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O Sono das Árvores
José Leon Machado
Braga, 1998 (poesia)

O Sono das Árvores
de José Leon Machado

Regressar a Horácio e Vergílio, aos seus lugares de verdes, pelos caminhos da folhagem, quando «O sono das árvores / Quando não há vento /(e) Interrompe-o / A alegria dos pássaros», apartando-se de uma geografia humana delapidada, neste fim de século, já com tão pouco para delapidar, é uma atitude poética de intervenção ecológica, por onde O Sono das Árvores conquista o seu espaço literário, assumido, à margem de preocupações intelectualóides e estéticas e de costas para qualquer confeccionismo, ou languidez, ou plangência, ou qualquer outra postura do mais pobre do romantismo; para isso se recusando à primeira pessoa, privilegiando a terceira, em que o poeta, assim, se protege desses perigos, deixando que as coisas por si falem, das suas cores, dos seus aromas, das suas vozes, dos seus silêncios, numa atmosfera anímica, mais, talvez, que idílica.

Se os ecos mitológicos, que aqui surgem, e ó emprego das maiúsculas no início de cada verso nos poderiam levar a um vínculo clássico de feição estritamente literária, tal não acontece porque o poeta derruba esse plano com a liberdade métrica e estrófica, com sabor prosaico, e com um minimalismo verbal, utilizado em alguma modernidade. Na verdade, poder-se-á ver uma ponte entre o Ontem e o Hoje, ou uma simbiose que se projecta semanticamente no contraste entre a apologia da natureza e a civilização actual, esboçada, sem lhe retirar a sua carga negra, permitindo a ênfase da Eco.

O livro inicia-se com Actéon e termina com Ícaro. O primeiro foi vítima da sua volúpia, por contemplar o belo corpo de Artemis, que se banhava numa nascente. Ícaro foi vítima da sua ambição, de subir alto, de se aproximar do Sol, com as suas asas de cera. Têm de comum o querer-ir-além-de. Mas nem sempre o querer-ir-além-de é contra naturam, ou pecado. De qual delas tira proveito o autor? No primeiro caso, castiga-se o erotismo, que, sadio, deve ser desejado, e de que o autor também partilha noutros poemas. Pretende o poeta reprovar esse castigo? No segundo, castiga-se a ambição, mas, aqui também, quando sadia, deve ser louvada. Pretende o poeta condenar a ambição patológica dos nossos dias? A minha interpretação ficará pela lado que mais enriquece esta obra. Artemis, com um cenário idílico, na defesa do pudor, sublimando a feminilidade, assumindo-se dona do seu corpo, que não quer sujeito a uma vontade estranha. Ícaro, num contexto simbólico da ciência, a invenção do voo, com a sua projecção profética sobre a actualidade, em que as asas de cera do progresso começam a derreter-se, com a aproximação das chamas devoradoras da natureza e dos conteúdos humanos.

O Sono das Árvores não é de conclusões, mas de exposições, de leituras abertas para o leitor, desde que se respeite a essência da sua mensagem.

A palavra surge, quase sempre, suspensa, sem suporte sintagmático, que se pretende, parece, que regresse à sua origem, ao referente, às suas cores vivas originais, libertando-a do sépia do tempo, como quem diz, da sua corrupção. Um regresso à sua matriz semântica , ao tempo em que as coisas nos falavam directamente aos sentidos, que se abriam directamente nas emoções, longe, muito, da razão demolidora das sensibilidades, abrindo desertos pela sua crescente exclusividade, pelos seus desvios na direcção de capitalismos selvagens? Por este postigo, a obra filia-se nas preocupações da literatura moderna, já teorizadas com os primeiros pintores expressionistas e ampliadas, na prática, até este fim de século até à exaustão.

A ligação do poeta à natureza parece ir além da atmosfera idílica ocidental. Mais do que espaço, do que cenário, a natureza parece apresentar-se para o poeta como um todo em que ele se insere, em que ele é absorvido e absorve, numa linha do Uno das filosofias orientais. Reforça esta ideia a citação de Raul Brandão que precede os poemas: «A paisagem mais bela é aquela em que fomos criados e que faz parte da nossa substância».

Joaquim Matos, Julho de 1998

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