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Nueiba: Histórias Rudimentares



Iniciação de um Contrabandista Encartado

(A Maldição de São Tiago XII)

Um homem grande pode não fazer coisas grandes mas faz coisas comuns grandemente

Gandhi

 A proeza de um forasteiro, ainda há pouco chegado de Bustelo, se intrometer entre contrabandistas experimentados de Vilarelho, e chegar a candidato de Contrabandista Encartado, em tão curto espaço de tempo, era ainda menos invulgar do que a forma como aconteceu.

O requisito inédito exigido pelo Rezingão – que um rapaz virgem não podia fazer parte da quadrilha –, e que tinha atirado o Quadrilheiro para a beira de um ataque de nervos, teve um desenlace feliz para todos, principalmente para o Cabaço e para Azúcar Moreno. “Há males que vêm por bem!”, pensava o candidato.

A consumação de amor com uma mulher que todos amavam em segredo – não era só o Chiquinho – abrira-lhe as portas da quadrilha, restando agora ao contrabandista atravessá-las. Era a quadrilha que definia quem estava verdadeiramente preparado para as lides do contrabando, pois ali o grau de exigência estava cada vez mais apurado, não pelo gosto masoquista do sofrimento, mas por mera necessidade do ofício. Era preciso descobrir como cada um dos quadrilheiros era feito, depois “lapidar os diamantes,” como se dizia, que uma pequena falha poderia resultar na morte do artista e dos seus companheiros.

A reta final sucedia à curva de um sonho tão almejado. O último desafio, não sendo tão difícil como o penúltimo, tinha porém um carácter definitivo. De rapaz a homem e de homem a Contrabandista Encartado, ele ainda se perguntava “depois de tanto rastejar como larva, irá mesmo a borboleta voar?”

A consagração estava tão perto que ele não continha a felicidade, mas resquícios amargos de uma infância difícil ainda o faziam duvidar se seria capaz de responder ao desafio.

 “Nada de deitar foguetes antes da festa de São Tiago!” , dizia para os seus botões. Agora, porém, e ao contrário da última etapa, esta dependia apenas dele e isso era um motivo de esperança, fruto da reputação que com todo o direito granjeara.

Três semanas tinham já passado desde o seu primeiro dia de um homem no Lagar, uma sesta vivíssima na memória, e esta noite voltava ao Moinho, ali ao lado, a um lugar onde fora feliz.

A hora aprazada tinha finalmente chegado. O Quadrilheiro preparava os fardos. Manuel subiu fasquia, pois se esta noite, na sua última tarefa, fosse tão convincente como foi na de há três semanas, a sua contestação na Quadrilha dos Guerreiros teria as horas contadas.

– Que janota! Devem ser os poderes sobrenaturais da cigana! Esse cabelo penteado para trás separa verdadeiramente os homens dos rapazes e o semblante mais másculo apresenta já a perda da inocência! – atirou o Rezingão, continuando sem dar oportunidade de resposta – mas não era preciso tanto azeite na pelagem, homem – balbuciou agora na meia penumbra de uma candeia – em vez de atraíres as galegas, atrairás os mosquitos!

O Cabaço também não disse nada, sorriu apenas com a desaforada imaginação do seu companheiro. A penúltima barreira ultrapassada, iniciado como homem, só precisava agora de um momento de assombro para desbloquear a última e convencer a todos, transformando-se num contrabandista incontestado.

O Exame Final

Os quadrilheiros que ainda o contestavam no grupo aproveitaram o mote do Rezingão para mandar outras farpas brejeiras ao candidato, provocando-o, como forma de intimidação contínua:

– Agora todos os dias mugido… três semanas em permanente lua de mel… não lhe devem restar muitas forças para o fardo!

A resposta não se fez esperar:

– Ponham-me cá trinta quilos de farinha ao lombo e vão ver um sempre abrir até ao destino – disse o candidato desafiante. – Serei líder, irei na frente até às Chas, ao Muiño do Demétrio! Quando lá chegar, ainda os carabineiros estarão a cear! Se conseguirmos levar menos tempo do que esses vagos levam a comer, com certeza que quando se levantar a mesa, a corrida já estará terminada!

Vinte-cinco quilos era o que estava estipulado para um percurso tão acidentado, monte acima, de alto risco, mas o Quadrilheiro abriu uma exceção, imbuído no espírito audaz do candidato. Dez quilómetros com subidas íngremes, sempre a correr, era um sufoco. Deu porém ordens ao moleiro que adicionasse os cinco quilos ao saco na balança, como o Cabaço exigira, que os deuses tendem a beneficiar os que arriscam!

– Trinta quilos para todos ou então fiquem em casa! Vamos lá ver o que o Muiño do Demétrio tem para nos oferecer. – disse o candidato.

Nas intrigantes artimanhas do contrabando, aquilo mais parecia um suicídio ritual. Mas ele já conhecia as manhas do trilho. Pouco conhecedor ainda da geografia da região, tinha feito secretamente o percurso sozinho, três dias antes, para ver como se sentia, explorando palmo a palmo a dura viagem.

Confiante com a experiência adquirida, saiu então focado com uma entrada forte, em trote permanente. Os companheiros bem pediam que baixasse o ritmo. “Se tens ganas de rebentar, rebenta-te tu sozinho!”

Mas o Manuel fazia ouvidos moucos, parecendo endiabrado. Era uma resposta a quem o tinha contestado, uma vez que os quadrilheiros, encostados agora às cordas, não teriam mais motivos para ilusões vãs de o não verem na quadrilha. Teriam antes que juntar-se à festa. Determinado em fazer daquele percurso infernal, subida vem, descida vai, uma saída épica que o consagrasse …naquela temerária aventura.

Pelo caminho parecia ganhar uma energia descomunal, era como se as forças chegassem para engolir as distâncias. Subiu e desceu o sopé de Vamba, abriu, entre o arvoredo, o trilho a custo, fugindo como quem foge da morte!

 Penetrou na Fonte Fria e empreendeu a dura travessia do monte de Soutullo, enquanto de longe lhe chegavam lufadas de uivos de lobos, os sinais dos contestatários, deixados para trás. Chegou ao topo da colina da capela de Sant’ Ana, varrida a ventos cruzados e, num ápice, baixou às Chas. O Demétrio, meio dormitado numa pedra do Muiño, apanhado pelo susto, acordou sobressaltado ao ver o Cabaço chegar tão cedo quão ofegante. Parecera-lhe impossível que ele já estivesse ali. Assombrado, deu-lhe um valente abraço: “¡Hombre, con una hache grande!

Era um sonho tornado realidade. Continha uma festa dentro de si antes da explosão de alegria. Acabara de passar todas as barreiras, as etapas mais brutais que lhe foram aparecendo pela frente, e estava agora graduado nas lides, finalmente pronto para fazer parte da sólida e competitiva Quadrilha dos Guerreiros, na exotérica atividade da noite, que faziam do laborioso povoado uma verdadeira Aldeia que Nunca Dorme, pois as peripécias do contrabando não deixavam a noite pregar olho. Alguns habitantes, para não ficarem eternamente privados do sono, iam ao cúmulo de tapar os ouvidos com miolos de pão amassado com saliva e assim poderem preservar o juízo. O Manuel, depois de muito penar, podia agora dizer que era um verdadeiro Contrabandista Encartado.

Ia assim começar uma nova vida para o forasteiro.

         O Cabaço sentia que era um posto de grande responsabilidade. As emoções eram fortes. Aquilo era um grupo fechado, secreto. Só os membros conheciam os segredos que nunca mais poderiam ser revelados para além do grupo. Mas só teve verdadeiramente consciência que era um homem privilegiado quando o Quadrilheiro, impressionado com as suas performances, lhe outorgou o terceiro posto na hierarquia – logo a seguir a ele e ao Rezingão – agora sem um único protesto dos contestatários da quadrilha.

Manuel teve então a primeira explosão de alegria, começou a trinar como um rouxinol.

Orgulhoso de tudo o que tinha presenciado, o Quadrilheiro, homem conhecido pela sua sabedoria, uma espécie de patriarca, deu-lhe um conselho bem-humorado, para o relaxar:

– Podes ir p’ra uma noite de arromba, p’ra farra nas tascas do Cruzeiro! Depois, pela madrugada, a cereja no topo do bolo, vai ter com a mulher dos teus sonhos, que bem o mereces!– deu-lhe uma palmada nas costas e despediu-se, adicionando apenas que comparecesse na noite seguinte na Fonte da Facha, enquanto lhe entregava uma nota ali à mão de semear.

Manuel teve então a segunda explosão de alegria, redobrando o trino do rouxinol.

O Ritual: E o Homem se fez Contrabandista

No esplendor do luar, ouviam-se as doze badaladas no sino de Mandín. Manuel tira a roupa e põe às costas um fardo de farinha, sustido por umas cordas finas, simbolizando que o contrabandista podia perder tudo na vida, mesmo a roupa, menos o paquete. Os quadrilheiros estão à volta da pia batismal da Fonte. Quando o candidato desce os degraus, o Quadrilheiro grita para a quadrilha:

-Aceitam Manuel como membro da nossa quadrilha?

Manuel sente um sobressalto no coração. Bastaria um veto “não” para ser rejeitado. Ele está apreensivo e só fica à vontade quando ouve uma sonora gritaria.

– Aceitamos!

O Quadrilheiro pergunta:

-Juras, Manuel, enfrentar cada saída como uma batalha mortal?

Manuel responde:

-Juro!

-A partir de hoje o teu nome de código será Cabaço.

A plena memória, o Grão-Mestre começa a recitar, como se estivesse a citar um salmo de um antigo pergaminho sagrado, enquanto o candidato repete:

“Eu, Cabaço, juro solenemente seguir com veneração e respeito todas as regras da quadrilha, consciente que deverei fazê-lo com o mais alto espírito de lealdade e respeito pelos meus camaradas, promovendo perpetuamente a confraternização e a glória do grupo, porque a partir de hoje deixo de ser uma individualidade para pertencer a algo maior, aos Guerreiros de São Tiago. Tudo pela quadrilha, nada acima dela!”

Manuel é mandado ajoelhar. Molha as palmas das mãos na pia, depois coloca-as à sua frente, olha bem para elas e lava as duas faces. Mas, logo a seguir, fica alarmado! Põem-lhe uma navalha sevilhana, de sete estalos, ao pescoço, só se acalmando quando lhe vem à cabeça que todos teriam passado pelo mesmo, no momento da iniciação. Recebe, então, um valente beijo na testa, primeiro do Grão– Mestre e depois de todos os quadrilheiros, um a um.

O Quadrilheiro explica-lhe a excentricidade dos pormenores. Manuel fica de boca aberta com o seu significado:

– A navalha representa o código do silêncio: o que acontece na quadrilha, fica na quadrilha. O beijo na testa é a antítese de um beijo na cara, ou a traição de Judas, por isso foste instruído a lavar as duas faces!

Manuel percebe que, a partir daí, uma traição trará consequências mortais, representadas pela navalha a cortar-lhe a gola, mas que terá, como recompensa, acesso aos mistérios insondáveis do contrabando. E prossegue de forma solene:

-“Viva o Cabaço! Viva a quadrilha!” – gritavam os quadrilheiros.

         – Bebe um gole de água em honra do São Tiago! Que ele te ajude e te defenda, com a sua espada de fogo, dos carabineiros, das outras quadrilhas e de todos os inimigos que apareçam pelo caminho.

Por fim, todos em uníssono, recitam o lema:

Esta família de São Tiago

É feita de homens inteiros

Tudo em prol da Quadrilha

Nada contra os Guerreiros!

O ato formal terminou à meia-noite portuguesa, quando o sino de Mandín, demasiado apressado para estar tão perto da raia, badala a uma hora da madrugada na Galiza.

Como condecoração de Contrabandista Encartado, o Grão-Mestre aperta-lhe o fio talismã ao pescoço: uma espada de São Tiago, em cruz, elogiando-o por toda a sua conduta durante o longo percurso.

O Cabaço acaba de ser aclamado!

O Rezingão, o primeiro a saudar o novo quadrilheiro, começou a tocar o realejo em sua homenagem e o Cabaço, não se contendo, soltou finalmente o seu uivo triunfante, uivando como um lobo  uuuuuuuuuu!

Cumprido o ritual, o Iniciado está agora pronto para enfrentar as dificuldades e os perigos do planalto da montanha e do abismo do Universo. Parte do homem será ele, a outra pertencerá à quadrilha. Sabe que terá que reinventar-se todos os dias, como atleta, revelar-se acima do homem e erguer-se das cinzas dos seus antepassados, que só conhece das memórias, abrindo o coração para o Infinito.

E foi assim que o Homem se fez Contrabandista Encartado.

Começa então a nova vida do forasteiro. Fazer parte da quadrilha transformava-o num homem respeitado e temido.

 Unido agora por um sólido vínculo, era um sonho tornado realidade.

Sentiu felicidade, a celebração foi tão intensa, que o Cabaço não se conteve, mesmo tentando-o a custo, e começou a chorar como uma criança. “A borboleta tinha mesmo voado?” O Quadrilheiro teve que o acalmar e ele lá acabou a cerimónia com tranquilidade e bom gosto.

Rebentando de alegria, um súbito sorriso de orelha enxugou-lhe as lágrimas. No epílogo de uma história de luta, gritava “ Contrabandista Encartado, Contrabandista Encartado, Contrabandista Encartado …” para ter a certeza que aquilo era mesmo o que ele já era. O Cabaço já não era quem foi e tinha agora o mundo a seus pés. Tinha chegado ao cume!

 Daqui em diante, passou a ser olhado com admiração no Cruzeiro, o ponto de encontro da aldeia, principalmente depois da missa e nos dias de festa, algo que iria ficar-lhe na memória para o resto da vida.

A Outra Face do Contrabando: A Quadrilha dos Mouros

Até ao Alzamiento Franquista, o contrabando era uma forma de subsistência. Uma atividade de resistência às duras medidas implantadas nos últimos cinco anos pelo Estado Novo, mas o levantamento nacionalista veio alterar a situação. Com o aparecimento das quadrilhas organizadas, a transformação foi quase radical. Se a procura de produtos de primeira necessidade tinha aumentado devido a uma população cada vez mais esfomeada, adicionava-se-lhe agora uma procura de armas para o enfrentamento bélico.

O secretismo das quadrilhas tornou-se impenetrável, o que dava azo às interpretações mais diversas. Que fosse ou não um boato dos teóricos da conspiração, ou uma asseveração verídica, corriam rumores, à boca pequena, se bem que não fossem consensuais, que a Quadrilha dos Mouros era de inspiração franquista e que só levava contrabando aos nacionalistas. Os Mouros defendiam-se das acusações. Para pôr fim às conjunturas contrapunham que eram só negócios:

– Os negociantes têm ganâncias, nós levamos contrabando a quem mais paga. – apregoavam.

Se os Mouros não eram contrabandistas tradicionais, também os Guerreiros não o eram, mas ninguém conseguia discernir tantas coincidências funestas que passavam no seu seio. Em pouco tempo fizeram uma pequena fortuna, construíram cedo o seu império, tornaram-se célebres como o terror das serranias, passando sobretudo produtos que davam mais lucros: primeiro as armas, depois o volfrâmio.

Os quadrilheiros do círculo superior da quadrilha andavam, por exemplo, todos bem armados, sempre de pistola astra à cintura. Eram gente ambiciosa, muito orgulhosos de si, viviam muito acima dos peões que comandavam.

Os Mouros eram uma quadrilha sem rosto porque não se sabia bem quem estava no comando. Ao contrário dos Guerreiros, onde as decisões eram tomadas em grupo, na quadrilha da concorrência estas eram transmitidas de cima para baixo, vindas do topo da hierarquia. Personagens intrigantes, para dizer no mínimo, os seus métodos eram contudo eficientes e implacáveis, transformando-se rapidamente nos novos barões de contrabando, como passadores de material de guerra. Mas essa de levarem contrabando exclusivamente para os nacionalistas mais pareciam rumores da boataria.

Curiosamente, e apesar de toda a sua fama de invencíveis, não passavam de uma cópia da quadrilha pioneira, de quem tinham ciúmes, considerando-a a representação máxima da especialidade. E não era só no contrabando; nos jogos de futebol, os Guerreiros chegavam mesmo a vulgarizá-los. A realidade nunca ficou aqui bem clara, mas de uma coisa não restavam dúvidas: esta quadrilha aparecia como reação aos Guerreiros. Se estes eram os de São Tiago, aqueles tinham que ser necessariamente o inverso: os Mouros. Se aqueles veneravam o Padroeiro, os Mouros veneravam o Senhor das Almas.

Pela aldeia, a boataria não dava tréguas. Uns diziam que a designação de Mouros visava homenagear o esplendor do passado mourisco da região, época em que Vilaiete rivalizara com a própria Aquae Flaviae, outros defendiam que estava relacionada com Franco.

El Caudillo tinha desembarcado em Espanha com as tropas de choque de Marrocos e ficaram a ser conhecidos precisamente por esse epíteto. Muitas coisas ficaram por esclarecer. A equipa de futebol por eles criada, para fortalecer e aprimorar a componente física, foi batizada de Os Onze Negros. Os jogos de futebol entre Os Águia e Os Onze Negros faziam subir a testosterona e transformaram-se em verdadeiras batalhas campais. Nem os tempos eram de dar a outra face. “Se eles não nos tratam bem, nós também não os tratamos a eles!” Tudo se conjugava para que na aldeia se reeditasse uma guerra civil de dimensões liliputianas. Um sinal dos tempos. Olhando para o que se passava na guerra civil espanhola, entendia-se o que acontecia entre as quadrilhas do contrabando em Vilarelho.

Com o aparecimento dos Mouros, os Guerreiros, a quem copiavam e depois tentavam secundarizar, tinham agora concorrência. Os Guerreiros, com medo que aqueles estivessem realmente do lado do sistema, tomavam as devidas precauções, fechavam-se, tornando-se mais defensivos, falavam deles apenas em voz baixa, para não darem muito nas vistas.

 Contudo, um dia, durante um jogo de futebol, soltou-se-lhes a tampa e entoaram a canção em voga “Luchamos contra los moros/mercenários... Daí a as posições se extremarem e culminarem num desfecho macabro, que abalou a aldeia, foi um passo.

O Tráfego de Armas 

O Cabaço tinha sido avisado de que, a partir do momento em que estivesse engajado com os Guerreiros, mantivesse uma certa distância em relação aos rivais Mouros. Mas ele, ainda romanticamente eufórico por ter alcançado o estatuto de Contrabandista Encartado, tinha outra impressão sobre eles. Aliás, tinham-no tratado muito bem, ao mesmo tempo que o assediavam para o seu grupo –saiu com eles várias vezes como extra.

Como não era ingrato e gostava de chegar ao fundo das coisas, antes de tomar uma posição quis perceber o porquê dos Guerreiros lhes terem tanta osga. Nunca lhe passou pela cabeça estar a romper o código de conduta, ao intrometer-se perigosamente em território inimigo. Aquela saída causara-lhe porém tanta curiosidade que não resistiu em ir testemunhar com os seus próprios olhos o que se passava.

Como é que eles se comportavam quando a saída era estritamente para membros? Isto por causa do sigilo, porque naquela noite tudo parecia muito estranho. Foi então dar uma espreitadela. Ficou impressionado! Aquilo mais lhe parecia uma caminhada de lazer de um bando de homens chegados ao outono da vida do que trabalho.

Quando os Guerreiros saíam, era tudo tratado com mil cuidados, como aliás sempre acontecera quando acompanhara os Mouros, como extra. Tudo era rigor, tudo muito sério, mas desta vez não, pelo menos entre os líderes. “Que classe! Com que à-vontade eles vão!”, chegou ao ponto de perguntar-se se não teria feito uma má decisão ao rejeitar a sua proposta. A curiosidade matou o gato. Escondeu-se detrás de umas giestas para melhor ver o que lhe parecera suspeito, tão diferente daquelas saídas em que ele tinha participado.

Em tempos de guerra as coisas mais estranhas aconteciam, mas o que se passou naquela noite mais parecia uma cena tirada de um filme de Hollywood. “Aqui há gato!” A coisa estava muito mais emaranhada do que ao princípio pensava. Apercebeu-se subitamente que uma grande operação de armamento estava em curso. O negócio das armas estava no seu auge. Portugal estava no topo da hierarquia mundial: terceiro lugar de importador de armas. Todos os dias chegava a águas portuguesas armamento para o conflito espanhol. Era o tipo de contrabando que mais lucro dava e os barões conscientes que as suas atividades não fossem bem vistas por todos, não se esqueciam de esturrar dinheiro com a populaça, noite dentro, pela dezena de tabernas na aldeia, ganhando assim popularidade.  

A Camioneta da Fronteira

Eram uns paquetes muito cumpridos e mal-ajeitados de armas de fabrico italiano Vetterli M1870 que causaram a curiosidade do Cabaço.

Levou algum tempo a perceber como o suborno funcionava. Tinha-se apercebido que, ao contrário daquilo que era habitual, o capataz e o vigia não iam, desta vez, na frente do pelotão para dirigir nem para vigiar. Levavam também eles um fardo às costas, secundarizados apenas por outro contrabandista, que ia na frente, encabeçando a quadrilha.

 O contrabando tinha os seus subterrâneos, a sua podridão, e estas coisas secretas tinham que ficar entre os membros, razão pela qual os extras não eram hoje permitidos. “Só visto! Se eu contar isto, ninguém vai acreditar!” Todos levavam armas, menos o que ia na frente, que levava um saco de batatas de pouco peso. Uma camioneta estava estacionada na raia. O contrabandista das batatas cruzou a fronteira e apareceram dois carabineiros gritando “¡Aquí no pasa nadie!” Mal o carregador passou a linha imaginária, foi preso e levaram-no ao Posto dos Carabineiros, dando assim tempo aos transportadores de armas de carregarem a camioneta.

O Cabaço ficou furioso quando se deparou com semelhante espetáculo. Já lhe tinham contado histórias destas, mas uma coisa era imaginá-las, outra era vê-las.

 “Foda-se! Inacreditável! Como é possível uma merda destas?!”

Entretanto, entre a boataria mais deslinguada constava-se que os Mouros conseguiam fazer isto porque viviam das benesses do sistema transfronteiriço já controlado pelos nacionalistas. Mas isso nunca ficou comprovado. Quem teve uma reação parecida à do Cabaço foi o Cabo dos Carabineiros que se recusou a participar na empresa; aparentemente a decisão fora tomada mais acima. Havia mesmo quem dissesse, e a verdade nunca se soube, que o Carabineiro Negro estaria no topo da pirâmide, que ele pensava todas as decisões e dirija tudo até ao último detalhe. Os Calças de Ferro (guardas subornados) e o Carabineiro Negro estariam feitos com os Mouros e tudo era abafado.

 O Cabaço aprendeu muito com essa experiência e foi esfriando o seu relacionamento, pouco a pouco, com os Mouros. Aliás, estivera sempre de pé atrás desde aquele momento em que soubera que eles renegavam o próprio Padroeiro, São Tiago. Até então, o seu crescimento tinha sido automático, mas agora as escolhas eram por sua própria vontade. Chegou ao que ele era na sua essência mais profunda. “Até aqui estava cego!”A experiência tinha-o amadurecido, tinha-lhe despertado a consciência. Era como se começasse agora a existir. “Que barbaridade! Levar armas a carniceiros que assassinam gente inocente, a quem nós levamos mantimentos para os livrar da morte, muitos deles a monte! Cristo esteve sempre do lado dos indefesos!”

 “Qual é o meu lugar neste mundo?”, perguntou-se, tentado compreender-se a si próprio.

Não se arrependeu de ter escolhido o grupo que escolhera nem do que acabava de fazer. São Tiago tinha posto essa experiência no seu caminho para lhe mostrar a crise existencial que acabara de evitar. Tinha motivos para agradecer pela sua escolha. Ajoelhou-se, rezou, agradeceu ao Padroeiro e reforçou juras de amor e lealdade à quadrilha dos Guerreiros, relembrando os momentos mais inesquecíveis de luta que com eles tinha passado.

(em desenvolvimento)

O Nueiba, outubro de 2016

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