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As Estéticas Literárias em Portugal (Séculos XIV a XVIII)
Massaud Moisés
Lisboa, Caminho, 1998, 309 pp.
(Col. Estudos de Literatura Portuguesa).

As Estéticas Literárias em Portugal (Séculos XIV a XVIII)
de Massaud Moisés

Trata-se de um dos últimos trabalhos deste conhecido professor e investigador brasileiro, profissionalmente consagrado à Literatura Portuguesa, tal como se infere do número de relevantes publicações que enriquecem o seu currículo académico nesta área. Como anunciado, prevê-se para breve a edição de um segundo volume, que abarque o período que vai da Literatura Neoclássica e Romântica até à actualidade. Nesta bipartição da História das ideias estéticas, esperávamos talvez que o primeiro volume integrasse ainda a ilustrada estética neoclássica ou arcádica, mas, de acordo com o seu justificado critério, o A. preferiu estender a sua reflexão apenas até à Literatura Barroca, abarcando já um considerável período cronológico.

Entre outros méritos, a obra de M. Moisés dá um valioso contributo para a desmitificação de um dos maiores lugares-comuns da crítica literária, segundo o qual a Literatura Portuguesa não dispôs, através dos tempos, de teorização estético-literária própria. À luz deste generalizado estereótipo cultural, esta constatação seria explicável, em boa medida, pela carência de espírito crítico e filosófico, já diagnosticada por Fidelino de Figueiredo no ensaio sobre as Características da Literatura Portuguesa (1914). No entanto, seria compensada por uma longa e enraizada predisposição lírica, que faria de nós um país de poetas — outro enorme lugar-comum, que deve ser sujeito a criteriosa demonstração —; e por uma tendência para a criação ficcional. Em suma, segundo esta precipitada visão, teríamos uma rica literatura poética e narrativa, mas seríamos falhos na criação teatral e sobretudo na reflexão estética. É sobretudo esta última ideia que devemos questionar: a falta de doutrinação estética dos vários ismos literários.

Segundo algumas apressadas explicações histórico-literárias, essa pretensa falta de maturidade lusitana para a reflexão estética teria sido suprida pela importação ou aclimatação, mais ou menos acrítica, dos influxos teoréticos que nos chegavam de além-fronteiras. De onde? De França, logo no lirismo trovadoresco; de Itália, no séc. XVI, com os viajados e cultos escritores, como Sá de Miranda; de Espanha e novamente de Itália, com as influências do gongorismo e do marinismo no nosso barroco literário; e de França, Inglaterra ou Alemanha, com a revolução estética do Romantismo; e por aí adiante, até aos movimentos vanguardistas ou às tendências mais contemporâneas da Literatura Portuguesa.

Ora, convenhamos, o facto de não podermos questionar a dose de verdade destas e doutras influências, não nos legitima concluir, precipitadamente, que tivemos uma literatura de importação, desprovida de originalidade ou carente de teorização própria. Influenciada por condicionalismos geográficos e pelos rumos da história política, ora isolada da cultura europeia, ora abertamente permeável e cosmopolita, a Literatura Portuguesa não deixou nunca de ser a expressão do génio nacional (Volksgeist), com suas recorrentes singularidades espirituais, opções estéticas e constantes temáticas, como o demonstrou Jacinto do Prado Coelho em Originalidade da Literatura Portuguesa (2ª ed., 1983).

O que devemos reconhecer é que, de facto, não possuímos uma Literatura muito rica em reflexão teórica, materializada em grandes obras, em tratados de profunda, sistematizadora e influente filosofia estético-literária. Porém, em contrapartida, ninguém contexta a enorme importância de que se reveste uma série relativamente numerosa de textos para a caracterização do ideário estético dos vários movimentos ou correntes literárias — desde as diversas modalidades de relevantes discursos paratextuais, como prefácios, posfácios, notas, introduções, etc.; mas também as lições académicas e os artigos dispersos por publicações periódicas; e ainda os poemas didácticos, as pequenas ou até incompletas poéticas e tratados retóricos, publicados até pelo menos ao séc. XVIII; e, por fim, os programas e manifestos da literatura moderna

No panorama editorial português, intensifica-se, cada vez mais, a tendência para salientar toda essa tradição estética que enformou os vários movimentos literários, colocando-a ao facilitado dispor dos estudantes de Literatura Portuguesa. Isso mesmo podemos verificar nos vários volumes já publicados da História Crítica da Literatura Portuguesa, que, sob a direcção de Carlos Reis, tem destacado, por exemplo, os textos doutrinários (e críticos) dos períodos do Romantismo, Realismo/Naturalismo e Do Fim de Século ao Modernismo. Aliás, já antes, em 1980, três professoras da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa — Maria Lúcia Lepecki, Lucília Gonçalves Pires e Margarida Vieira Mendes — tinham elaborado uma interessantíssima mas incompleta reflexão crítica, intitulada Para uma História das Ideias Literárias em Portugal (1980). Contudo, no ensaísmo de língua portuguesa, faltava uma reflexão sistemática como esta que Massaud Moisés teve a coragem de empreender, procurando aliar espírito de rigor e poder de síntese, a fim de fornecer a estudantes, professores e demais interessados, um guia seguro sobre a história das ideias estético-literárias na Literatura Portuguesa.

A obra de Massaud Moisés é estruturada em três grandes capítulos, sendo cada um deles encerrado com indicações bibliográficas específicas. Compreender-se-á a dificuldade de apresentar uma ideia panorânmica do conteúdo de uma obra como esta. Façamos apenas uma espécie de resumo enumerativo. Começa pela "Idade Média: o universo da Poesia" (pp. 15-74), valorizando a influência da Provença e salientando alguns textos doutrinários do lirismo medievo, sobretudo as Leys d'Amor, redigidas por um conjunto de trovadores de Toulouse, em 1323, a fim de sistematizar as regras da gaia ciência. Naturalmente, não podia faltar o destaque concedido à chamada Arte de Trovar ou Poética Fragmentária, do séc. XIV, texto que antecede o Cancioneiro Colocci-Brancuti, também conhecido como Cancioneiro da Biblioteca Nacional. No essencial, descreve as caracteríticas distintivas dos vários géneros ou subgéneros líricos deste período (cantiga d'amigo e cantiga d'amor; cantigas d'escarneo e cantigas de maldizer; etc.) e respectivos processos compositivos (findas, dobre, mordobre, palavra perduda, rimas, etc). Na obra de Massaud Moisés, o leitor interessado encontra não só a transcrição dos textos doutrinários, mas também a reflexão sistematizadora do autor do livro, quer sobre a estética trovadoresca, quer, já na segunda metade do capítulo, sobre o lirismo palaciano do Cancioneiro Geral de Garcia de Resende (1516). Também esta obra é precedida de um interessante "Prólogo", fazendo desta recolha uma publicação sintomática da proximidade com a poesia medieva, mas ao mesmo tempo, prenunciando a grandiloquência da epopeia quinhentista.

Segue-se o segundo capítulo, intitulado "O Classicismo: a imitação e o culto da forma" (pp. 75-140). Destaca a revalorização que a cultura da Renascença opera dos clássicos gregos e latinos, a começar pelo magistério de influência exercido pelos seus teorizadores literários (Aristóteles e Horácio). Advoga-se uma nova filosofia estética e consequente renovação dos géneros literários, nomeadamente poéticos e dramáticos, à luz de um conceito de beleza literária intemporal e atópica. Salienta o A. também a divulgação e imitação das ideias classicistas em Portugal, quer pelo incansável afã doutrinador de António Ferreira, quer pelo influxo do dolce stil nuovo italiano, chegado pela mão de Sá de Miranda e de outros espíritos cultos e viajados. No campo doutrinário, avultam, de facto, as cartas poético-doutrinárias do autor dos Poemas Lusitanos, acérrimo defensor da pureza da língua portuguesa e incentivador da criação epopaica. Esse primado de influência não deve ocultar a importância de outros autores, como Francisco de Holanda e o seu tratado Da Pintura Antiga, onde, entre outras questões, se retoma o tema horaciano das relações entre a poesia e a pintura (ut pictura poesis). Na ilustrada exposição do autor, Tomé Correia e Jerónimo Osório constituem ainda nomes de doutrinadores influenciados pela teoria classicista da mimese na arte e na literatura, com todo o seu impositivo preceituário, incluindo as tradicionais funções da literatura (docere, delectare e movere: ensinar, deleitar e comover), ou as normalizadoras regras do decoro.

O terceiro e último capítulo, o mais longo deste volume (pp. 141-298), intitula-se "O espectáculo Barroco: do diálogo ao conceito". Abarca o que se convencionou chamar de Seiscentismo literário, isto é, a literatura compreendida entre os finais do séc. XVI, tomando como termo a quo a data simbólica de 1580, com a morte de Camões e a perda da autonomia política em favor da coroa filipina; e, como limite ad quem, os meados do séc. XVIII, com a fundação da Arcádia Lusitana, em 1746. Trata-se, como sabemos, de um extenso período, relativamente rico ao nível da criação poética e da oratória sacra, mas alvo de velhos preconceitos liberais e republicanos, anti-católicos e até anti-jesuítas. Contudo, nos últimos anos, tem-se assistido a uma louvável revalorização da literatura barroca, numa visão bem mais despreconceituosa e despojada de sectarismos político-ideológicos, permanecendo ainda por por fazer.

Nunca será demais enfatizar, como o faz M. Moisés no início deste derradeiro capítulo, que diversas características, a nível estilistíco, temático, estético ou mesmo de visão do mundo, distinguem o Classicismo do Maneirismo, depois dos estudos de referência de Jorge de Sena e de Vítor Aguiar e Silva (Maneirismo e Barroco na Poesia Lírica Portuguesa, 1971), aliás citados pelo autor. Assim se evitarão alguns erros simplistas e redutores, ainda bastante propalados ao nível do ensino, etiquetando criações literárias assaz diferenciadas com o selo comum e fácil do Classicismo renascentista, como acontece com boa parte do lirismo camoniano.

Como tinha procedido em relação aos períodos anteriores, Massaud Moisés apresenta criteriosamente as ideias estéticas que ressumam dos vários tratados e diálogos críticos que animaram o proliferante movimento acedemicista e modelaram as tendências para o engenho e agudeza da literatura barroca nos seus vários géneros. Neste esforço doutrinário, a que não é alheia a influência de teóricos castelhanos, como Baltasar Gracián, e que vai da apologia da estética barroca às primeiras tendências anti-gongóricas, o destaque de Massaud Moisés vai para: Rodrigues Lobo e a Corte na Aldeia; D. Francisco Manuel de Melo e o Hospital de Letras dos Apólogos Dialogais; Filipe Nunes e a Arte Poética e da Pintura e Simetria; Francisco Leitão Ferreira e a Nova Arte dos Conceitos; Manuel de Galhegos e o "Discurso Poético" que antecede a Ulisseia de Gabriel Pereira de Castro; Manuel de Faria e Sousa, o autor dos admiráveis e eruditos comentários às edições seiscentistas d'Os Lusíadas e das Rimas, cuja veneração por Camões contaminou grandes nomes da literatura castelhana; Manuel Pires de Almeida, um dos polémicos críticos camonianos, autor de vários textos e considerações poético-retóricas; e ainda Frei Lucas de Santa Catarina, autor do Serão Político, abuso emendado, dividido em três noites para divertimento dos curiosos.

Em face desta breve apresentação crítica, resta-nos felicitar Massaud Moisés pelo louvável contributo que apresenta para o mais profundo conhecimento da Literatura Portuguesa, através da reflexão sobre as suas fontes estético-doutrinárias. Agora, enquanto recomendamos a leitura deste guia das ideias estéticas aos estudantes de Literatura Portuguesa, ficamos à espera do anunciado segundo volume sobre as ideias estéticas que nortearam a criação literária da segunda metade do séc. XVIII e dos sécs. XIX e XX.

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* Massaud Moisés foi Professor Titular da Universidade de São Paulo (USP), Brasil, de 1973 a 1995, ano em que se aposentou. Tendo sucedido ao Prof. António Soares Amora na Cátedra de Literatura Portuguesa da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH), desenvolveu importantes trabalhos de pesquisa nesta área, logo a partir da década de 50. Recorde-se que os estudos de Literatura Portuguesa foram introduzidos na universidade brasileira (São Paulo e Rio de Janeiro), a partir de finais dos anos 30, por um dinâmico e pioneiro professor português, Fidelino de Figueiredo, cujo trabalho foi depois continuado pelo seu mais directo discípulo, António Soares Amora. Massaud Moisés foi ainda Professor Visitante em diversas universidades dos EUA. Desde há alguns anos, é o coordenador literário da Colóquio/Letras no Brasil.

Entre as obras publicadas por M. Moisés no domínio da Literatura Portuguesa, em São Paulo, normalmente pela Ed. Cultrix, destaquemos [indicando entre parênteses rectos as datas da 1ª ed.]: A Novela de Cavalaria no Quinhentismo Português [1957]; Fernando Pessoa: o Espelho e a Esfinge, 3ª ed., 1998 [1958]; A Literatura Portuguesa, 29ª ed., 1997 [1960]; A 'Patologia Social' de Abel Botelho [1962]; A Literatura Portuguesa Através dos Textos, 26ª ed., 1998 [1968]; Bibliografia da Literatura Portuguesa [1968]; O Conto Português, 4ª ed., 1991 [1975]; Pequeno Dicionário de Literatura Portugues [1981], em colaboração com outros especialistas. Já no domínio da teorização literária, entre outros trabalhos, publicou: A Análise Literária, 10ª ed., 1996 [1964]; A Criação Literária. Poesia, 14ª ed. [1967]; A Criação Literária. Prosa, vol. I, 16ª ed., 1997 e vol. II, 16ª ed., 1998 [1967]; Dicionário de Termos Literários, 8ª ed., 1997 [1974]; e Literatura: Mundo e Forma [1982].

Sob a direcção de Massaud Moisés, tem vindo a ser publicada uma utilíssima "Colecção de Textos Básicos de Cultura", de que já apareceram títulos como: A Estética Simbolista, de Álvaro Cardoso Gomes (1985); A Estética Romântica, de Álvaro Cardoso Gomes e Carlos Alberto Vechi (1992); A Estética da Ilustração, de Lênia Márcia de Medeiros Mongelli (1992); e A Estética Surrealista, de Álvaro Cardoso Gomes (1995). Com o elucidativo subtítulo de "Textos Doutrinários Comentados", cada uma das obras analisa alguns dos textos teóricos mais representativos de cada um destes movimentos estético-literários. Tornam-se, assim, um instrumento fundamental para professores e alunos que pretendem ter um conhecimento dos textos básicos que expuseram o ideário estético de cada movimento. Seleccionados de línguas diversas, ordenados cronologicamente e traduzidos, estes textos doutrinários são criteriosamente comentados, de modo a fornecer uma ampla e fundamentada visão sobre cada período literário e cultural. Cada volume é ainda enriquecido por uma introdução genérica e, no final, por uma selectiva bibliografia.

J. Cândido Martins

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