Letras & Letras

Recensões

E Deus Teve Medo de Ser Homem
de Daniel de Sá

Poucos li, com tanto jeito para a ficção histórica como Daniel de Sá. Eu, que tenho uma memória que se apaga com muita facilidade, ainda tenho bem viva, nela, a peça de teatro Bartolomeu, que parece ter passado desapercebida pela crítica. Confesso que não sei o que é necessário fazer para que não se perca o que há de bom publicado e que dignifica as nossas letras. Bartolomeu marcou-me. Com frequência a sua força abana-me como se estivesse em plena leitura. Agora surge-me E Deus Teve Medo de Ser Homem, do mesmo autor, e sou abanado por essa mesma força, que sinto antes de a pensar, fora de qualquer análise.

O historiador transmite-nos os factos e os acontecimentos de uma maneira seca, numa linha de causa-efeito, exaustivamente documentada. Falta-lhe, regra geral, o calor humano, aquilo que mais directamente sentimos, a "vida", em que as palavras se secundarizam. O ficcionista, regra geral, levado pela imaginação, cai no polo oposto, desligando-nos do real.

Daniel de Sá derruba esta fronteira, estabelece um nexo literário perfeito entre história e ficção. Ele fala-nos das coisas como se as tivesse vivido, como se as tivesse sentido em situações concretas, com as feridas delas decorrentes ainda abertas, no corpo e na alma. Lê-lo, é ouvir e presenciar as personagens, no seu espaço e no seu tempo rigorosamente reproduzidos. Há documentação e há vida. E há arte, garante de tal sucesso.

E Deus Teve Medo de Ser Homem é mais um testemunho da perseguição ao povo judeu. Em dois planos temporais que se cruzam, o do poderio romano e o do poderio alemão de Hitler. Uma acção desdobrada com a intenção de mostrar que os tempos são outros, mas os cenários são os mesmos. Com um distanciamento de quase dois mil anos, a maldade humana repete-se. Com outros meios de tortura, mas sem grandes diferenças na sua extrema crueldade. Mostrando que a ética não acompanha o progresso do homem, que qualquer que seja o seu nível de desenvolvimento nele persiste a indiferença pelo sofrimento do outro, atingindo expressões do mais cruel sadismo.

A história da humanidade, feita de contradições dolorosas, é trágica, marcada por um fatalismo que deixa pouco espaço para uma esperança, a não ser de ordem metafísica. Este é a focagem, por excelência, que encontro nesta obra de Daniel de Sá. O sofrimento, exaustivamente detalhado, do corpo até à alma, adquire uma dimensão que ultrapassa raças, geografias e tempos. O povo judeu é um caso que se quer paradigma de todas as atrocidades.

Apesar de tudo, a esperança humana parece ser a última a morrer. Na época de Herodes, Cristo surge como luz no fundo do túnel. Na época de Hitler, um outro Cristo, que se diz ser o mesmo, anuncia essa esperança. E promete voltar. Mas este Cristo teve medo de morrer. A maldade do homem ultrapassou a intenção de Deus, que o criou. Deus, no lugar do homem, feito homem, teve medo. Um espaço de vasta reflexão teológica, que Daniel de Sá aproveita para questionar. Os problemas da moralidade religiosa encontram-se com os problemas da ética existencial. Que somos, finalmente? Que esperança, no que somos? Uma amargura profunda invade o leitor, encarcerado na sua impotência, para alcançar a verdade última que nos conduza ao sossego de um sentido.

Daniel de Sá faz uma curiosa montagem na sua "novela", alternando duas épocas distantes, que liga pelo sofrimento e pela presença de Cristo. Consegue, por esse processo, dar uma enorme profundidade temporal, que de outra forma seria difícil a nível de novela. É uma forma de não encurralar numa pequena história o que tem a dimensão de toda a história da humanidade.

Para terminar estes breves apontamentos de leitura, não posso deixar de chamar a atenção para a escrita de Daniel de Sá. Ela, sem dúvida, para além das técnicas narrativas adoptadas, está na base de uma comunicação portadora de cargas afectivas e cognitivas, que fazem pulsar a vida que leva o leitor a deixar-se envolver e a participar do sofrimento e dos problemas a ele inerentes. O rigor clássico, a economia das palavras privilegiando uma finalidade semântica, sem concessões a artifícios literários, tornam a leitura fluente. A escrita apaga-se na leveza de uma arte em favor da sua mensagem, de conflito religioso e existencial, numa diagonal histórica, que é história e profecia, que é desespero e ânsia, que são trevas profundas com um ténue reflexo de luz, algures, com dificuldade em sustentar-se.

Joaquim Matos, em Correio dos Açores, 15 de Janeiro de 1998

Voltar à página inicial das Recensões

Colaboradores | Coordenação | Contactos | © 1997-2015 Letras & Letras