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José Leon Machado: Paratextos



O Desenvolvimento de Aplicações Multimédia

Como definir o termo multimédia? É uma palavra composta por multi mais media, ambas latinas. Multi significa vários e media significa meios. À letra, multimédia (com acento, caso contrário ler-se-ia multimedia) significa vários meios. Quer dizer: o multimédia é a utilização de vários meios ligados às tecnologias da informação através de um só: texto, imagem e som.

Inicialmente o multimédia cingia-se ao âmbito do cinema, da televisão e de determinados espectáculos ao vivo (o Acqua Matrix da Expo, por exemplo). Nos anos 90, o termo foi adoptado pela indústria informática, passando a designar determinado conjunto de características, quer de hardware, quer de software.

No hardware, o termo multimédia define um equipamento informático que disponha de algumas das seguintes características: placa de som, microfone, colunas, leitor de CD-ROM, placa de vídeo com capacidade para, pelo menos, 256 cores, placa receptora de televisão e de rádio, ligação a um General Midi externo, processador Pentium MMX, etc.

No software, o termo multimédia é utilizado para definir determinado número de programas que, além das funções lógicas inerentes aos mesmos, juntem texto, imagem e som. É este aspecto que aqui nos interessa, uma vez que é o tema da nossa intervenção.

Em que ponto está o desenvolvimento de aplicações multimédia em Portugal? Há, presentemente, várias empresas e instituições a apostar no multimédia. Reporto-me àquelas que conheço e que trabalham na minha área: a Forum, a Texto Editora e a Porto Editora. São aquelas que publicam programas nas áreas da educação e cultura e que têm tido relativo êxito. Das outras pouco sei.

Coloco a seguinte questão: Será que estas empresas têm lucros substanciais com a venda de produtos multimédia?

O mercado português para os produtos multimédia é pequeno e o número de exemplares vendidos não compensa muitas vezes o investimento feito. A grande excepção vai para os produtos multimédia de grande divulgação, como é o caso dos dicionários e das enciclopédias. Peguemos num exemplo concreto: imaginemos que uma empresa publica um CD-ROM sobre os animais selvagens das florestas portuguesas. Se se venderem três mil cópias, a empresa que o comercializa sentir-se-á satisfeita. Ora as três mil cópias se forem vendidas, por exemplo, a cinco mil escudos, tirando o IVA e a margem de lucro dos revendedores, a editora fica com nove mil contos. Desses nove mil contos, deverá pagar a reprodução dos CDs, a embalagem, a distribuição e os direitos autorais do grupo de trabalho. O lucro reduz-se a quase nada. E não havendo lucros, não há verbas para criar programas cada vez melhores. A maior parte dos programas multimédia em Portugal não passa da mediocridade, não só pela pouca qualidade das equipas que os fazem, mas principalmente pelos reduzidos orçamentos.

Enquanto a Dorling Kindersley gasta cerca de 200 mil contos a fazer um CD-ROM sobre o corpo humano, gasta a Porto Editora dois mil contos a fazer um programa para aprender Matemática. E atenção: estes números reportam-se exclusivamente ao desenvolvimento do software. É evidente que com orçamentos reduzidos não se podem fazer milagres. Não é por acaso que o desenvolvimento de software português para o mercado se encontra na cauda da Europa. Como sempre, somos os últimos.

Já o software universitário está em grande pujança e é pena ficar-se pelas paredes da universidade. Sobre isso, conto o que um professor meu constatou quando visitou o departamento de informática de uma universidade portuguesa: um dos engenheiros mostrou-lhe um programa que um grupo de alunos tinha desenvolvido no ano anterior e que estava relacionado com análise estatística. Era um programa feito em Visual C++ e extremamente complexo. O meu professor perguntou-lhe por que razão a universidade não comercializava o programa ou o entregava a uma editora. O engenheiro disse que não podiam fazer nada. O desenvolvimento do programa fora financiado pela União Europeia (custara vinte e cinco mil contos) e só ela é que poderia decidir acerca disso. O mais certo era o programa ficar por ali, perdido num dos computadores do departamento de informática, até um dia ser apagado do disco.

Há muito a fazer pelo desenvolvimento de software em Portugal, mais ainda na área do multimédia. Estamos a dar os primeiros passos. O Ministério da Cultura e o Ministério da Ciência e Tecnologia estão presentemente a apoiar projectos. Acontece, porém, que esses projectos, recebido o financiamento, ficam a maior parte na gaveta. Dou um exemplo: uma instituição portuguesa recebeu cinquenta mil contos há três anos para desenvolver um CD-ROM sobre a vida e obra de Luís de Camões. O CD estava para ser lançado em 1998, por altura da Expo. Soube há dias que a equipa de trabalho ainda não tinha saído da fase da planificação do projecto e que só lá para o ano 2002 é que começaria a fase da programação. Isto se o dinheiro entretanto não faltar.

O governo, por boas intenções que tenha a respeito do multimédia, dificilmente conseguirá ultrapassar dificuldades como esta. A questão está na boa vontade e na competência das equipas de trabalho. O dinheiro, embora importante, não é o mais fundamental para a elaboração e o sucesso de um produto multimédia (sucesso sempre relativo, não nos esqueçamos que vivemos em Portugal). É indispensável formar boas equipas de trabalho. Sem isso não sairemos do impasse.

Para melhor compreender toda a dinâmica da produção de uma aplicação multimédia por uma equipa de trabalho, darei o exemplo concreto já atrás referido: a elaboração de um CD-ROM sobre a fauna das florestas portuguesas.

Antes de mais, é necessário criar a equipa de trabalho: um coordenador do projecto, um coordenador da parte científica, um programador, um especialista de som e um designer (ou artista gráfico). O número destes elementos pode variar, conforme a extensão do programa. A equipa reúne e decide as várias fases do projecto:

1. Planificação do trabalho

2. Recolha de informação

3. Tratamento da informação

4. Programação e design

5. Fase de testes e optimização do programa

6. Cópia e distribuição

1. Planificação do trabalho: o coordenador do projecto é aquele que, com o coordenador da parte científica, vai definir o conteúdo do programa: objectivos, características técnicas (se é para Mac, se é para Windows, se é para Linux; se é de 16 ou de 32 bits, que tipo de ferramenta a utilizar para fazer o programa), a quem se destina, a estrutura, a quantidade de texto a introduzir, a quantidade de imagens (fixas ou em movimento), o som, o tipo de música, etc.

2. Recolha de informação: O coordenador da parte científica recolherá os dados acerca da fauna das florestas portuguesas ou indicará ao grupo de trabalho a forma de os recolher. Se houver sequências de vídeo, poderá ser o designer a captá-las. A mesma coisa para sequências sonoras em relação ao especialista de som. Ficará à responsabilidade do coordenador da parte científica todo o conteúdo ligado à área tratada na aplicação. Isto implica que o coordenador seja especialista em Biologia ou que esteja a fazer investigação universitária nessa área. É ele aliás uma das peças fundamentais no projecto, pois sem conteúdo não há programa.

3. Logo que os dados tenham sido recolhidos, proceder-se-á ao tratamento dos mesmos. Os textos poderão ser passados no scanner, corrigidos e inseridos numa base de dados. A estrutura da base de dados deverá ser construída de acordo com as sugestões do programador. Se o programa for feito em Visual Basic, a base de dados deverá ser em Access; se for em Toolbook deverá ser em dBASE, etc. A base de dados fica entregue ao coordenador geral e ao coordenador da parte científica.

4. Entretanto, o designer cria o aparato gráfico do programa: botões, imagens de fundo, títulos, pequenas animações. Poderá servir-se de várias ferramentas. Refiro as mais conhecidas: O CorelDraw! para desenho vectorial, o Fractal Painter para pintura, o Photo Shop para retoques de fotografia e o Pain Shop Pro para conversão de imagens.

O designer fará também o tratamento das imagens que ilustrarão o conteúdo do programa: por exemplo, as fotos dos vários animais selvagens. O trabalho aqui será o de definir o tamanho máximo de cada uma, equilibrar o brilho e a intensidade, converter para um formato suportado pelo programa (BMP, JPG, GIF, etc.) e uniformizar a paleta de cores se o programa tiver como limite as 256 cores.

O designer digitalizará ainda as sequências de vídeo previamente recolhidas. Para o tratamento das mesmas, poderá utilizar o Premier da Adobe. Poderá adicionar efeitos de entrada e de saída, misturar música e som. Deverá escolher o formato suportado pelo programa: os mais utilizados são os MOV os AVI. Começam agora a entrar os MPG. Este formato poderá salvar muito espaço, pois permite uma compactação dos vídeos muito maior do que os formatos anteriores e sem grande perda de qualidade.

O especialista do som poderá colaborar com o designer na preparação da música e das sequências sonoras a inserir nos vídeos. Para o som analógico, poderá servir-se do Cool Edit Pro, um dos melhores programas para tratamento de som WAV. Para a música, e se esta for em formato MIDI, poderá servir-se do Cakewalk Pro Audio. A inserção no programa de sequências MIDI tem vantagens e desvantagens: por um lado é a rapidez de execução e o pouco espaço ocupado por cada ficheiro; por outro, é a baixa qualidade sonora se o computador onde for instalado o programa não tiver uma boa placa de som e umas boas colunas.

Está a generalizar-se o formato MPG3 para o som analógico. Um ficheiro de música com 30 MB em formato WAV ocupa somente 2 MB neste formato. Pode ser uma boa opção se se necessitar de espaço no CD.

O programador vai inserindo o material gráfico e sonoro na ferramenta de programação que está a utilizar para desenvolver o programa. Existem várias: o Toolbook, o Macromedia (Director ou Authorware), o Visual Basic e o Delphi. São ferramentas bastante diferentes e de performance muito variada. Se se quiser fazer algo rápido e com poucas exigências a nível de programação, poderá optar-se pelo Toolbook. Se se quiser um grande aparato de efeitos de imagem, poderá optar-se pelos programas Macromedia. Há, no entanto, a referir que o desempenho dos programas feitos em Macromedia é lento e o programador tem pouca liberdade de acção. Para lidar com funções lógicas ligadas à estatística ou bases de dados, o melhor será optar pelo Visual Basic ou pelo Delphi. O Delphi é sem dúvida a melhor opção, quer em número de funções disponíveis, quer em rapidez de execução. No entanto, o Visual Basic pode ser mais convidativo, uma vez que existe um maior apoio técnico, tanto da empresa que o fabrica, como do número de utilizadores: enquanto existem 450 mil programadores em Delphi, segundo números da Borland, existem cinco milhões de programadores em Visual Basic, segundo números da Microsoft. Na Internet estão disponíveis largas centenas de páginas sobre Visual Basic que ajudam os programadores com exemplos de rotinas, add-ins e bancos de questões. Para o Delphi também há, mas em menor número.

Feitos os chamados forms do programa (as janelas, com os botões e as funções para cada objecto), o programador ligará a aplicação à base de dados previamente preparada.

A partir daqui seguem-se os ajustamentos necessários para que o texto, as imagens e os sons sejam "comandados" pelo programa de acordo com as instruções lógicas que o programador definir.

5. Logo que o som, a imagem e os textos estejam reunidos num só meio de os difundir (o programa), faz-se a primeira versão completa. Produzem-se várias cópias do CD-ROM e procede-se à fase dos testes. O ideal é dar o programa a beta testers, que poderão ser amigos, ou mesmo pessoas estranhas à equipa de trabalho.

Há sempre bugs a corrigir, quer a nível da programação (estes costumam ser em maior número), quer na base de dados (gralhas, erros e troca de textos), quer no som e nas imagens.

Além dos bugs, podem surgir problemas técnicos de difícil solução. Dou um exemplo: quando um utilizador altera o tamanho dos caracteres do sistema, os objectos das janelas do programa ficam todos fora do sítio numa salgalhada desastrosa; há pois que redefinir a posição de todos os objectos nas várias janelas.

Esta fase de testes e correcções é a mais longa e a mais aborrecida, pois há sempre coisas a corrigir. Fazem-se, cinco, dez, quinze versões e ainda se encontram bugs.

6. Quando o número de bugs diminuir, poderá então fazer-se uma cópia final do programa e enviar-se para impressão. Terá o programa ficado tecnicamente bem feito? Só os utilizadores o dirão. E cada um é um caso. Não há duas pessoas iguais, não existem dois computadores iguais.

O trabalho não termina no momento em que o CD entra no mercado. Surgirão problemas que não foram previstos e a equipa terá de reunir para os resolver e disponibilizar em patchs (ou remendos). Estes patchs poderão ser disponibilizados na Internet.

Não há programas perfeitos. O Windows 95 tinha dois mil bugs. O Windows 98, que corrige os do Windows 95, nem sei quantos terá. Poderá perguntar-se: Então a Microsoft vende programas mal feitos? A questão não está aí. A questão está nisto: os programas são feitos por humanos e estes erram. Errare Humanum est, diziam os latinos. E ainda bem que assim é, pois aprendemos com os erros e a ciência avança. Longe esteja o dia em que, em vez de sermos nós a fazer os programas, serão os programas a fazerem-se a si próprios.

É óbvio que este método de trabalho que acabei de expor poderá ser adaptado a outros contextos, como, por exemplo, ao da elaboração de uma página multimédia na Internet. A tecnologia está a evoluir rapidamente e dentro em pouco teremos vídeo em tempo real, o que abrirá grandes perspectivas para o mercado multimédia, uma vez que de momento, o meio mais barato e eficaz para transportar os pesados ficheiros de som e imagem ainda é o CD-ROM.

Há futuro para multimédia em Portugal? Há na medida em que o haverá para os restantes países. Urge, contudo, formar gente para trabalhar em equipa. Um bom programador, um bom designer só poderão fazer algo realmente válido na área do multimédia se conseguirem trabalhar em grupo. As escolas, as universidades e os centros de formação têm um indispensável papel nesta área.

José Leon Machado, 10 de Fevereiro de 1999

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