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Nueiba: Histórias Rudimentares



Operação 235A: Plano de Recaptura

 (Excerto do Capítulo 14 da Maldição de São Tiago)

No meio dos campos do Boial, a nordeste dos pinheiros da floresta perdida, raiando a natureza em estado puro, habitat de raposas, texugos, pegas e corvos, erguia-se a Telheira galega, que ainda fechada, contemplava apenas as galinhas de água a nadar felizes no lago, ali mesmo em cima do marco da fronteira 235A.

Era esse prédio desativado durante a guerra ˗ o lago do barro estava no lado português ˗ que El C’rabinero Negro escolhia para reunir-se com a sua tropa. Esperava que a rapaziada tocasse o gado dos lameiros para casa e aparecia no lusco- fusco. Saltava pela janela e abria-lhes a porta por dentro aos outros dois companheiros. Se algum intruso aí os procurasse podiam sempre sair pela porta que dava para San Cibrao, no lado espanhol. Um lampião a azeite iluminava a escuridão. Era assim um esconderijo perfeito, onde podiam reunir-se no maior dos secretismos, logo que o crepúsculo declinasse. Foi para aí que, mais uma vez, convocou sus muchachos: o Ás de Trunfo e El Segundo Falangista. O assunto era de extrema importância e ele, como sempre, trazia-o minuciosamente estudado.

Apareceu bem documentado, era um bom orador, discurso mais que cativante, chegou, viu e encargou-se de os convencer com o seu plano infalível, ligando-os ao seu lado da força. A reunião durou quase duas horas, mas tinha sido tão longa quão profícua - ele não se esquecia de nada - tudo ali tinha ficado bem delineado, mais preciso que um relógio suíço. Impressionava sobremaneira a sua inacreditável capacidade de trabalho e organização. Um plano meticuloso, uma missão especificamente montada para recapturar El Rojo, El Peligroso, El Verdadero Anticristo’’ e entregá-lo à Brigadilla no dia da festa. “¡El honor será transferido para nuestras personas!

 Depois de transmitir o seu famoso plano, despediu-se de forma efusiva e enigmática dos companheiros:

˗ ¡El día de Santiago en Vilarello nos aguarda la gloria. La fiesta de los cuchillos largos, el triunfo de la voluntad!- disse o carabineiro, sugador de tudo à sua volta, o que, para além da perseguição a El Rojo, pressupunha, pelo conteúdo, uma purga dentro do próprio Cuerpo de los Carabineros, pois, para além de não estarem do seu lado da força, não queria que o Cabo continuasse a brilhar com louros entre a população.

Peça fundamental da operação era ainda aventurar-se além fronteira num ataque dissimulado ao próprio Cabo da Guarda- Fiscal, para ele também um proscrito, que continuava a ter a aprovação do povoado. Eram estes os efeitos de uma espantosa rede de ação de El C’rabinero Negro, fruto do trabalho de um homem ágil, talentoso e diabólico. Uma manobra arrojadíssima, difícil de pôr em prática, cujo objetivo era um controle absoluto sobre os seus inimigos mais odiados.

O Ás de Trunfo ficou espantado com o que tinha ouvido, teceu loas ao projecto. Já o discurso hitleriano, agressivo e enigmático, levado tão longe, deixou El Segundo Falangista em estado de choque - discutiram acaloradamente por algum tempo - pois era este quem melhor o conhecia. Ainda há bem pouco, nas linhas da frente, os dois tinham infestado o mesmo inimigo, feito torturas e sequestros durante a guerra, e este sabia como ninguém que, depois de utilizar as pessoas, El C’rabinero Negro as descartava como quem descarta as cascas dos tremoços: 

˗ ¿De quién hablas? – perguntou, desconfiado. 

Mas ele acalmou-o, pois tinha sido um dos seus mais fiéis companheiros nessas lutas:

˗ ¡No te preocupes, hombre de Dios! Hablo de esa raza maldita que siempre estuvo del otro lado de la verdad! ¡Los que quieren continuar hablando esa lengua aldeana! ¡El idioma que uno habla afecta su manera de ser y su forma pensar! ¡Yo no quiero oír más ese idioma hablado entre El Cuerpo de los Carabineros!¡Una lengua, una cultura, una religión vuelve a ser el lema de la gente digna! ¡Sólo así tendremos una España una e indivisible! ¡Eso de las dos Españas no pasa de un embuste de puñeteros!

El Cuerpo de los Carabineros tinha-se alinhado com El Gobierno de la República durante La Guerra Civil, razão que, aliás, trouxera El Falangista  de Castilha aqui para dar volta à situação. Na sua persistente caça às bruxas, vinha explorando o fator linguístico até à exaustão. A língua galega estava tão bem enraizada entre o povo e o Cabo, um líder natural, de uma família de carabineiros alinhados com La República, tinha ganho o respeito da população não só pela coerência das suas convicções, mas também por sempre pôr em prática o que dizia. Resistiu-lhe o mais que pôde, até que teve, mágoa sua, de abandonar a lingua da patria chica ante a máquina trituradora.

Como último recado, El C’rabinero Negro não deixou de dar recomendações ao Ás de Trunfo que, com o fim da guerra, já havia mercadorias que passavam de Espanha para Portugal, sobretudo açafrão proveniente de Marrocos e preservativos deixados pelas Brigadas Internacionais ao abandonarem Espanha. Eram geralmente transportados pelas mulheres nos sutiãs e nas cuecas. ¡Nunca subestimar la astucia de las zorras!

(em desenvolvimento)

O Nueiba, janeiro de 2017

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