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Recensões

De Profundis, Valsa Lenta
José Cardoso Pires
Ed. Caminho, 1997

A criação em estado de crise

Morte cerebral, foi com esta expressão
que a Agência Lusa passou a noticia à
Imprensa (...) Morte branca, aponto eu (...)


José Cardoso Pires, em De Profundis

Quando alguém fala da morte, é de uma metáfora que fala. Mas metáfora de quê? Direi, em oxímora construção, metáfora de tudo e de nada, designação do desconhecido e nomeação de um estado de não-existência sem dele se ter experimentação. Não é, pois, da morte que Cardoso Pires fala, mas antes da experiência da caos. Morte branca, chama-lhe o autor, inscrevendo exactamente antes do início do relato, um postulado de Simónides de Kéos identificador do pathos: «Quando perdeste o sonho e a certeza, tornaste-te desordem e fizeste-te nuvem». É esta desordem – em corpo de nuvem («ouvir e sentir só de passagem, sem registar», pág 24; ou «transitava pelas pessoas», pág. 40) – é esta desordem, repito, é este caos que, ao tomar conta de vários mecanismos e áreas cerebrais, contamina de perplexidade e de trágico o habitante do corpo da nuvem. Este habitante detém um paradoxo: anda, estando parado, e, por estar parado, assiste à sua própria «deslocação». É o nascimento de uma terrena alteridade que, muito directamente, leva o autor a praticar a estratégia de a si-mesmo se referir como Outro sendo. É o tempo da mudança e das variedades. No entanto, no particular caso de Cardoso Pires, o Kaos não se apresenta apenas como destituidor de identidade, ou como buraco branco de um existente que não existe: o Kaos revela-se também um desafio, brutal, é verdade, mas que em si contém a própria saída. Como? É de prática usada dizer-se, sem necessariamente recorrer a Heraclito, que o poeta confere Harmonia ao Kaos e o narrador organiza ou ordena esse mesmo Kaos. O mais generalizado símbolo de tal Kaos, à escrita aplicado, é a folha em branco, o papel em branco. Ali se encontra uma ausência em desesperada procura de uma presença: a escrita. Para além desta simbologia, há a reter o facto de Cardoso Pires, no seu relato, ter operado a transferência do símbolo para si próprio: um corpo em branco, uma memória em branco, uma imaginação em branco, «branco, branco, em luz gelada» (pág. 30), «uma sombra branca corrida no branco» (pág. 41). Neste «tempo oco», de múltiplas ameaças, a bio-química das palavras sofre desregras que, porém, são portadoras de sinais de vitalidade transversal. 0 exemplo fónico seria o vocábulo «simoso». Não creio que a Lexicologia algum dia contemple tal vocábulo com o valor de um neologismo. Este fenómeno, lido à luz da linguística tradicional, de Saussure a Benvéniste, tem implicações pícaras no que à norma se refere. Uma delas seria que «simoso» constituiria um significante (camada acústica) desprovido de significado; uma outra, já com recurso a Benveniste, dir-nos-ia do processo de inversão: não se trata de «gilete», «óculos» ou «arrastadeira« ganharem estatuto de referente plural, mas sim, agora de acordo com a psicolinguística, de «gilete», «óculos» ou «arrastadeira» terem como referente o próprio vocábulo «simoso». Teríamos, assim, um processo inventivo e transgressor lado a lado com o processo inventor. do Inventivo faria parte a metamorfose dos signos, enquanto do Inventor se registaria o corpo da Ideia. Ou seja, dentro da Teoria da Criação, o que um autor compreende, a dada altura da sua maturidade, é que necessita de reciclar a sua presença escrita perante uma nova página em branco. Tem de utilizar outras palavras, tem de dizer outras coisas. Mais do que uma novidade, o escritor tem de produzir o Novo. A consciência desta consciência (e, neste caso, a lucidez com que Cardoso Pires nas suas obras se faz intervir) conduz a uma crise de Criação. Cardoso Pires viveu-a em todas as suas dimensão e transfiguração. E a grande pergunta, onde a resposta é, poderia formular-se com esta simplicidade: se Cardoso Pires não fosse Criador, ter-lhe-ia sido possível sair da «penumbra isquémica»? Parafraseando Mark Twain: «a notícia da morte do Escritor Cardoso Pires foi um exagero.»

Alberto Augusto Miranda, 1998

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