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Jardim sem Muro

de José Leon Machado

capa de Jardim sem Muro

Ele sabia que num jardim, entre as plantas, podiam surgir ervas daninhas. Não havia monda ou herbicida que as erradicasse definitivamente. O tratador virava as costas dois ou três dias aos canteiros e lá começavam elas a arrebitar os cornos verdes cheios de viço. As chamadas plantas benignas, se não se tratassem, definhavam e acabavam por sufocar no meio das ervas daninhas. Estas vingavam e multiplicavam-se sem qualquer tratamento especial. Os manuais de jardinagem explicavam que um jardim sem muro era mais propenso ao ataque das ervas daninhas. Com um muro alto, era mais difícil as sementes disseminarem-se pela acção do vento. Por outro lado, a sombra do muro impedia a proliferação dessas ervas que, por serem endémicas, preferiam o sol. Havia espécies de plantas ornamentais que se davam bem à sombra e os manuais aconselhavam o seu plantio. Nada disto, porém, era exacto. Apesar do muro, no jardim do sr. Lindolfo proliferavam os dentes-de-leão, as leitugas, as macelas e os beldros. Enquanto isso, as rosas, as petúnias e os amores-perfeitos, se não fossem constantemente vigiados, estiolavam.

O jardim humano, mesmo assim, era bem mais complexo. Os muros que a sociedade foi construindo para salvaguardar uma pretensa moral iam desabando. Nenhum herbicida, nenhuma monda seria capaz de expurgar os dentes-de-leão da sociedade. Simplesmente porque deixaram de ser considerados ervas daninhas. São ervas entre outras, com a sua especificidade, as suas características próprias, fruto dos mil caprichos da natureza.

Foi a pensar nisto que o sr. Lindolfo passou o resto daquela tarde, sentado à sombra do castanheiro a chupar cigarros com baixo teor de nicotina e alcatrão. Andava a tentar parar de fumar, embora tivesse a certeza de que nunca o conseguiria, talvez por falta de verdadeira vontade e porque, além das flores e do pensamento, o cigarro era a companhia que mais o distraía. E depois porque achava que já não valia a pena. Teria, quê?, mais dez anos de vida? Se o pulmão esquerdo se aguentasse, disse-lhe o médico, talvez mais quinze. O mais provável era morrer de um acidente de viação.

A esposa lá estava na piscina, deitada de costas numa espreguiçadeira, em conversa com a mulher do pastor, sentada noutra ao lado. Tinha umas belas mamas, ou pelo menos parecia. O pastor, ou lá o que era, continuava, à sombra de um guarda-sol, a leitura do calhamaço de capa negra. Assim passava aquele tipo os dias de férias, a olhar para as letras do livro como se lá estivesse guardada a explicação dos mistérios da vida. Não seria muito mais esclarecedor olhar à volta? Tantas folhas de papel se enchiam inutilmente de parvoíces que faziam inchar de vaidade os seus autores, esses pobres diabos que imaginavam ser os únicos e autênticos intérpretes da vida e dos seus mistérios!

As duas quarentonas desciam agora até à piscina. Devem ter ido dormir a sesta, provavelmente na mesma cama. Ao passar, cumprimentaram o sr. Lindolfo. Pelo menos eram educadas. Que importância tinha se andavam a consolar-se uma à outra? O mais importante era cada um ser feliz, ou tentar sê-lo. Ele era um homem razoavelmente feliz. Tinha uma mulher carinhosa e, apesar dos cinquenta e dois, ainda elegante. Os filhos estavam criados e não davam consumições. Não lhe faltava dinheiro, tinha uma boa casa, um carro potente e confortável, que mais queria? Era difícil ser-se feliz sabendo-se que se está em contagem decrescente. Mas não está todo o ser humano, desde que nasce, em contagem decrescente? Por vezes pensava como seria o momento de morrer. Provavelmente não sentiria nada. Estaria a dormir, drogado pelos médicos, que não gostam que ninguém no hospital se passe para o outro lado aos gritos, para não perturbar os outros doentes.

Mas não queria pensar agora nisso. Em casa, quando por vezes a morte lhe vinha à ideia, ia cavar para o jardim. Saía de lá retemperado. Era isso o que lhe faltava naquelas férias. Haveria de pedir ao gerente da quinta autorização para, nos dias que ainda ali passaria, tratar do jardim. Nos pequenos passeios que ia fazendo, constatava o seu abandono. A erva daninha crescia abundante entre as roseiras; as dálias e as zínias secavam com a falta de rega e as ervilheiras, a abarrotar de semente, pediam que as arrancassem. Sempre era preferível vigiar e cuidar um jardim de plantas, mesmo sem muro como aquele, do que andar a espiar os outros hóspedes, embora, considerava, não fosse tão divertido. Era sem dúvida mais saudável.

José Leon Machado, Jardim sem Muro, Edições Vercial, 2007.

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