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Recensões

António Rebordão Navarro: (per)curso poético de 30 anos

A crítica actual procura-se no ritmo crescente que o progresso imprime indigestamente. De recriação passa positivamente, é uma opinião, a criação. Evitando o (en)cargo de uma e de outra, ou outras, os espartilhos de escola (per) deram a sua elasticidade, parece-me oportuno, pelo menos, publicitar a ressonância que me ficou de uma leitura rápida de 30 anos de actividade poética de António Rebordão Navarro.

Em 1952, imprime-se, pela primeira Vez, com As Três Meninas e Outros Poemas À flor da sensibilidade, a infância, a juventude, as histórias, o patriotismo escolar, o quotidiano.

Em Outro Caminho do Mar, 1953, surge num outro caminho, do mar, no fluxo e refluxo das ondas, a descolagem do real no sonhado, a distância do berço medida por passos de angústia, desilusão, revolta. O real passa pelos filtros emotivos, numa corrente lírica em que se dilui pelas pessoas, pelas coisas – «Amei todos com loucura» – e se desgasta em destroços de miséria, de injustiça. Fica-lhe a imagem da praia, a candura que ainda resta, a criança, e mulher, a natureza.

Em 1955, em O Mundo Completo, no mesmo caminho, mas mais experienciado, a descobrir o contorno dos fados, revela-nos um espaço definido, concreto, geograficamente português, de social, histórico e metafísico. O ângulo universal, se é que tudo o não é, surge não necessariamente. Solidariza-se com «todos os que vivem e que sofrem, / que torcem os dedos e se neutralizam». Mas também com ele próprio, a carecer de repouso, «dormir em paz com as coisas do Mundo», ou a procurar uma fuga na qual não quer participar – «os homens passam / sem verem que a terra lhes oferece a sombra / juntamente com os frutos e canções».

Sacudida a sombra, retemperadas as forças nos frutos e nas canções, ou vice-versa, os frutos e as canções nas forças, o poeta (se) reparte para a luta, no poema, subtraindo-se à desilusão – «não é preciso esperar a Primavera». A miséria, a guerra, a morte, trazem-lhe o sabor acre do nihilismo, mas supera-o. Se é surpreendido pela solidão, «são Coisas tão vulgares as que transporto / das minhas excursões sem companhia», motiva-se para uma solidariedade num concreto sem palavras – «Amamo-nos no arame farpado, no fundo dos cigarros, / na luz dos candeeiros».

Em Os Animais Humildes, de 1956, R. N. alarga um espaço já sentido na obra anterior – «dormir em paz com as coisas do Mundo». Numa zoológica simbologia, superfície de personificações, opõe o mundo inofensivo dos animais à agressividade do homem. Numa sensibilidade aberta de infância, intimida o caracol, tímidas criaturas, a formiga, bichos pacíficos a indefesos de sonos mansos, a minhoca, de vida livre, a joaninha, pintora de verdes, o gafanhoto, tímidos e insolentes, a rã, que cresce e vive em paz, a lagartixa, que faz noivados verdes nas frestas dos muros, etc.

Em 1959, (re)passa pela revolta interior, enquistada num grito que rebenta amadurecido com Poemas para Anne Frank. A (re)construção fria da Europa, em curso, ainda não tinha apagado as marcas de sangue de 50 milhões de pessoas. Anne Frank, judia, vítima do nazismo, renasce em R. N. como holocausto pela paz, como inalternante condenação da guerra: «Anne / não pode morrer com 15 anos», «É preciso lembrá-los (os responsáveis) para que mais no fundo / do esterco e da sombra / seus corpos apodreçam / e o pó dos seus cadáveres / se desfaça a muitas braças de profundidade / para que nem os ventos se conspurquem, levando-o.», «a: Paz / não é ainda o jardim que sonhavas, / e teu exemplo serve / para a futura entrada / do mundo que tu querias,/ do aberto mundo».

Em 1960, O Dia Dentro da Noite, contrapõe à noite, «fazer e desfazer o colar da vida», o dia, «o melhor é viver». Viver conotado com resistência, «aqui estamos resistindo», com palavra, «A poesia renasce dos naufrágios», com amor, «Quem não sabe que o amor tem mais força que a sombra», com luta, «o gosto da pólvora de uma guerra diária», «renovada luta de músculos e dedos», com esperança, «um die acharemos uma flor, uma criança, um verso, / o seu nome é esperança». Em 1961, R. N. reaparece, Aqui e Agora, a avivar mais a frio o espaço Aqui, o tempo Agora. Espaço e tempo cada vez mais exteriores ao poeta, ao assumir-se de repórter do quotidiano: «Paro e respiro vida no ar das ruas, / mas só o tempo necessário / para amar estas gentes e lembrar-me das gentes de outras ruas». É nas ruas de Aqui e de Agora que recolhe em abundância os motes socio-económicos que glosa, atingindo o seu maior grau de objectividade. É um sentir de fora para dentro, que dá músculos aos sentimentos, esqueleto às razões, sangue às palavras: «Se tivesse um revólver, um punhal, coragem / podia saltar para a rua a acabar / com os problemas do senhor burguês, / com o sorriso amável do porteiro negro, / com o fanatismo da beata velha, / com o corpo exausto de uma prostituta, / com o futuro escuro do moço de trolha». Mas, se R. N. se colou na trincheira dos outros, por um lado, por outro, combate nelas próprias a indiferença, a passividade, como leis fatais inexoráveis. Ora ataca da viseira, «Façam de conta, fechem os olhos, / tapem os ouvidos», ora de rosto desprotegido, «Poderia falar-te de coisas que não estas, / de outra gente, não esta que ora segue / sonolenta e resignada pelas ruas. / Esta gente que não tem um sonho a embalar, / mas filhos, muitos filhos, / esta gente sem gritos nem revoltas, / mas sorrisos humildes e postiços». Tem o cuidado, porém, de isentar os que «tinham sido firmes e passado / sobre a estúpida crueldade que os cercava», crueldade que ele próprio sente e desabafa com Maria Vergínia: «é duro de dizer que não tinhas casaco, meu Amor, / e teus cabelos me caíam pelas costas».

Em 1978, António Rebordão Navarro publica O Inverno, com 6 poemas. Pressente-se uma procura. O quê? (não quê) e o como? Nova experiência? Aqui? Agora?

Joaquim Matos, em Jornal de Notícias, 13/12/1983

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