lagar num pequeno teatro onde ela era simultaneamente cantora, dançarina e amante. As feridas perduravam no fundo daquela alma exilada, lejana y sola, guardara, contudo, a música nas entranhas, as saudades de tudo o que a tinha marcado, o mesmo fulgor e a mesma paixão que o tempo nunca conseguiu apagar. Era a hora de recuperar a magia perdida. Começou a cantar nostalgicamente, sem distanciamento, a dolorida canção da sua terra, porque viver voltava a fazer sentido:  

Jaca negra, luna grande

Aceitunas en mi alforja.

Aunque sepa los caminos

Yo nunca llegaré a Córdoba

Córdoba lejana y sola

¡Ay qué camino tan largo!

¡Ay mi jaca valerosa!

¡Ay que la muerte me espera,

antes de llegar a Córdoba! …

 

A Metamorfose

Lá do cimo da montanha, da floresta mágica, ouvia-se à distância o arrulhar de umas rolas, emprestando sons ao silêncio. Ela queria sentir o cheiro do Cabaço, escutar o palpitar do seu coração, entender o seu ritmo. Puxou-o para si e disse:  

- Bésame!

Seus lábios uniram-se pela primeira vez.

Azúcar Moreno começou então a despir-se, sem pressa, com solene e serena expressão, plena de sensualidade e prazer, misturando as cores das flores, as fragrâncias e os sons de um ambiente melancolicamente sereno, espalhando beleza em cada peça que tirava, como quem destapa o mel escondido. Com graciosidade nos seus movimentos, desnudava-se com a lentidão de um caracol, serpenteando o corpo, os olhos fixos no amante, peça por peça… até que ficou apenas com o sutiã e as bragas. Pediu-lhe que fosse ele a tirá-las com os dentes. O jovem parecia hipnotizado, como se fosse um passarinho ante o olhar fulminante de uma serpente, pronta a engoli-lo.

Ela examinou-o com olhos fixos, imóvel por momentos. O Cabaço sentiu-se lisonjeado com a revelação daquele corpo tão exuberantemente oferecido. Já tinha ouvido gabar mulheres assim, mas pensava que era pura ficção, que coisas dessas só existiam nos contos de fadas e de princesas, a realidade superava, porém, todos os elogios.

Ela disse, numa voz um pouco mais áspera, mas sem perder a conhecida doçura andaluza.

-Buen,  si no me quiere, pue…¡ me voy!

Ante um bloqueio psicológico causado por uma ansiedade crescente, o Cabaço, que parecia dormir em serviço, lá perdeu alguma da sua timidez e agarrou-a por um braço.

Azúcar Moreno prosseguiu com o seu ato de sedução. Sorria com facilidade, os seus olhos inspiravam ternura, que davam para tranquilizá-lo, mas não muito. Vendo que ele não se chegava à frente, foi ela a destapar os seios. O Cabaço suspirou, teve ondas de calor, escapando-se-lhe um:

“Ai … que medoucas!”

Perdeu um pouco da timidez, parecendo acordar lentamente de um transe. Ainda que não tivesse mão dos nervos, começava a sentir-se um pouco mais seguro. Foi então que o candidato a Contrabandista Encartado se atreveu e, afiando os dentes, deixou as cuecas em duas tiras no chão.

Ante aquele corpo bem torneado, completamente desnudo, esbanjador de desejos, o Cabaço ficou sem fôlego. Mesmo assim, Azúcar Moreno, que tinha sido o deleite da sua imaginação, enchia-o agora de um nervoso miudinho, punha-lhe as pernas a tremer. Pensamentos inconexos entraram-lhe pela cabeça, teve vertigens, ficando novamente inerte, petrificado. Depois, ficou como um menino mimado, prolongando um voyeurismo moroso num novo brinquedo preferido.

Ela não sabia o que fazer. Nunca tinha sido confrontada com um caso destes. Fascinada com a curiosidade dele, fixou-o nos olhos durante alguns segundos, depois deitou de costas o seu corpo sedento e, num golpe de arte, fez uma exposição capaz de rivalizar com a Origem do Mundo de Coubert, uma vez que aqui o fruto do conhecimento exalava fragâncias naturais:

- El deseo es tan bueno como el acto. Si te guta solo mirar, pue mira bien. Si te gusta usar pue, usala. Seré tuya como quiera...- disse  um pouco desiludida.

Para cortejá-lo, puxou-o então para si e pediu-lhe:

 -¡Acaríciame!

Para suprir a inação roubada pela ansiedade, mordeu-o no pescoço e segredou-lhe algo ao ouvido, palavras de uma audácia provocadora, arrebatadoras, sobre as debilidades da carne, que o induziram ao pecado. Foi o detonador. Após tanta desconfiança, foi como se tivesse sido atingido por um raio do trovão. O Cabaço sentiu um impulso, escapou-se-lhe involuntariamente o seu grito de guerra do contrabando, uuuuuuuuu!, uivando como um lobo, atirou-se para cima dela desesperadamente e de um golpe sumiu-se no seu corpo. Ela bem lhe dizia: “suavecito!” para que o tempo não acabasse de supetão. Mas ele respondia:

“Siga a roda, trema a terra!” excedendo-se numa cena de amor, paixão e luxúria, enlaçado nas pernas de Azúcar Moreno, unindo polos, abaixo e acima, positivo-negativo, tentando sincronizar os seus movimentos com o bater do coração da cigana.

Subitamente, tudo tinha desaparecido, os demónios do medo, dos nervos e da frustração tinham sido expulsos. No magnetismo que transfere forças, a energia que emanava do corpo dela voltava a ele. Apoiado pelo fogo de um vulcão, que lhe vinha da amante no momento mais escaldante, sentiu os tremores dela em movimentos acelerados, pensou que ela teria tido um ataque epilético ou que estaria a enlouquecer com a energia vibratória.

Azúcar Moreno tinha entrado numa espécie de transe, em tremores cada vez mais intensos, num êxtase de convulsões luminosas que escalaram até que, subitamente, se apagaram na paz da plenitude. Ele caiu aos pés dela desvairado.

Desde que o homem conheceu a mulher, nunca tanta energia teria sido produzida!

O Cabaço teve até a sensação que a mó do moinho, que antes, dominada pela inércia, não se mexera, agora tremia e se movia.

Aquele momento tinha realmente transformado a sua vida, abria novos caminhos. Sentia-se livre para voar como uma borboleta escapada do casulo. Entendeu finalmente o que o Rezingão lhe dissera: “sem provares o fruto do conhecimento, não serás um verdadeiro homem!” Compreendeu também porque tanto o questionavam dentro do grupo. Até este momento não poderia ser um Contrabandista Encartado porque ainda não sabia bem quem era, ainda não tinha empreendido a grande viagem, a fase da metamorfose.

 “Louvores a Azúcar Moreno! Bem-aventurada aquela que fez de mim um homem, me tirou o cabaço!” - pensava ironicamente para com os seus botões, feliz da vida. Guardava ainda como lembrança as costas todas arranhadas, como ossos do ofício.

E foi assim que o Cabaço passou mais uma das várias etapas necessárias para ser Contrabandista Encartado. Mas ainda faltava uma, a da consagração!

Já fora da Azenha, perdido de amores, viu um figo lampo precoce, bem lá no alto da figueira, que crescia junto ao cubo água. Para celebrar o acontecimento, e também por superstição, subiu lá cima e trouxe-lho, feliz da vida. Despediu-se dela com um beijo emocionado.

Depois de Azúcar Moreno ter partido, ele ficou a ruminar no acontecido. Não lhe saía agora da cabeça o facto do Rezingão ter sido uma peça fundamental naquele feliz desenlace. Sentiu o desconforto de ter pensado tão mal de um companheiro e isso teimava em entristecê-lo. Só mais tarde, o Rezingão o apaziguou, contando-lhe que aquela resistência toda tinha sido um pretexto.

“Não entrava na Quadrilha dos Guerreiros quem queria, entrava quem podia. Foi uma ferramenta utilizada para cimentar uma relação futura, um vínculo duradouro entre os dois no seio da quadrilha. Os verdadeiros amigos vêem-se nas ocasiões!”

O Cabaço, o único guardião deste acontecimento, manteve o segredo só para si durante 75 anos, gravado na memória com viva persistência. Pediu-me que não contasse esta cena enquanto ele estivesse vivo, que já não lhe restavam muitos dias de vida, mas que lhe prometesse que um dia a contaria. Quando sugestionado a recriar o evento, gabou-se de ainda continuar a ter a sensação de que a mó do Lagar se movia e que o chão tremia:

-Macacos me mordam se estou a exagerar no que digo!

O Cabaço morreu sete meses depois de ter contado esta história, a qual foi apenas necessário registar por escrito e preencher alguns hiatos. Aqui se cumpre a promessa. Que em paz descanse!

O Nueiba, agosto de 2016

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