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Recensões

A Ponte
Hart Crane
Tradução de Maria de Lourdes Guimarães.
Introdução de Laureano Silveira.
Lisboa, Relógio de Água, 1995

The Bridge de Hart Crane na tradução de Maria de Lurdes Guimarães

Nos últimos anos, tem havido um «boom» na publicação de traduções de poesia, com incidência na área do modernismo anglo-americano. Várias circunstâncias favorecem e justificam este desenvolvimento. Por um lado, o ensino superior tem vindo a fornecer a mão de obra necessária, ao diplomar cada vez mais tradutores. Por outro, o «copyright» de muitos autores modernistas expirou já, ou está em vias disso, tornando-se livre a sua publicação. Finalmente, há um público leitor feito de estudantes, académicos e licenciados na área anglo-americana, para além de amantes da poesia em geral.

Dentre as várias editoras que têm tomado a seu cargo esta tarefa de tradução, duas se destacam quer pelo volume de lançamentos, quer pela qualidade: a Assírio & Alvim e a Relógio d'Água. A primeira, nas suas colecções Documenta Poética e Gato Maltês trouxe-nos Whitman, Auden, Blake, Pound, Eliot, Cummings, entre outros. A segunda, oferece um leque de autores mais comedido, mas não menos interessante: Lawrence, Pound, e, mais recentemente, The Bridge / A Ponte de Hart Crane, pela mão de Maria de Lourdes Guimarães.

Randolph Quirk afirmou que traduzir poesia é sempre uma aventura, um risco e um trabalho de complexidade. Por seu turno, Mounin negou mesmo a possibilidade de tal tarefa poder ser cumprida com sucesso. Já por isso, o «atrevimento» de Guimarães merece um aplauso. Na especificidade de Crane, o bardo que cantou a América modernista e tratou esteticamente os mitos da nação, muitos obstáculos e complexidades podem ser encontrados, e também nessa área Guimarães se revelou afoita:

- no que respeita à língua, a curta extensão das palavras e a idiomaticidade de certas expressões podem originar algumas dificuldades. O inglês é um idioma em que os vocábulos são vulgarmente monossilábicos ou dissilábicos. Assim, a sua tradução na nossa língua, em boa parte trissilábica, ocasiona versos mais extensos e, consequentemente, obriga o tradutor a procurar novos ritmos para as frases - aquilo que João Almeida Flor, no prefácio da sua tradução A Canção de Amor de J. Alfred Prufrock, designa por «uma ordem de construção musical»; - em termos de sentido: as ambivalências sexuais; a plurissignificação de termos, com uma face muitas vezes ligada à economia; as referências culturais à mitologia índia ou outras e a vocábulos do mundo financeiro e comercial (ex.: marcas de produtos) obrigam a um trabalho de pesquisa para compreender o texto como um organismo no espaço e no tempo;

- intertextualmente: a quantidade de alusões e citações que Crane faz de outros escritores do cânone norte-americano, com particular destaque para Whitman, Poe e Dickinson, suscitariam processo semelhante na língua de chegada: o que é, naturalmente impossível;

- quanto à forma, é notória a complexidade em traduzir Crane, sobretudo na sonoridade e nos inúmeros jogos de palavras, como Paula Giles bem evidenciou no seu estudo de The Bridge. A semelhança fónica, por exemplo, no verso inicial, entre «How many dawns» e «Harmony dawns» é virtualmente intraduzível.

É credível pensar que Maria de Lourdes Guimarães tenha experimentado todas estas dificuldades, e venceu-as com algum talento e experiência, pelo que, em termos gerais, a sua tradução emerge como claramente positiva: a leitura agrada, o texto não parece forçado ritmicamente, os poemas soam bem e não causam prurido a um leitor menos conhecedor de Crane.

Porém, um problema revelou-se menos bem resolvido por esta tradutora. A tarefa de traduzir implica uma boa e fundamentada interpretação - Próspero Saíz afirma mesmo que aqui reside a essência e a inevitabilidade desta tarefa. Assim, um tradutor deve recorrer à bibliografia disponível, informando-se sobre tudo quanto possa vir a ser útil no trabalho de descodificação: vida e obra do autor, recensões críticas ao texto, reflexões sobre a obra, etc. Ora, a tradução de Guimarães carece de algum trabalho de exegese preparatório - e talvez se situe aqui o seu calcanhar de Aquiles.

Um erro evidente, provavelmente resultante de alguma ausência de investigação, ocorre em «Indiana». Neste poema, o sujeito poético é uma mãe pioneira que relata um episódio marcante na sua migração, mas Guimarães apresenta-nos uma voz ora masculina, ora feminina a contar a história: «Fiz-te parar - eu, repentinamente o mais arrojado / (...) / Ainda aqui estou, velha, como se fosse quase de pedra». Outro erro de interpretação ocorre no poema «Southern Cross». Guimarães intitula-o de «A Cruz do Sul». Obviamente, não identifica o título com a constelação invocada por Crane - o Cruzeiro do Sul. Sem este dado, o poema pode tornar-se confuso para o leitor. Ainda a propósito de títulos, devo referir que a tradução de «National Winter Garden» por «Jardim Público de Inverno» pode originar problemas. Na realidade, o National Winter Garden não era um espaço verde mas um bar, como esclarece Giles. Por outro lado, a palavra «nacional» (em vez de «público») é importante aqui. Isto, porque o poema se constitui como uma crítica à nação, à América de Crane.

Um outro factor preocupante diz respeito à adequação do texto traduzido ao registo do texto original. Na realidade, ao longo do poema «Atlantis» perde-se algum do tom grandiloquente da linguagem que Hart Crane aí aplica.

Por vezes, na tradução de Guimarães, ocorre um desaproveitamento de oportunidades. Se o poemário está impregnado de mitos - e é aqui que reside a sua singularidade, o seu «quidittas» -, a tradução deve também recorrer a vocábulos pertencentes ao campo semântico do espiritual. Só assim a perda do sentido que ocorre necessariamente numa tradução poderá ser compensada. Apenas três exemplos muito simples. No poema «To Brooklyn Bridge», o termo «elevator» é traduzido por Guimarães como «elevador». Obviamente, perdem-se as conotações míticas. Seria preferível utilizar o termo «ascensor», recordando «ascese» ou «ascensão» e vincando assim a intersecção entre o plano horizontal (humano) e o vertical (divino). Outro caso: Guimarães faz corresponder «madrugadas» à palavra «dawns». De novo, um desaproveitamento conotativo. O vocábulo «auroras» era francamente mais correcto, por remeter para a deusa Aurora, reforçando a componente divina. Ainda nesta linha, a imagem «beading thy path» seria mais significativamente traduzida por «rosário de contas no teu caminho» (lembrando o terço) do que por «ornando o teu caminho». Em suma, teria sido importante trazer para a língua de chegada todas as ambivalências de significado possíveis, para assim manter a fecundidade literária - aquilo a que os tradutores franceses chamam significativamente «réepression» ou «déverbalisation».

Parece-me importante referir ainda um outro aspecto. Guimarães preocupa-se demasiado em respeitar a sintaxe de Crane. O autor recorre com frequência a inversões e anástrofes para conseguir a rima e a cadência - nomeadamente, no poema «Cape Hatteras». Não existindo rima na tradução, seria desnecessário sujeitar o texto às mesmas contorções. No entanto, Guimarães não teve em conta o princípio da naturalidade, e «Cabo Hatteras» emerge como esteticamente pouco agradável, porque submetido a demasiadas anástrofes e hipérbatos. Teria sido uma excelente oportunidade para optar por uma tradução mais livre, seguindo o conselho de Octávio Paz: desviar-se do texto original para o traçar com mais precisão.

No entanto, um balanço final da tradução de Maria de Lourdes Guimarães não poderá deixar de ser positivo. Apesar de algumas falhas, a tradutora fez um bom trabalho - nem demasiadamente literal, nem excessivamente livre -, obtendo um texto de chegada agradável do ponto de vista estético, e fazendo justiça a um autor que só nos últimos trinta anos recebeu a necessária e canónica atenção.

João de Mancelos, Abril de 1998

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