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Sob a Névoa, a Cidade de Joaquim Matos

(contos)

UM GESTO INCONCLUSIVO

O Senhor Sousa era cem por cento perfeito. O produto mais bem acabado de professor primário. De tal maneira que até havia quem afirmasse tratar-se de uma encarnação de algum espírito medieval. Eu não acredito nessas coisas, mas o facto é que ele tinha um não sei quê de múmia em seu todo. Não havia quem se gabasse de uma só vez lhe ter visto um sorriso, ou ter ouvido uma palavra, ou ter notado um gesto, em que pudesse transparecer um traço de alma humana. Até chegou a correr o boato de uns encontros nocturnos, presumia-se, com seres estranhos. E até havia quem dissesse já ter presenciado, jurando pelos seus. Que começava por lhe crescer o cabelo até aos pés, depois a barba, depois os dentes, depois os olhos, que pareciam brasas, depois as mãos, que seguravam uma espada, a da direita, e uma palmatória, a da esquerda.

O Sidónio, tal como todas as crianças da classe, sabia destas coisas e tinha-lhe um respeito total. Respeito? Inclino-me, hoje, a dar-lhe outros nomes. Talvez medo, terror, pânico! O pobre do miúdo não sabia como estar na aula. Enrolado na carteira como um bicho-de-conta, nem olhava, nem se mexia. Mas os formigueiros apoderavam-se do seu corpo e da sua cabeça. Acabava por não ter a certeza do seu bom comportamento. E tinha razões para isso. Um dia, o Senhor Sousa ergueu a sua enorme palmatória no ar e disse: "Sidónio, tens bichos-carpinteiros, mas eu tiro-tos!".

Só o recreio restituía a alma ao pobre rapaz. E então, como um cão que se solta depois de ter estado muito tempo preso, dava largas à sua euforia e era o fim da macacada. Os bem-comportadinhos, os de sapatos de fivela ou de polainitos, evitavam-no, porque o Sidónio, sempre que passava por eles , tinha que lhes fazer uma das suas. O cabelo penteadinho, com brilhantina, irritava-o. Um plastrão que assomava acima do bibe, irritava-o, Um olhar lânguido, amaricado, ele chamava-lhes maricas, irritava-o. E então não controlava as suas atitudes. Era um furacão a semear o caos. Ninguém se atrevia a soltar um ai, nem a enviar um S. O. S. a um amigo, nem a fazer chegar a sua queixa ao professor, ou aos pais.

Quando tocava a campainha a dar por fim o recreio, é que o Sidónio parava. Parava o corpo e parava a alma. Ficava hipnotizado. Caminhava como um sonâmbulo. Sem vida nas pernas e nos braços. Com os olhos mais mortos que mortiços. Um contraste com as suas vítimas, que entravam descontraídas, regressadas que eram ao seu natural.

Mal transpunha a porta da sala, o Sidónio não enxergava mais que o professor. Nem quadro, nem mapas, nem carteiras, nem colegas. Só o Senhor Sousa, com toda a exclusividade. Na sua postura medieval. Com os seus adereços seculares. Grossa sobrancelhas carregadas. Bigodes pontiagudos. Rugas vincadas. Olhos perfurantes. Com a palmatória, a régua e a vara em cima da mesa.

O Senhor Sousa gozava da fama de ser excelente professor. Em toda a sua vida de docência nunca tinha tido uma reprovação. Um chumbo era coisa que não podia passar pela cabeça do aluno. Nem pela cabeça mais destituída, nem pela cabeça de um abúlico, já que os cábulas não tinham tempo para o serem. A palmatória, a régua e a vara, utilizadas na hora certa, faziam milagres, pois conseguiam o que não conseguia uma psicologia de ponta.

A palmatória era de buxo, enorme, diferente das maneirinhas normais. De um lado, tinha uma ponta de uma tacha, das chamadas pontas-de-paris, aí com um milímetro à mostra. A mão do Senhor Sousa, uma manápula cheia de pelos como um símio, quando a erguia no ar, provocava o terror de um mastodonte. Tinha uma dose certa, nunca se soube se por superstição. Sempre seis bolos. Cinco sem tacha, um com tacha. Para que ficasse de memória e de emenda. Na mão do infeliz ficava sempre uma pequena nódoa negra e, no centro, a marca da tacha. Era uma espécie de chancela de um professor que a si mesmo se tinha por exemplar.

A mãe do Sidónio já não sabia o que havia de fazer ao seu filho. Já tinha tentado tudo. Só o não tinha estrangulado. Não ia matar o seu filho. Reclamações, chegavam-lhe de todos os lados. Do Senhor Sousa, dos pais de um aluno, dos vizinhos e até da polícia. Um dia viu um a trazer o Sidónio por uma orelha, mas fechou a janela e não atendeu, fez de conta que não estava em casa. Mas a verdade é que nem sempre a culpa era do Sidónio. Mas cesteiro que faz um cesto, faz um cento. E ele é que apanhava com a verga. Ou com o que houvesse à mão de semear.

Num daqueles dias de chuva, que mete toda a gente dentro de casa, a não ser os marginais da espécie, os meninos ficaram todos na sala de aula e não foram para o recreio, com a excepção, claro, do Sidónio e de mais dois da sua laia. Qual chuva, qual carapuça! Os mariazinhas é que tinham medo da chuva. Com o toque da campainha, regressaram à classe, encharcados como pintos. Muito sorridentes, como heróis! Os meninos olhavam para eles com admiração, com uma ponta de inveja, por não serem capazes de tais feitos.

O Senhor Sousa entra na sala. Um dos mais pequenos, fisicamente, de óculos, penteadinho, de risca ao lado, com uma voz muito fininha, mais fina que o apito de um assobio de barro, levanta-se e diz ao Senhor Professor que tinham entornado o seu tinteiro. O Senhor Sousa fica encrespado. Deita fogo pelos olhos. Tem espuma nos cantos da boca. Tenta descobrir quem foi o culpado, mas ninguém se atreve a denunciar ou a denunciar-se. Não é preciso averiguar. Só pode ter sido o Sidónio e os seus lacaios. Eles bem se justificam, que não ficaram na sala durante o recreio, mas não adianta nada. Encharcados até aos ossos, mas o Senhor Sousa não vê nada, a não ser as suas almas negras, desnaturadas. E vai daí, seis bolos a cada um.

O Sidónio já tinha aguentado com muito mais. Mas, desta vez, a dor tinha sido diferente de todas as outras. Tinha doído mais e nunca mais passava. Simplesmente porque dessa vez estava inocente. Apanhou, não disse nada, mas ficou a magicar uma vingança. Só via o Senhor Sousa com a mão de símio e a palmatória na sua frente. Nesse dia nem dormiu. Ou melhor, dormiu, mas sempre com o Senhor Sousa presente, nos seus sonhos.

Incendiar a escola?! Roubar a palmatória e lançá-la numa fossa?! Atingir-lhe a cabeça com uma fisga, quando passasse algures?! As piores maldades não lhe largavam a cabeça.

Passados oito ou dez dias, quando chegou à Escola, dá com os seus colegas cá fora e com as portas fechadas. A primeira reacção foi de alegria. Um feriado sem contar. Mas logo soube da causa verdadeira. O Senhor Sousa tinha falecido! Não disse nada. Virou as costas a todos e foi para casa.

No dia seguinte, seria o funeral. O corpo fora depositado na Igreja Matriz. As crianças foram organizadas para participarem na última homenagem. Já lá estavam todas, à volta do féretro, quando o Sidónio chegou com um ramo de flores, que depositou nas mãos do Senhor Sousa.

A mãe não tinha dinheiro para estas coisas. Só para o pão, e não o suficiente. Mas não era problema para o Sidónio. Passou por uma florista e roubou um ramo. O que nunca se soube. Assim como também nunca se soube a razão desse último gesto do Sidónio para com o seu professor.

Joaquim Matos, Sob a Névoa, a Cidade (contos), Porto, Campo das Letras, 2001.

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