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Filho Nativo
de Richard Wright

A recente atribuição do Prémio Nobel da Literatura a Toni Morrison, aliás Chloe Anthony Wofford, de Ohio, mostra um comité nem daltónico (a Autora é negra), nem tampouco insensível ao facto de se tratar de uma Mulher. Que as Letras tinham género, já Virginia Woolf ou Sandra Gilbert no-lo haviam declarado. Um passo avançado na amplitude dos Estudos Femininos – e agora também no reconhecimento da existência de uma produção Afro-Americana contemporânea.

Os dourados Anos Vinte foram ritmados pela Idade do Jazz, em concomitância com uma consciência da cultura e artes negras. A norte de Nova Iorque, a experiência da negritude numa sociedade de valores e tradições eminentemente brancos, é parturiente do movimento Harlem Renaissance, transparecendo na poesia cadenciada de blues de Jean Toomer e o seu bíblico Cane, ou no epigráfico I, Too de Langston Hughes, de que aqui se deixa mostra:

Também eu canto a América.
Eu sou o irmão mais escuro.
Mandam-me comer na cozinha
Quando as visitas chegam...

As carências de uma etnia só se lograriam exibir usando técnicas realistas mais vincadas. Nessa prateleira ideológico-literária, as lombadas de Richard Wright assumem particular significado. Os Filhos do Pai Tomás (1938), Rapaz Negro (1945) e o paradimático Filho Nativo (1940), onde o herói, Bigger, já não é o topos atormentado pela sociedade branca, mas antes um vórtex de força, agressividade e cega busca de justiça.

Este clássico indisputado, best-seller de três milhões de cópias, assume-se pelo autor como fragmentariamente feito de experiências pessoais. O Bigger nº 1 representa, na infância de um Richard Wright de pé descalço, o negro prepotente que o aterrorizava. O Bigger nº 2 – outra memória – já não dirigia a sua agressividade contra a comunidade de cor, antes a desfechando contra os opressores brancos sulistas. O 3º Bigger foi morto por um polícia durante a Lei Seca. O 4º, enlouqueceu, numa desesperada e infrutífera resignação. O último desafiava orgulhosa e messianicamente a cidade de Dixie, no tempo em que até os parques de estacionamento ostentavam os letreiros – «para brancos / para negros». O autor, faz, nesta introdução, Bigger após Bigger, a tipologia do Afro-Americano, demonstrando que não há um negro estereotipo, mas antes que cada homem é uma raça. É, aliás, curioso o trocadilho sonoro entre Bigger (maior) e nigger (preto – termo inglês popular para indivíduo de raça africana).

Apresentados o herói e o escritor, desenovelemos, palavras breves, o enredo, tal qual ele nos é enunciado na contracapa da edição americana: Desde o início, Bigger Thomas estava destinado ao cárcere. Poderia ser por assalto (...), acabou por ser por assassinato e violação. «Preto» num mundo de brancos, os seus actos criminosos perturbaram a metrópole de Chicago. A primeira vítima, resultante de um não premeditado instante de pânico, leva-o a ser apanhado por forças fora do seu controlo e conhecimento. Porém, a violência concedeu-lhe um sentido de libertação e identidade que nem a companheira, Bessie e a bebida, nem a mãe e a devoção religiosa, lhe ofertariam.

Este clássico indisputado coloca em cena a ideologia comunista face à burguesia citadina, os conflitos rácicos entre americanos brancos e negros, as contrastantes condições económico-sociais nas áreas degradadas e bairros respeitáveis. A actualidade permanece idêntica e perene: a Chicago dos anos 20 pouco difere da Los Angeles deste fin-de-siècle.

Ficção realista e saborosamente contraditória: quixotescas personagens, num universo onde só os brancos sobrevivem; a demanda uma autonomia individual, num environment onde a cor não é ser pessoa, mas antes representação de um inteiro grupo.

Assim se leia este Filho Nativo.

João de Mancelos

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