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Pré-Publicações

capa de 'O Cavaleiro da Torre Inclinada'

O Cavaleiro da Torre Inclinada

Cenas da vida académica

de José Leon Machado

O livro de Teologia Moral (extracto)

Como tema de tese de doutoramento, fora sugerido ao Dr. Licínio, assistente do Departamento de Sociologia na Universidade D. Dinis, a história do adultério desde a Idade Média até à actualidade. Quando começou a fazer a revisão bibliográfica do tema, deparou-se com uma obra na biblioteca da universidade que, embora não fosse da área da Sociologia, lhe interessou de imediato: O Adultério na Literatura Portuguesa do Século XVIII. O autor, Marco T. Ferreira, docente de Ciências da Cultura na mesma universidade, publicara-a alguns anos antes e, segundo informação na terceira página, era a sua tese de doutoramento. O Licínio leu-a com agrado e ali colheu muitas informações acerca daquela prática que pensou utilizar.

Durante a leitura, encontrou uma citação mais ou menos extensa que lhe despertou a curiosidade. Em nota de rodapé, o autor do estudo apresentava a referência bibliográfica: R. P. Thomae Tamburini, Theologia Moralis, Veneza, 1748, volume I, De Praeceptis Decalogi, página 176 (exemplar consultado na Biblioteca do Seminário Diocesano). Na citação se resumia a posição oficial da Igreja na época acerca das práticas adulterinas. A questão interessava-lhe particularmente e tomou nota da referência, agendando uma visita à biblioteca do seminário para tentar descobrir a obra e, se possível, algo mais que lá dissesse.

O bibliotecário, um tipo com aspecto de sacristão, sentado numa cadeira conventual, os pés ternamente poisados sobre uma pilha de números antigos do Osservatore Romano, atendeu-o com má vontade. Não gostou de lhe terem interrompido a sesta que costumava tirar depois do almoço. Como a obra que o assistente pretendia consultar era antiga, levantou-se contrariado e guiou-o por uma escada em caracol até à cave, onde se encontravam depositados os cartapácios que já não interessavam a ninguém.

A estante de Teologia Moral estava carregada de grossos e pesados tomos com o mesmo título, mas de diferentes autores. Havia a Theologia Moralis de Anacleto Reiffenstuel publicada em 1724 num volume; a de Afonso Maria de Ligório de 1762 em três volumes; a de Hermann Busenbaum de 1747-1753 em dois volumes; a de Nicolai Mazzotta de 1781 em cinco volumes; e a de Tommaso Tamburini em três volumes. O Licínio retirou o volume I do Tamburini e poisou-o, por sugestão do bibliotecário, numa das mesas de leitura próximas, fazendo levantar uma ligeira nuvem de pó. Seguindo a referência, foi folheando o tomo e, quando chegou à página que lhe interessava, verificou que estava colada à seguinte.

O bibliotecário aproximou-se para verificar o problema e, quando o assistente viu que ele ia tentar descolá-las à bruta, disse-lhe para ter cuidado, ou ainda danificava o livro. Aquele, um tanto enfadado – Que importância tinha um rasgão num livro que já ninguém lia e que só estava ali a ocupar espaço? –, procurou no bolso do casaco um canivete e passou-o ao assistente. Este, com o maior cuidado possível, descolou as folhas e os estragos foram reduzidos.

– Há gente que não tem respeito nenhum pelos livros – comentou. – Onde já se viu deixar cair cola num livro como este!

– Se é que é cola – retorquiu o bibliotecário.

– A mim parece-me cola.

– Também pode ser gordura. Ou muco do nariz. Mas pela textura da mancha e pela maneira como está espalhada, talvez não seja nada disso. Sabe o que me parece? Esperma.

– Esperma?

– Não me admiraria nada que algum seminarista se lembrasse de vir aqui bater uma pívia.

– É um pouco forte o que está a dizer.

– Acha? Pois então o doutor ainda não viu nada. Eu trabalho aqui vai para seis anos e tenho de lidar com esses bárbaros. Estão no seminário porque querem ser padres... Quando devolvem um livro requisitado, nem se pode olhar para ele. Arrancam as páginas, rasgam, dobram, riscam, sublinham e até chegam a desenhar porcalhices. Tratam melhor os sapatos. É o que o doutor diz: Há gente que não tem respeito nenhum pelos livros.

– Pelo menos lêem-nos.

– Ah, isso já não sei. É assunto que não me diz respeito. Eu limito-mo a fazer o controlo dos livros que saem e verificar se são entregues dentro do prazo.

O Licínio debruçou-se sobre o Tamburini e, com a ponta do canivete, raspou um pouco da mancha. Esta desfez-se em pó branco.

– Se isto é esperma – considerou –, porque é que alguém haveria de o deitar nas páginas de um livro? Não tem lógica nenhuma.

– E não precisa de ter. Cá para mim, o safado do seminarista responsável por isso fê-lo para escarnecer das coisas santas.

– E porque haveria de escolher esta obra? Deve haver muitas bíblias na biblioteca em que podia dar azo ao escárnio de uma forma mais eficaz.

– Talvez a obra estivesse aí à mão de semear.

O assistente não estava muito convencido. Tanto mais que os seminaristas, em princípio, não consultavam livros antigos como aquele. Devia haver outra explicação. Raspou mais alguns pedaços da mancha e deitou o pó branco numa caixinha que usava para guardar os comprimidos para o colesterol. Antes, porém, tomou o único comprimido que lá havia. Depois confirmou a citação, transcreveu mais algumas passagens sobre o adultério e abandonou a biblioteca agradecendo ao bibliotecário a ajuda.

No dia seguinte, passou no laboratório de Genética da universidade e pediu a uma colega com quem tinha alguma confiança que, quando tivesse disponibilidade, fizesse uma análise ao pó. Precisava de saber o que era e há quanto tempo fora produzido. Já que a tecnologia permitia com alguma facilidade desvendar pequenos mistérios, porque não servir-se dela para descobrir o que realmente se passou com as páginas daquele livro de Teologia Moral? Não ganhava nada com isso e de pouco lhe serviria para a sua investigação sociológica.

Daí a uma semana, recebeu um email da colega a dizer-lhe que o pó era uma estranha mistura de papel com esperma humano cristalizado. O esperma era de homem branco, entre os trinta e os quarenta anos, e fora produzido há pelo menos oito anos atrás. O papel tinha mais de duzentos anos. Como os dados eram díspares, ela repetira a análise. Foi confirmada inequivocamente a composição do pó.

José Leon Machado, O Cavaleiro da Torre Inclinada, Edições Vercial, 2009.

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