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Recensões

Adolescência e queda na literatura americana
Os Meninos Loucos de Salinger

1. How do you do, Mr Salinger? – cartão de vista do Escritor

Pai judeu, mãe celta. Os amigos chamam-lhe Sonny. Jerome D. Salinger dividiu a 2ª Guerra Mundial entre a contra-espionagem e a escrita de contos em solitários quartos de hotel. Até que um dia, na Greenwhich Village, descobre o budismo Zen e com ele alguns dos temas e essências da sua obra. Em apenas quatro lombadas – The Catcher in The Rye (1951), Nine Stories (1953), Franny and Zooey (1961) e Rise High The Roof Beam, Carpenters / Seymour – an introduction (1963) –, conquistou estantes, repôs em cena o mito americano do Adolescente em busca de si, e fermentou uma das mais agrestes polémicas da Literatura dos anos 50.

Atingido o sucesso – veloz, porém permanente, -Salinger refugia-se em cidades cada vez mais desterradas (Tarrytown, Cornish...), numa retirada a anteceder as três dezenas de anos em que a sua máquina de escrever não falou. Culto do segredo, divórcio da sociedade, vendeta contra quem o acusou de autor para consumo industrial ? Onde está o Escritor de quem Hemingway disse ter um talento dos diabos ?

2. Dom Quixote na América

No universo dos seus escritos, Salinger apresenta-nos uma galeria de meninos prodigiosos, de sensibilidade e inteligência à flor da pele, que em dado momento fazem um ajuste de contas com a sociedade materialista e o mundo adulto. Holden recusa-se a crescer e a desertar a infância; Franny ressuscita de um esgotamento nervoso para o budismo; Seymour suicida-se com uma calibre 7.65; Zooey, o irmão, lê a derradeira carta, na solidão de uma banheira, onde mergulharam as suas frustações.

Em qualquer caso, todos viajam até ao terminus da inocência, quixotescamente revoltados contra a desumanidade, o handicap de amor, a ausência de comunicação. Um autismo profundo vinca as personagens de Salinger, página a página, obra a obra. A mais conhecida, é o paradigmático Holden Caulfield, protagonista de The Catcher in The Rye, novela ora ensinada, ora banida das escolas Americanas. Com justiça ou não, a verdade é que Mark Chapman, ao assassinar John Lennon se dizia inspirado por essa obra. E também que o livro, após ter sido estudado durante vários anos em Portugal, desaparece dos curricula do 12º ano, sem deixar rasto.

É portanto com Holden, o contencioso adolescente, que marcámos encontro.

3. Agulha em Palheiro

Perdoe-me o leitor o didatismo, mas vou, palavras breves, traçar as traves da obra em causa – The Catcher in The Rye, traduzida como Agulha em Palheiro. A estória é a do anti-herói Holden Caulfield, um adolescente hiper-sensível, no cruzamento entre a infância e a adultícia. Símbolo do revoltado contra os rites-de-passage, a sua aventura começa quando é expulso do colégio. Passa então três noites em Nova Iorque, tempo suficiente para se dar conta da hipocrisia de uma América a braços com os seus fantasmas, snobismos e códigos sociais. Holden procura respostas junto de amigos e de uma jovem de fraca reputação. Na ausência de explicações e de afecto, agudiza-se a sua luta psicológica e aumenta a relutância em entrar no mundo dos adultos. Uma viagem iniciática pelos hotéis e bares de N. I., que a darmos crédito ao crítico Gunwald é um percurso pelo fim da inocência: quando Holden tenta entrar na raça humana, descobre que, afinal, a humanidade não existe.

Trata-se pois do processo de queda e ressurreição de um jovem múltiplas vezes equiparado a Huckleberry Finn ou a James Dean, em Rebel without a Cause.

Protótipo do inadaptado (o misfit), incapaz de se encontrar ou enquadrar, Holden cativa pela simpatia universal, inteligência urbana, linguagem colorida com que relata a história de doidos que lhe aconteceu.

4. Rebelde com causa e consequência

Uma boa fatia do sucesso deste bildungsroman deve-se precisamente à verosimilhança da personagem principal. Clinton Fadiman explica: The Catcher in The Rye é um raro milagre da ficção. Holden é real, não obstante ter sido feito apenas de tinta, papel e imaginação.

Invoque-se também a autoridade do escritor nobilado William Faulkner, que interpretou Holden como um inteligente e sensível jovem, que no seu dia e tempo era um anacronismo (...) tentando lutar renhidamente com um mundo hodierno para o qual não estava preparado.

De facto, a indisciplinada hipersensibilidade de Holden leva-o a não conseguir diferenciar entre bom e mau – tudo se lhe afigura negativo, dada a sua impotência em se purgar. Como um balão, retém a globalidade dos fôlegos e experiências, adivinhando-se, no fim deste pathos, uma explosiva e final catarse – o esgotamento nervoso do anti-herói. Este culminar é pressagiado logo no início da obra, pois Holden anuncia estar num sanatório a recuperar da queda psicológica. No entanto, o clímax só ocorre no penúltimo capítulo, quando, sob chuva desesperada, vê a pequena irmã Phoebe a girar no carrocel e se apercebe da impossibilidade do seu sonho.

Ao longo do livro, o leitor vai apreendendo a sucessão dos falhanços de Holden, na tentativa patética de preservar a inocência pueril, face a um mundo adulto corrupto e desumanizado. Luta, por exemplo, para apagar os palavrões escritos nas paredes da escola frequentada pela irmã. E bate-se com o playboy da Escola, afim de proteger a pureza platónica da namorada, Jane Gallagher. Pequenas utopias de bolso, próprias de quem acredita poder salvar o mundo.

5. Phoebe: entre a seara e o abismo

Phoebe, a irmã de 10 anos de Holden, é sinónimo de pré-adolescência e candura. Protótipo da menina-génio, tão querida a Salinger, e que sob outro nome parece emergir em Franny e Zooey, uma noveleta. É em si que a obsessiva ternura do protagonista vai recair ao querer ver nela a próxima vítima da sociedade adulta. Atente-se no facto de o nome Phoebe remeter para fobia. Porém, o valor da menina não se esgota em ser destinatária da protecção do irmão. Actua como confidente do seu sonho. Com efeito, numa passagem sublinhadamente simbólica da obra, Holden desabafa-lhe:

Eu estou sempre a imaginar todos esses miúdos a brincarem numa grande seara. Milhares deles, e ninguém crescido por perto – excepto eu. Estou parado, rente a uma falésia. Tudo o que tenho de fazer, é agarrá-los, caso se aproximem demasiadamente do abismo (...) Eu seria o apanhador na seara. Eu sei que é loucura, mas é a única coisa que eu gostaria de fazer.

Tida por alguns como chave do livro, esta passagem, adverte-se, não roda mais do que algumas vezes na fechadura complexa do texto. Mas elucida. Poderemos aqui entrançar alguns símbolos com os seus significados. O abismo é o pecado. As crianças, a inocência, jogando junto ao perigo. O apanhador na seara, Holden, é quem as protege, interpondo-se, e assim evitando a queda dos miúdos – ou seja, o crescimento, a entrada no hostil mundo da adultícia.

Curioso é constatar a justaposição entre esta discreta alegoria e a explicação bíblica (e puritana) dos demónios, como sendo anjos inocentes que caíram, dissolvidos nas profundezas dantescas.

E a este propósito, o autor brinca com o aspecto fónico dos nomes próprios. Holden Caulfield evoca-nos hold (agarrar) e field (campo) – a sua função é ser o apanhador na seara, título da obra, numa tradução literal.

O leit motiv do texto não deve ser, porém, tido como autotélico. Até porque, para além da evocação bíblica do princípio da queda, poderemos ainda estabelecer uma relação de intertextualidade entre a alegoria referida e um poema do romântico escocês Robert Burns – Através da Seara (Coming through the Rye). Neste narra-se a estória de uma menina, Jenny, que é beijada (perde a inocência?) no campo de trigo, e por isso chora. Holden conhecia a balada popularizada nos anos 40 e 50. Usa-a como símbolo da sua sonhadora esquizofrenia, e bandeira profética da já vindoura década de `60.

6. Salinger vs. críticos: puritanismos e impudências

Succès de scandale?

Holden é messias, e como tal sofre uma crucifixação simbolizada pelo esgotamento nervoso em que, findo o livro, tomba. Esta expiação pressupõe um Herodes: a sociedade americana da década de `50, e alguns pecados capitais (ou será capitalistas ?). Conta-nos Charlotte Alexander que, nessa era, quem não tinha TV simulava a sua posse colocando uma antena no telhado, e que quem não comprava caddillacs, o símbolo de status par excellence, adaptava ao automóvel acessórios semelhantes aos dos veículos de luxo.

Perante o corrosivo materialismo, Holden purga-se pela queda, sem se esquecer de denunciar as incompatibilidades do sistema escolar, as linhas demasiado cruzadas do diálogo pais – filhos e de defender a infância, que no dizer de Wordsworth é a sossegada e triste música da humanidade. Em última análise, na personagem o desejo de pré-adolescência é transmutação do saudosismo por uma América tão pura quanto selvagem: o continente mítico dos puritanos, o farol do mundo, o neo-éden, a última grande oportunidade de, na terra nova, refazer sem vícios nem pecado, a história Humana. A guerra da Coreia, iminente, não é apenas senão referida por Holden, na passagem em que se oferece para guiar a bomba, qual kamikaze, numa última imolação.

Não é, portanto, surpreendente que as críticas ácidas de Salinger tenham desplotado bocas de pasmo e contra-reacções vindas das áreas mais conservadoras. Apenas alguns exemplos:

Não é próprio para crianças. Holden é (...) profano e patético para além do credível (Longstreth).

Excessivo uso de palavrões e calão (Riley Hughes).

Imoralidade e perversão (Longstreth).

Porém, o mérito transpôs-se à medíocridade das críticas, em comentários mais isentos e literariamente fundamentados, de que vos deixo um trio de excertos:

Este livro poderá ser um choque para muitos pais que se indagam sobre os pensamentos e acções dos jovens, num efeito salutar. Uma obra adulta (muito franca) e altamente recomendada (Harold Roth).

J. D. Salinger é provavelmente o mais avidamente lido autor com legítimas pretensões da sua geração (Arthur Mizener).

Salinger escreveu um livro com vida, sentimento e sinceridade – raras qualidades nos nossos dias. Torna-se capaz de compreender a mente dos adolescentes (James Yaffe).

Livro de culto, proibido ou recomendado, à prova de tempo, avant-letrista da época das flores nos cabelos, The Catcher in the Rye foi-se tornando mais imprescindível que obrigatório. Um hino-reduto à inocência perdida.

A contestar, gostar e ler – de capa a capa.


Toda a obra de J. D. Salinger se encontra traduzida para português e publicada pela Livros do Brasil, na sua Colecção Dois Mundos. The Catcher in The Rye nomeia-se como Agulha em Palheiro. Recomenda-se também a colectânea de contos e o volume que reune as duas novelas, de título Franny e Zooey.

Há igualmente a versão original de T.C.I.T.R., publicada pela Penguin e pela Bantam Books, em preço aceitável.


Alguma bibliografia recomendada:

ALEXANDER, Charlotte, J. D. Salinger`s The Catcher in The Ryea critical commentary, N. Y., MONARCH NOTES, 1ª ed. 1965.

SALZMAN, Jack (ed.), New Essays on The Catcher in The Rye, Cambridge, C. U. P., 1991.

KAPLAN, Robert, Cliffs Notes on Salingerīs The Catcher in The Rye, Lincoln, CLIFFS NOTES, 1989.

GUNWALD, Henry, Salinger a Critical and Personal Approach, N. Y., HARPER, 1962.

FRENCH, Warren, J. D. Salinger, U.S.A., TWAYNE PUBLISHERS, 1976.

João de Mancelos

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