Letras & Letras

Recensões

Coma Profundo
Douglas Coupland
Lisboa, Teorema, 1998

Beijo para uma geração adormecida

Talvez que a literatura das duas últimas décadas se pudesse dividir em a.C. e d.C., isto é, antes de Coupland, depois de Coupland. De facto, este autor está para a geração nascida no final dos anos 50 ou em meados da década de 60 como Jack Kerouac para a «beat generation» ou Jerome Salinger para os pré-«hippies». Com uma diferença: é inegavelmente melhor do que qualquer um dos escritores citados. Será talvez exagerado apelidá-lo de «inventor de gerações», como alguém fez; contudo, em apenas cinco livros (Geração X, A Vida depois de Deus, Planet Shampoo, Polaroids de Figuras Extintas e este Coma Profundo), o autor reflectiu sem mácula nem distorção os vintões e trintões ocidentais.

Pondo de parte a caricatura, Coupland rende-nos aos retratos tocantes daqueles que habitam entre os pólos contraditórios de uma espiritualidade cândida, quase neo-panteísta, e do consumismo gratuito. Geração perdida (e talvez nenhuma tenha algum dia sido ganha), aquela que canta e à qual pertence, procura encontrar-se num mundo sem Deus nem roque, em que os valores se cambiaram, os afectos ganham novas regras e a sexualidade já não é binária nem simples. Na época do politicamente correcto, narrador e personagens ousam questionar todas as esfinges: o dinheiro que não salva; o amor ao egoísmo; as drogas como bezerro de ouro daquilo que nada pode substituir; a moda a valer uma falsa identidade, porque sempre temporária…

Sem amargura, mas numa meiga conspiração com os perdidos deste planeta, num estilo bem humorado, o escritor atinge uma criatividade rara, feita de sinceridade e de um olho vivo para os detalhes de um mundo em fuga. É portanto um poeta do real, a aclimatizar os elementos do quotidiano, mesmo os mais banais, numa concha poética. Descrições como a seguinte evidenciam o seu talento:

«Foi numa noite de Dezembro tão fria e límpida que o ar parecia o da lua: queimava os pulmões; mentolado e puro; aromas de ozono, zinco, cera de esqui e do champô de morango da Karen. É aqui que eu recuo até à primeira fenda na concha do tempo, até quando eu fui mais feliz. Eu e os outros, ocos adolescentes pagãos a divertir-se no cimo de um monte negro sobranceiro a uma resplandecente cidade lá em baixo, uma cidade tão nova que só sonhava aquilo que nem um embrião sabe (…).» (p. 11).

Depois, vem a história de Karen, a adolescente, que no final dos anos 70 entra em coma, e assim fica durante quase duas décadas, como a bela adormecida, alheia a tudo quanto em seu redor sucede: o nascimento da filha Megan, a ascensão, glória e queda de uma amiga modelo, a depressão de Wendy, a luta contra as drogas de Richard e Pam, a raiva de Hamilton - enfim, o vazio de uma geração que descobre um mundo feito por outras medidas que não a sua. Quando desperta, Karen actua como alguém que pode comparar duas épocas diversas e constatar o frágil equilíbrio dos valores e a perda de rumo dos habitantes da era de 90. Mas poderá fazer ver isto aos seus amigos e evitar o apocalipse da sociedade ocidental?

É certo que este enredo é inverosímil q.b., feito de coincidências e previdentes deuses «ex machina», a lembrar, como o próprio narrador admite, os velhos filmes da série B. Será suficiente a suspensão da descrença para que o leitor possa fruir os prazeres da cumplicidade com tão bizarra história? Talvez não. E contudo o livro é o encantamento, no sentido mais feiticeiro do termo. Nos capítulos finais, Jared (um amigo de Karen já falecido) aparece em espírito e cura todos os amigos das maleitas físicas e espirituais - ao evidenciar-lhes a esterilidade das suas existências. Acima de tudo, retira-os da hibernação (simbolizada pelo coma, sono e morte) e mostra-lhes que a escolha é possível, mesmo num milénio que termina com o globo deteriorado pela poluição, a ausência de ideais e a abundância de carências. Faz-lhes aceitar o pacto da mudança e a vontade de subir ao palco do mundo para intervir.

Coupland afirma, talvez, a necessidade de dar um passo atrás (até à intervenção dos anos 70) para corrigir duas décadas quase estagnadas, ou seja, dar dois passos em frente. Se nas lombadas anteriores o escritor carpira uma geração à deriva, agora limpa a neblina, aponta os recifes e explica a necessidade de dar o golpe de asa e aceitar as dores de crescimento da mudança. Por isso mesmo, esta é a sua obra mais profunda, bem escrita e conseguida. Ah! E já me esquecia: o final é também feliz.

João de Mancelos, 3 de Janeiro de 1999

Voltar à página inicial

Colaboradores | Coordenação | Contactos | © 1997-2015 Letras & Letras