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Recensões

Sucessos e Naufrágios das Naus Portuguesas
Giulia Lanciani
Lisboa, Caminho, 1997, 562 pp.
(Col. Estudos de Literatura Portuguesa)

Sucessos e Naufrágios das Naus Portuguesas
de Giulia Lanciani

A celebração dos 500 Anos dos Descobrimentos Portugueses, bem como a opção pela temática dos Oceanos para o Ano Internacional de 1998 — ambas conjugadas na Exposição Mundial de Lisboa, Expo'98 — incentivaram, de algum modo, a publicação de estudos relacionados historica e literariamente com estes assuntos. O assinalável mérito da obra de Giulia Lanciani neste campo de investigação é também amplamente comprovado por inúmeros e reputados trabalhos não só neste capítulo particular, mas também nas áreas da Literatura Medieval ou da poesia e narrativa contemporâneas, entre outros domínios, obras que, de tão conhecidas, prescindem naturalmente de apresentação ou encómios supérfluos.

Esta obra centra-se na sedutora temática dos relatos de naufrágios dos sécs. XVI e XVII, coligidos por Bernardo Gomes de Brito nos 2 volumes da História Trágico-Marítima (Lisboa, 1735-36), um dos mais belos monumentos da anónima epopeia negra da Literatura Portuguesa. Estrutura-se em duas partes: na primeira, esta investigadora italiana republica, reelaborados e revistos, alguns importantes estudos que, nos últimos quinze anos, tinha editado sobre esta temática; na segunda, apresenta uma oportuna e complementar crestomatia, com a edição cuidada de alguns dos mais célebres relatos de naufrágios, nem sempre bem transcritos noutras edições correntes. Vejamos com mais algum pormenor cada uma das partes da obra.

De facto, na primeira parte, a autora colige dois estudos, devidamente sequenciados: 1º) "O Caminho das Índias" (pp. 11-47): reflexão de âmbito histórico-cultural, constitui uma adequada contextualização à problemática da literatura de naufrágios; 2º) "Os Relatos de Naufrágios" (pp. 49-180): começa por reflectir sobre as razões explicativas de um género peculiar da literatura de viagens (relato de naufrágio) e suas funções moralizantes, didascálicas ou educativas, mas também ideológicas ou civilizadoras; discorre, depois, sobre a "matriz literária" das narrativas de naufrágio, assinalando os procedimentos que configura o modelo narrativo dos relatos de naufrágio; por fim, explicita o modelo narrativo dos relatos de naufrágio, enumerando, critica e exemplificadamente, cada uma das partes ou unidades fundamentais, com suas variantes: antecedentes – partida – tempestade – naufrágio e arribada – peregrinação / ou (sequência alternativa) ataque corsário – captura – impiedade dos inimigos / retorno). Termina esta 1ª parte com um informativo apêndice (pp. 157-172), identificativo das várias edições que constituem o problemático corpus das duas dezenas de relatos de naufrágios compostos e publicados entre a segunda metade do séc. XVI e os finais da centúria seguinte.

A segunda parte da obra, constituída por uma útil e alargada antologia (pp. 181-562), edita oito relatos de naufrágio, em integral e cuidada transcrição textual. Os textos são retirados da História Trágico-Marítima, a começar pela modelar "Relação da mui notável perda do Galeão Grande S. João...", mais conhecida como Naufrágio de Sepúlveda; até à breve "Relação do sucesso que teve o patacho chamado N. S.ª da Candelária...". Desta crestomatia coligida por Bernardo Gomes de Brito, exceptua-se o relato do jesuíta Gaspar Afonso, "Viagem da Nau São Francisco no ano de 1596", como é assinaldo pela A. em nota, quando informa que "se utilizou a primeira redacção, manuscrita, conservada em Roma, nos Arquivos da Sociedade de Jesus" (p. 181). Por conseguinte, tem o mérito de ser a primeira e única edição deste importante relato de naufrágio. Procurando superar os compreensíveis erros das sucessivas edições dos relatos de naufrágios, originalmente publicados em populares folhetos de cordel pelos sécs. XVI e XVII, esta publicação de Giulia Lanciani pressupõe um aturado labor em bibliotecas e arquivos nacionais e estrangeiros, como se depreende, aliás, do aparato crítico do trabalho da professora italiana.

Numa época de redescoberta do valor literário e cultural da Literatura de Viagens e de Naufrágios, e como se pode inferir do articulado anterior, esta importante obra de Giulia Lanciani apresenta-se a um público vasto, com destaque para professores e alunos do ensino secundário e superior. Constitui-se, assim, como uma referência obrigatória no âmbito peculiar da cativante Literatura de Naufrágios, que comporta hoje uma vasta bibliografia crítica e cujo profundo e alegórico simbolismo, em forma de retórica da decadência pátria, atravessa praticamente toda a Literatura Portuguesa, desde a Renascença até à contemporaneidade.

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* Giulia Lanciani é Professora Catedrática de Língua e Literatura Portuguesa na Universidade de Roma. Entre os trabalhos anteriores, que demonstram o reiterado interesse da investigadora italiana pela temática da Literatura de Naufrágios, podemos enumerar os seguintes, por ordem cronológica: 1) "La matrice letteraria dei resoconti portoghesi di naufragio dei secoli XVI-XVII", in Studi Francesi e Portoghesi, 79 (1979), L’Aquila, Japadre, pp. 51-65; 2) Os Relatos de Naufrágios na Literatura Portuguesa dos Sécs. XVI e XVII, Lisboa, ICALP / Biblioteca Breve, 1979 — uma introdução de referência à literatura trágico-marítima; 3) Santa Maria da Barca (Três Testemunhos para um Naufrágio), introd. e leitura de..., Lisboa, IN-CM, 1983, com a leitura dos três textos-edições deste relato — de Vila Viçosa, de Diogo do Couto e de Bernardo Gomes de Brito; 4) Naufragi e Perigrinazioni americane di Gaspar Afonso, Milano, Cisalpino-Goliardica, 1984, com edição crítica da versão mais antiga da "Relação da viagem e sucesso que teve a nau S. Francisco"; 5) "Une histoire tragico-maritime", Autrement, Série Mémoires, nº 1, 1990, pp. 89-117; 6) Tempeste e Naugrafi sulla Via della Indie, Roma, Bilzoni Editore, 1991 (Biblioteca di Cultura, 440).

J. Cândido Martins

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