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O Beijo
Kathryn Harrison
Lisboa, Ed. Bizâncio, 1997

Segredos do divã de Freud

Íntimo e intransmissível - assim é O Beijo¸ o novo romance da escritora norte-americana Kathryn Harrison. São quase centena e meia de páginas de um estilo enxuto, que prescinde de detalhes susceptíveis de a naufragarem num oceano de irrelevância. Apesar da singeleza, a obra é evocativa, a um tempo onírica, a outro próxima do terror de consciência, tão bem exposto na produção de Edar Allan Poe ou Arthur Machen.

O «leit motiv» é um beijo dado pelo pai à filha, o incesto que, de pressentido, depressa se transpõe para o mundo dos factos: «O meu pai mete a língua bem dentro da minha boca: uma língua húmida, insistente, exploratória, que depois retira (...) Fico assustada com aquele beijo. Sei que é errado, e é o facto de ser um erro que me leva a saber também que devo guardar segredo dele» (pág. 54).

Depois deste incidente, a protagonista entra num carroussel precipitado de tensões e dilemas associados ao triângulo passional: a rivalidade com a mãe pela posse do amor paterno, o complexo de Electra, a claustrofobia da culpa. Tudo parece redimir-se através de chamadas telefónicas entre os amantes, que duram horas, ou a combinações em lugares recatados, tal como é explicado no «incipit»: «Encontramo-nos em aeroportos. Encontramo-nos em cidades onde nunca tínhamos estado. Encontramo-nos onde não possamos ser reconhecidos por ninguém. (...) Vamos, cada vez mais, para sítios irreais - Petrified Forest, Monument Valley, Grand Canyon, - locais tão agressivos, tão belos e tão mortais como os que se vêem nas fotografias de satélite de planetas distantes. Abafados, tórridos, desumanos» (pág. 11).

Paulatinamente, ensanduichada entre a culpa e o prazer, incapaz de, como Sade, equacionar ambas no mesmo arco, a protagonista definha, torna-se anoréxica, o suicídio é chamado solução. E porém, sobrevive, e o enredo desenrola-se, hipnótico, sufocante, até um clímax impossível e um final desconcertante - e por isso belo -, que só cabe ao leitor descobrir.

Trata-se de matéria real, extraída da vivência da autora, o que torna O Beijo ainda mais insuportável. A pena de Kathryn Harrison é inequivocamene famélica, ao revelar e relevar as desordens de uma mulher com o mundo dos outros e com o mundo de si, à relação com a mãe-feita-matriarca, as errâncias e a aprendizagem da sexualidade: «Sou o meu próprio amante. À noite, deito-me nua e tacteio o meu corpo às escuras até saber de cor o mapa da minha fome. O êxtase estonteante da minha fome. O poder de não precisar de nada. Pela minha força de vontade, transformo-me num duende irrealizável que vive do ar, da água e da pureza» (pág. 36).

Lembra Sylvia Plath no abandono indeciso, tem o intimismo e o enigma de Emily Dickinson, talvez seja Kate Chopin, na sensualidade. Como quiserem. O Beijo é a prova incontornável da existência da ‘écriture féminine’. Algures entre a ansiedade, o desespero e a capitulação, esta lombada deixa o leitor em nenhures e em omnipresença. É também o número iniciático da Colecção Inferno, da Bizâncio, que promete perturbar. Ideal para meninas góticas, «voyeurs», gente obscura, psicanalistas, e qualquer um de nós. Assim seja.

João de Mancelos, 1998

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