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Recensões

Ofício Imperfeito
Paulo Ramalho
A Mar Arte, 1997

A sagrada imperfeição

A relação entre mitologia e literatura é umbilical à própria essência humana. A mitologia lida com o inconsciente colectivo, os medos e as expectativas comuns a toda a pessoa, seja ela nativa do nosso hemisfério ou das antípodas. Por seu turno, a literatura enraíza-se no inconsciente individual, arquitectado em sonhos, desejos, fantasias e recalcamentos.

Em Ofício Imperfeito, livro de poemas editado pela A Mar Arte, Paulo Ramalho acasala fertilmente ambas as formas. O inconsciente colectivo emerge nas lendas e nas referências mitológicas que invoca com invulgar beleza. O individual expressa-se numa sensibilidade rara, quase idiossincrática. Assim, como num caleidoscópio, retalhos daquilo que de mais antigo a mente humana criou deslocam-se do seu contexto original e contemporizam no cenário dos sentimentos do sujeito poético. As próprias palavras do autor testemunham esta ideia: «São cantos que se renovam, são mágoas que ficam» (pág. 7).

Também Camões e Pessoa, Hart Crane e Sylvia Plath, Ribeiro Ferreira e Sophia Andresen, entre tantos outros, souberam reciclar os mitos, adaptando-os ao seu tempo, recriando-os para conotações a um tempo novas e velhas. Tal faz parte da natureza intrínseca ao mito, um «continuum» ideológico que nunca se esvai. Para tanto, é suficiente ver a forma como as lendas sobrevivem e se transformam. Hércules é hoje Sylvester Stallone, Vénus reencarna numa «top model», as ninfas volveram-se nas «starlets» e, para mal de nós, os filósofos redundaram em políticos.

Nesta linha, em Ofício Imperfeito, cada poema é circular, porque ora aproxima, ora funde tempos, e consciências, num trabalho onde rumoreja sempre o onírico: «Desço (...) aos meus sonhos / para me lembrar de já ter sido o quê / e volto de novo a nada ser, / por caminhos sempre tão sem fim» (pág. 14).

Imaginativo, portanto, hipnótico, por vezes, o poemário de Paulo Ramalho cumpre-se em pleno, graças a um bom domínio do verbo e a um perfeito conhecimento da metáfora e da imagística - portas para a essência da poética finissecular. Apenas duas imagens bastam para no-lo confirmar: «Morrer é uma corda tensa de silêncios / um hálito frio nos lábios dos amantes» (pág. 13) ou ainda «(...) descobrirei os teus seios pelo deslizar das mãos / para depois nos envolvermos de corpos, / quais cisnes prateados em curvas de desejo» (pág. 36).

Ainda ao nível do estilo, Ramalho pratica a abstinência do obscuro, apesar de não sonegar meditações mais profundas, nem se render a um imediatismo barato que tantas vezes povoa algumas das produções actuais. Nas suas palavras: «Sinto prazer em imaginar labirintos (sobretudo de versos) / ou perder-me nas encruzilhadas dos sonhos. / Sei que tudo isto (uma nuvem azul, um sorriso) / fica aquém do poema, fica no limiar da palavra, / mas mesmo assim persisto no ofício de contemplar a esfinge» (pág. 51).

Na estrutura, o tom mítico ritma-se nas repetições, nos paralelismos estruturais ou anafóricos, criando no poema circularidades perfeita e algures até melodiosas. Textos como «Por fim», «Penumbra», «É o tempo que chega», ou «Um filho» são exemplares.

Não tenho reservas: o destino da letras lusas passa por Ramalho e a segunda edição deste Ofício Imperfeito constitui uma oportunidade renovada para ler um jovem autor que se arrisca a ser um «miglior fabro» no panorama do século que muda.

João de Mancelos, Abril de 1998

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