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Recensões

João Rui de Sousa: uma poética da luz

Azul é um qualquer rosto iluminado!

João Rui de Sousa, in Palavra Azul e Quando, Átrio, 1991, p. 24

Desde o seu primeiro livro, Circulação, 1960, até Obstinação do Corpo, 1996, o foco de irradiação poética pela palavra, em João Rui de Sousa, é o Amor, não o simples sentimento circunstancial que acontece na conjunção de duas vontades, mas a disponibilidade ôntica para beijar tudo o que se toca, tudo o que se pressente, tudo o que se intui, tudo o que se sonha, e que correspondem às mais legitimas aspirações humanas. Amor como identidade humana, como ponte entre imanência e transcendência, como relação entre o Eu e a Criação, como deleite de um todo que se revela na pequenez de uma existência, que se ilumina, iluminando o que a cerca, as coisas e os seres que são o corpo do Universo.

De título em título, assiste-se a uma diáspora do Amor, em sua enunciação, descritiva e narrativa, oponente a todos os contrários.

Em Palavra Azul e Quando; todos os títulos se reúnem numa só voz poética. Poesia de síntese, sumo extraído pela máquina dos anos, onde os contornos semânticos se esbatem num todo uno, inefável, ôntico, onírico, social e existencial, e onde a expressão, também ela, noa é dada na leveza dos recursos que resulta de longa cinzelagem. Azul é a grande metáfora onde tudo está, a presença e a ausência, com todas as suas proliferações paradigmáticas e sintagmáticas, onde o prazer e a dor emergem lado a lado, escoltados pela esperança, por uma utopia de origem luminosa, onde o novo homem se quer e se proclama, como mensagem que decorre do sentido da Criação, sem limites térreos, aberta a todas as aspirações.

Por algo do simbolismo oitocentista passará a obra de João Rui de Sousa, no que nele houve de mais profundo, o dos nexos universais. Mas apresenta-se livre, porque o homem é a excelência da arte, que por ele se descobre, cresce e se afirma. O conteúdo é a chama da forma, que acaba como ventre do próprio conteúdo.

Poesia na primeira pessoa, de singular que se pluraliza, e de uma terceira, o Azul, que também é primeira, porque o poeta é o seu receptáculo e a voz do poeta não é mais do que a voz do Azul.

Poesia de luz – Azul – e de iluminação, em que a natureza do seu discurso não andará muito longe de uma cultura de raízes teológicas, ainda que na intenção se rejeite.

A poesia de João Rui de Sousa é a diáspora dos sentimentos humanos por todos os espaços que se revelam à existência, físicos, sociais, éticos e cósmicos. Da paz à felicidade, da injustiça ao sofrimento, da frustração á esperança, do próximo à distância, do familiar ao desconhecido, todas as gradações do sentir e do pensar são cordas de uma poética melodiosa, sem que embale. Uma poética da luz, isto é, do homem iluminado, que se deseja que o seja, para que seja um novo homem: «Azul é quando o homem se ultrapassa» (Palavra Azul e Quando, Átrio, 1991, pág. 14.).

Em Obstinação Do Corpo, o mais próximo de nós, da nossa natureza mais elementar, João Rui de Sousa privilegia o corpo, o lugar das recordações que ficaram para uma «aposentação», que não se quer que seja amputação.

Um corpo que não é só corpo, que está embebido de toda uma poética já percorrida, mas que não deixa de ser eleição, o vinho que sobrou no cantil de um guerreiro. Só? qual o valor do corpo na gama dos valores humanos na gestação da existência? Obstinação do Corpo abre com uma citação de Nietzsche: «Há mais razão no teu corpo do que/ na própria essência da tua sabedoria.» E de João Rui de Sousa pode ler-se , na obra citada, na página 33, com o título Percursos: «Trucidava-te com todas as letras / de um longo alfabeto pornográfico.// E percorria-te – como só os deuses sabem/ quando humanos se tornam/ e bebem, como nós, o vinho dos amantes.»

Joaquim Matos, Pedrouços, 14/01/1998

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