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Che
Manuel Alegre
Lisboa, Ed. Caminho,1997

Che
de Manuel alegre

O FOCO

Pode perguntar-se: ainda é possível a poesia? ou: ainda é possível o Che? As duas interrogações são uma só. E atravessam todo o poemário. Que permite igualmente uma leitura estratificada do mito como forma superior da metáfora. Mas ao mito parece pertencer o verbo pairar: o mito paira. E o que Manuel Alegre faz, neste seu Che, é pôr o mito em relação, dinamizá-lo. E, com terna indagação, devolvê-lo ao ventre: a emoção, a luz, a revolta, o toco. Desinquietando quietas entranhas, ferindo a soberba das vitórias consumadas, humanizando, ainda que meta-humanizando, fazendo o mito, o Che, depender de cada um, ao contrário do assistido, mesmo na recorrência simbólica, onde cada um aparece dependente do mito, da ideia, da religião, da estrutura, do esquema. "A qualquer momento / qualquer um / pode dizer: eu sou o Che." (pág. 41). Deixemos boinas e estrelas, artefactos e ícones. Se qualquer um pode ser o Che, tal significa que qualquer um pode ser ele próprio. A individualidade contra o individualismo. Por igual processo, ninguém se pode reclamar do Che: ser Che é, antes do mais, ser. E ninguém o é em imitações explícitas ou subtis de um outro. As emulações são anti-Che, são anti-ser. Daí que não tenhamos qualquer dúvida sobre a existência do Che: "De todos os guerrilheiros / ele é o único insepulto / nem sequer se sabe se ressuscitou / ao terceiro dia / Não está em parte nenhuma / o que significa que pode estar em toda a parte" (pág. 40). Como Deus. Esta omnipresença não é sequer abalada pela recente descoberta das ossadas do Che e posterior funeral. De facto, naquela urna não ia o Che. Porque ninguém consegue enterrar o Che e o Che que há em nós, mesmo que o reprimamos até à mórula. O Che não é enterrável, Por isso, um dos medos mais medos que temos é, de repente, sermos Che a todo o momento, em qualquer lado: "O foco guerrilheiro existe sempre. Em cada um de nós/ existe um foco. Uma guerrilha possivel / uma insubmissão, / Nem é preciso procurar além a serra / o lugar propício / inacessível / A serra está em nós. Começa / em certas noites no nosso próprio quarto / irrompe subitamente sobre a mesa de trabalho / pode aparecer à esquina / em plena rua." (pág.12).

E se o tema circular da obra de Manuel Alegre joga muito com um outro mito: o sebastianismo, como recuperação da identidade, neste Che, o poeta aponta as vastas possibilidades que cada um tem de se tornar redivivo, ou de realmente nascer, existir em primeira mão.

Assim, via Che, quem neste livro Che se diz é Manuel Alegre, no ritmo da respiração partilhando a inquietação, o grito, no horror à massificação, no estímulo à nomeação de cada um por si próprio, Nomeação a usufruir, noutra linguagem, do vocábulo alma. Alma que, aqui, se nomeia Che.

Alberto Augusto Miranda, 1998

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