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Contos do Nascer da Terra
Mia Couto
Ed. Caminho, Lisboa, 1997

Brincriações do maravilhoso

Mia Couto, escritor moçambicano, é talvez o autor de língua portuguesa que maior novidade e frescura imprimiu à linguagem na última década. Algumas evidências desta asserção encontram-se, desde logo, nos títulos das suas obras, como a exemplo: Estórias Abensonhadas.

Biólogo, Mia Couto é alguém que, até pela natureza da profissão, lida familiarmente com a pesquisa e a investigação, Na sua literatura tal faceta é quase um leitmotiv. Nas suas incursões pelo mato e pelos povoados, Mia vai ouvindo e captando histórias que, depois, reescreve em tons de maravilhoso, uma técnica narrativa bem segura, e um ludismo linguístico que eleva certas cores de descrição local para uma reordenação mito-lendária de corpo universal.

Nestes Contos do Nascer da Terra, Mia Couto faz prova, uma vez mais, da sua capacidade imagética na recriação da semântica das palavras, através de um jogo neológico que irmana significados e os dilata para criar uma atmosfera densa de sonho e prenhe de possibilidades de leitura. Vejam-se, entre centenas possíveis, este exemplos: «Chilreinações» (pág. 39); «hematombos» (pág. 56); «sobressaltear» (pág. 81); «cancromido» (pág. 93); «þorventurar» (pág. 109); «atarantonta» (pág. 163); «circunsperto» (pág. 168); «Fintabolista» (pág. 183); «suspendurar» (pág. 196); «embevencida» (pág. 216); «varandeante» (pág. 223) ou «mirabolhante» (pág. 242).

É toda a exemplaridade deste trabalho que se torna necessário realçar. Entramos em terrenos antropológicos mas não por catálogo ou taxinomias. Outra é a virtude de Mia Couto. Devolve-nos, por escrito transformadas, estórias que, de outra maneira, se esfumariam rapidamente no tempo e que talvez aparecessem, de forma muito pouco atractiva, em compêndios de «ciência mole» com a dureza e a insensibilidade que estes normalmente reservam à magia e ao sonho.

Brincriando estas estórias ouvidas, Mia Couto preserva afinal a alma de um povo que, mais do que moçambicano, se alcandora a povo planetário.

É que a tradição implica dois momentos fundamentais: a)- Sedimetação; b)- Renovação. Mia mais do que sedimenta e renova. Ultrapassa o contexto estanque do lugar e das personagens, ousa, e bem, intrometer-se enquanto narrador nas estórias que regista e interioriza para que as mesmas possam continuar e serem recriadas pelo leitor nas mais variadas latitudes: geográfica, cultural, humana. E, compaginando este rio de que apenas saberemos a água que até nós chegou, Mia demonstra que é a literatura quem, afinal e diacronicamente, traça o contingente fio da História.

Alberto Augusto Miranda, 1998

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