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Maquinações e Bons Sentimentos de Fernando Venâncio

VERGÍLIO FERREIRA, REFORMADOR DO CLERO

Ia correndo o Verão. No mosteiro do planalto, o superior mandou convocar os professandos a horas desusadas. Não era por morte de mais algum irmão avantajado em virtudes, nem sequer para o anúncio de novo torneio de voleibol com claustros de diferente observância. Era, desconsoladamente, porque o reverendo lera um livro.

Quando ao livro se chamou «romance», as emoções espevitaram. Não havia memória de que tão humano produto ocupasse o tampo à escrivaninha do padre-mestre, onde só o breviário vinha repousar da usura, ou as Novidades, seráfico jornal católico, depositavam dia a dia uns grãozinhos do mundo. O nome do autor do livro, Vergílio Ferreira, não o ouviam todos por primeira vez. Ao fim e ao cabo, estudavam-se ali, a par de saberes teológicos, um braçado de filosofias, algumas delas dificilmente cristianizáveis. E, na biblioteca, não eram raras as produções do século flanqueando as obras de edificação. Na meia treva, lia-se com recolhimento as vidas dos mártires e com sobressalto O Crime do Padre Amaro. Ali se achava, também, Vergílio Ferreira, numa estante garantidamente comum, nada o distinguindo de um, digamos, Antero de Figueiredo.

Para mais, este Figueiredo pudera ser santo da casa. Naquele mesmíssimo convento, localizara ele uma novela, O Último Olhar de Jesus. «Se há», escrevia, «lugares religiosos-natos com a vocação mística de ajudarem os homens a erguerem-se a Deus, um desses lugares privilegiados é a montanha da Falperra.» Já dera a serra acolhimento aos bandos do Zé do Telhado, e essa utilidade continuava, domingos e feriados, a estender-se a parzinhos de Braga e cercanias. Vai para século e meio, Herculano aí viera em busca da «Falperra sombria, carrancuda, grandiosa» que a fama construíra. Falam de desilusão os apontamentos que disso deixou nas Viagens no Minho. Não se pode ter tudo, Alexandre, e a Arrábida já fazia serviço que prestasse. «Este livro», foi confessando o padre-mestre, «abriu-me os olhos. Não estou certo de que seja a todos vós acomodado. Mas se o lerdes com o pensamento no alto...»

A altura do pensamento era, com efeito, requerida. Manhã Submersa, o romance aparecido quase dez anos antes, levava ao contacto com depravações que exigiam o olhar fixo em Deus. Sem dúvida: Vergílio era de um recato exemplar. Mas impossível não ser autor de real pornografia para quantos, querendo designar as poucas incontinências para que ali havia meios, recorriam a circunlóquios, alguns de rara eloquência. Assim, «tentação no corpo» era nome de código para uma benigna erecção. Um passo em frente recebia designação de «prazer solitário», não fosse o caso de dar-se a isso, para de todo se evitarem maus pensamentos, o sucinto nome de «pecado». Era, repete-se, um dos poucos pecados ali praticáveis, para além de ser um dos pouquíssimos verdadeiramente práticos.

O reverendo – isto era patente – assustara-se. Mais romanceio ou menos, o padre lera no livro de Vergílio um espelho do seminário que ele mesmo criara. Do Fundão a Braga, de finais dos anos 20 a começos dos de 60, a distância era perturbadoramente curta. A religião ritual, o pressionar das consciências, a hipocrisia e o cinismo daí resultantes – as vergonhas de ontem vinham impossibilitar hoje a fuga. Agir, e com resolução, eis a que um resto de pudor obrigava.

Poucos meses eram passados, já o seminário se tornara irreconhecível. Uma faúlha e uma vontade a atiçá-la, é quanto basta para qualquer aggiornamento, qualquer primavera. Os cultural-pessimistas escamoteiam constantemente esta lei. Despir o hábito quando o pedisse a temperatura, dar um passeio em grupo reduzido, dois a dois até, fumar o seu cigarrito, ir à cidade ver uns livros ou ao cinema, tudo era, de repente, óbvio, natural, salutar.

Se alguém já à puridade tinha lido esse romance que lhes veio perturbar o mundo, se alguém depois se foi ainda certificar, nunca se o averiguou. Porque fazê-lo, também? O futuro sorria, o presente agradava. Manhã Submersa era o passado, donde a bruma, imprevistamente, se pusera a levantar. E os anos passaram, velozes.

Quase ninguém deu padre. Mas essa já era a vontade de Deus.

Fernando Venâncio, Maquinações e Bons Sentimentos – Crónicas Literárias

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