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Pré-Publicações

El-Rei no Porto de Fernando Venâncio

Capítulo 15

O suor dos estádios

Foi a minha boa acção diária, a deste escuteiro que me habita ainda a alma. Tirei, julgo que tirei, o Salviano da crise em que o via indo-se perdendo. Esta tarde, nem vou mais longe. Não parou quieto, folheando suplementos coloridos do Record de há quinze anos, batendo ao computador parágrafos que se cheirava não coincidirem com nenhum pensamento, levantando-se para ir à máquina de café, da máquina de café à fotocopiadora, num desassossego que se mostrava ao mais distraído. Perguntei-lhe se tinha compromissos para jantar. Percebi que, por um segundo, procurava evasiva, mas acabou dizendo: «É como quiseres.» Deixei assim. Eu não lhe tinha pedido entusiasmos.

A partir das sete da tarde, fiz o que pude para associá-lo ao fecho do número. Eram já quase nove e meia quando largámos. Meti rumo a Vila Franca. Apeteceu-me espairecer, deixar uma Lisboa que às vezes me sufoca de mesmidão. A trinta quilómetros, no restaurante do Natércio, esperava-nos a soberba vista para o rio e uma indizível açorda de marisco. Para o toque estrangeiro, veio uma reserva de Cantanhede.

Não deixei o Salviano lançar-se logo a temas penosos. Afinal, aquele panorama do Tejo prateado de lua não pedia lamentos. Falei da minha infância por ali, dos pais algarvios e socialmente deslocados que me couberam, da saudade dos grandes espaços que, adolescente perdido na capital, para sempre guardei. Mas o meu colega não podia, via-se, aguentar o silêncio a que o obrigava. «Ainda bem que posso falar contigo», atirou assim que lho permiti. Fingi algum espanto. «Também eu, Salviano, não tenho assim tantos amigos a quem…» Mas a expressão dele cortou-me a frase, que ia prosseguir banal. Desci à terra. «Que é que se passa, moço?» «Vou deixar o jornal.» Assim. Sem dó de quem lho ouvia. Tomei um gole, estudei a jogada seguinte. A experiência que tenho não é vasta, mas sei que situações destas pedem colagem ao ponto de vista alheio. «Eu já tinha percebido», disse, «já tinha, acredita. Tu andavas, isto de há uns tempos, a cortar-te». Saída primorosa. O outro, que esperava gemidos ou fúrias, sente faltar-lhe o pé, e acaba entregando-se mais do que planeava. «Cortar-me, como?» «Cortar-te. Bom, também nada de transcendente.» Eu tinha de arrancar-lhe aquele sorriso, mesmo que tivesse de ser o último. E não ia ser.

Simplesmente, nos planos que trazia, o Salviano estava mais determinado do que pude supor. A carreira de jornalista desportivo, lembrou-me, nunca tinha sido uma vocação, longe disso, foi só, de repente, aquilo, aquela profissão viável. E verdade que o era. Sempre admirei nele a acirrada perseguição dos factos, o arguto acentuar do pormenor, o desprendimento de quem, muito singelamente, está informando os demais. Logo admirei, assim que os li, os seus textos, coerentes em extremo, «de uma só pedra», como logo lhe disse. Raramente me passou para as mãos peças frouxas, ou só quando os prazos eram assassinos, e sempre permitindo que eu lhas retocasse, o que eu fazia num mínimo, só para garantir os cuidados que um jornal, mesmo o nosso, tem de trajar. Quis lembrar-lho. «Sempre gramei o que escreves.» Assentiu, com a cabeça. «E sei», prossegui, «que também te enfureces com os tratos que se dão a tanta crónica, reportagens pior, entrevistas nem se fala. ‘O público merece o melhor’, nunca me esqueceu, foste tu que disseste. Que tal a açorda?» Sorriu. «Porreiríssima. Vens cá muitas vezes?» «Menos do que gostaria.»

«Ouve», disse ele, passado quase um minuto, fitando atrás de mim o rasto da lua, talvez o infinito. «Já há tempos que vinha descrendo daquilo. Do futebol. Do futebol, sobretudo.» E antes que eu reagisse: «Mas era também quase a única coisa, ali, a que ainda ligava. Detesto, tu sabes, o atletismo, o râguebi não me diz nada, e só de hóquei também não se vive.» «Qual é o problema do futebol?» Tomou uma garfada, levou o copo aos lábios. «Tudo. Quase tudo, acredita. Dos milhões do Sabroso aos odores dos balneários.» «Ah, sim, ‘A intratável transpiração dos estádios’, como escreveste outro dia…» «Tens uma memória tremenda. Exacto, o repelente suor dos estádios. Ou achas que não é preciso muito ânimo, mesmo muito, para abraçar um fulano que meteu dois golos, é substituído, e chega encharcadinho?» Rimos ambos. Era de um realismo vibrante. Aconselhei-o a provar o leite-creme da casa.

«O que mais me irrita ainda», prosseguiu, como se tudo encarreirasse, «são os sorrisos de vedeta». «De vedeta?» «Exacto. Desses meninos birrentos, e sobretudo muito incultos, a beijarem a bandeira do novo clube, fazendo olhinhos, como fariam a qualquer puta de luxo.» Eu quis meter uma observação, mas deixei-o continuar. Já tinha dado sinal ao João, o empregado, para que trouxesse dois conhaques. «Do futebol, podes crer», prosseguiu, «já só admiro uma coisa: a coragem física, aquela danada coragem dum avançado, a chegar-se à máquina de aço dos defesas. Fora isso… Fora isso, é aquele negócio. E os incríveis abraços e beijos depois do golo. Se calhar, sinceros. Mas é pensando no novo brilho da conta, ou pensavas que…» Provou o conhaque, vi que apreciava. «E o pior, Ricardo, é que a malta que nos lê toma-nos tremendamente a sério, quando somos nós, repara bem, que andamos avalizando os milhões.» Ficou olhando os longes, e ajuntou: «Sou-te franco. Em todos estes anos, só vi uma coisa, e uma coisa trágica, que me pareceu vinda da alma. Foi o olhar perdido daquele miúdo jugoslavo, há anos, com aquela aura promissora. O tipo entra, lembras-te, numa substituição, passados dez segundos rasteira um gajo, e, pumba, cartão vermelho. Não sei se recordas, ele a beijar a medalha ao peito. Já viste melhor pintura da solidão? Da porra que é o futebol? Pode fazer-se aquilo a alguém, a um puto?» Eu lembrava-me perfeitamente. Havia sido num europeu, a Jugoslávia tinha apanhado seis a um da Holanda. Eu tinha a mesma exacta recordação. Só não tinha culpado o futebol. Estava acima das minhas forças.

Muito baixinho, sobre as nossas cabeças, Rachmaninoff tocava o adagio da segunda sinfonia. Fiz-lho reparar. Salviano não era versado. Expliquei-lhe como, nesse preciso número, o russo jogara uma primeira parte brilhantíssima, mas tinha perdido, a partir do meio-tempo, o controlo do jogo. «Só quando ouves segunda vez é que te apercebes.» «É como, às vezes, precisares de rever um jogo no vídeo.» Simpático, ele afagava um dos meus fracos, baixava à minha linguagem.

«Que é que vais fazer?», atirei, já no carro. «Vou esperar que o Lemos volte. Ele tem umas ligações.» «Outros jornais…?» «Sim, e rádios. Aquele ano que fiz reportagem, senti-me bem à brava, tenho a dizer.»

Fui deixá-lo à porta de casa, perto das Amoreiras, onde vive agora. Era, talvez, o meu melhor amigo. Coisa fácil, também, sendo os meus tão poucos. E, daí, que sei eu da vida privada, sentimental, dele? Ignoro tudo, e da minha ele só terá vagas ideias. Pode-se ser «melhor amigo» com tanto desconhecimento? Se calhar, sim. Se calhar, é mesmo uma óptima condição.

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