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Nueiba: Histórias Rudimentares



O Ás de Trunfo

(Excerto do Capítulo 13 da Maldição de São Tiago)

– Só quando El C’rabinero chegou se entendeu bem a verdadeira missão do Ás de Trunfo! – disse o Rezingão. – Afinal não era bem o que ao princípio aparentava, que os ditadores ibéricos parecem todos ler pela mesma cartilha!

 Havia já quatro anos que o famoso guarda– fiscal tinha aparecido no povoado. De narcisismo pelo braço, vinha embrulhado num ar de superioridade, nunca mostrando sinais de querer despir-se da sua própria importância. Até parecia não entender que tinha chegado aos confins do mundo, à humilde Aldeia que Nunca Dorme, que dependia de um turno de contrabandistas na noite, para afugentar a fome. A sobrevivência tinha aqui leis que as próprias leis desconheciam.

– Ao princípio, ainda tentou esforçar-se por mostrar uma ocasional afabilidade, aqui e ali, uns tiques mais humanos, aparências para agradar à população – interpôs o Pacifista– mas as subsequentes contradições do seu carácter começavam a levantar fortes suspeitas. Pouco a pouco ficou bem claro ao que vinha e ainda por cima iria fazer parte do crescente subgrupo de guardas subornados: Os Calças de Ferro, especializados em deixar passar armas para os nacionalistas.

As pessoas só começaram a despertar quando viram o filho dele na festa do Equinócio da Primavera, como o Druida chamava ao dia de S. José, com uns boros (sapatos) apreendidos a um pobre jeireiro, os primeiros que o seu filho José iria ter na vida, “que o encantariam e o fariam feliz na festa do dia do seu santo, disso não haveria a menor dúvida”, atirou o Rezingão. Aqueles boros nos pés do filho do guarda tinham-lhe caído tão mal que o contrabandista não conseguiu controlar uma descarga furiosa:

– Mas que grande filho da puta!

Já para os vizinhos do bairro do Barreiro, que melhor o conheciam, era uma pessoa mal-agradecida, sobranceira e até violenta. Tinham que lhe gritar amiudamente um “basta”, logo que ouviam a mulher e os filhos a chorar com os maus tratos. Com o medo que lhe tinham, revezavam-se nos apupos. Ontem fora um vizinho, hoje era outro, no amanhã seria o próximo e assim sucessivamente. No empenho que o Ás de Trunfo punha na perseguição aos Guerreiros, levava-o a entrar com grande aparato em casa, para depois, no lusco-fusco, sair matreiramente pela adega, de gatas, rastejando como um lagarto pela estrumeira da frente. Outras vezes vestia-se com a roupa da mulher e saía à noite de cântaro à cabeça para levar o Vigia dos Guerreiros a pensar que permanecia em casa, enquanto ele fazia a sua ronda. Preocupava-se em vestir bem. Dava raspanetes a quem andasse com a camisa fora das calças, fazendo valer a sua jurisdição muito além da de guarda-fiscal. Longe iam os dias em que merecera alguma admiração por parte da vizinhança, por ter sido este novo Calças de Ferro a primeira pessoa a quem viram escovar os dentes e fazer a barba de forma impecável com uma navalha sevilhana sem o auxílio de um espelho, tarefas que, aliás, exibia com grande exibicionismo na varanda, para servir de exemplo ao povoado de um homem do Estado Novo.

– Algo inexplicavelmente misterioso teria feito o Mata-Mouros aos de Vilaiete para nos esquecermos da sua conquista; agora como castigo sai-nos também mais este na rifa! – disse o Filósofo.

(em desenvolvimento)

O Nueiba, dezembro de 2016

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