Letras & Letras

Recensões

Fragmentos de Sombras
José Sousa Vieira
Ponte de Lima, 1996

Fragmentos de Sombras
de José Sousa Vieira

1. Impressões de leitura

No início do Verão, e dum modo algo inesperado, chegou-me às mãos um considerável conjunto de poemas da autoria de José Vieira, sob o título de Fragmentos de Sombras. Ao que julgo saber, o autor prepara-se para editar o seu primeiro livro de poesia, sendo o presente conjunto de textos a sua segunda obra a ser publicada. A intenção que acompanhava esta oferta era a esperada: que depois da leitura, elaborasse uma apreciação crítica, isto é, que me pronunciasse valorativamente sobre a qualidade literária dos textos.

Contudo, devo confessar que, depois do agrado inicial, me surgiram as naturais reticências. A minha primeira reacção, mesmo antes de encetar a leitura, foi a de fazer chegar ao autor a ideia de que eu não era o avisado ou esclarecido leitor ou crítico que ele talvez tivesse em mente, mas apenas um jovem professor de Literatura. Os melhores leitores dos poetas são sempre outros poetas, ou, à falta destes, críticos bem formados e experientes. Ora, eu não sou nem uma coisa, nem outra. Como, porém, este tipo de argumento talvez não demovesse o autor do pedido inicial, resolvi aceitar o desafio, com os evidentes prejuízos de um pronunciamento judicativo muito pessoal e muito modesto. Feito o primeiro esclarecimento, vem o segundo.

Devo também esclarecer que não conheço pessoalmente o autor. Desconheço mesmo a natureza da sua formação escolar ou académica. Apenas julgo saber que, profissionalmente, exerce funções de gestão no sector têxtil. Esta remessa de textos chegou-me por intermédio de mãos amigas. Estes simples pormenores trazem-me ao pensamento três reflexões rápidas.

Primeira: quando se gosta de um texto, de uma obra ou de um autor, esse apreço que sentimos nunca é egoísta – queremos partilhá-lo com outros leitores, a começar pelo nosso círculo de amizade. A literatura e a arte proporcionam um prazer estético tão singular e tão difícil de reproduzir, que a solução é convidar outros leitores a comparticipar da mesma experiência de fruição. É esse o meu grande e único objectivo com esta tomada de posição.

Segunda: não é importante ou imprescindível que eu conhecesse José Vieira para me pronunciar, breve e despretensiosamente, sobre os seus textos. Não asseveram grandes vozes, como as de Octavio Paz ou Miguel Torga, que os poetas não têm biografia – que a sua obra é a sua biografia? Segui a lição e fiquei-me pela primazia da obra, embora saibamos que esta autotelicidade dos textos têm as suas limitações: os textos são sempre criados por um autor, historica e culturalmente situado. E ao contrário de algumas tendências estruturalistas hoje re-avaliadas, não somos partidários da apelidada morte do autor.

Terceira: aliando uma profissão na área têxtil à criação poética (domínios aparentemente díspares), José Vieira está em boa companhia – também Ernesto M.de Melo e Castro é engenheiro têxtil e um reconhecido poeta português contemporâneo ("tecelão" e "texteiro", como ele jocosamente se auto-define). Aliás, sabemos que a palavra texto deriva, etimologicamente, do vocábulo latino textum (do verbo texere), que, entre outras valências, significa: tecido, urdidura, entrelaçamento. Por outras palavras, desta raiz comum derivam palavras semanticamente aparentadas, tais como: texto, textura, tecer, tecido, tessitura. Com efeito, também o texto literário, à imagem do tecido, é um entrelaçamento de palavras e de frases, é um tecido. Talvez ninguém melhor que o referido poeta e crítico Melo e Castro tenha explorado esta similitude do trabalho do profissional que tece e do artista que escreve: "Assim, tanto se pode dizer que tecer é escrever, como escrever é tecer". Em ambos os casos, o resultado é o mesmo: um tecido ou uma tessitura; apenas variam os materiais: dum lado, os fios do tecido; do outro, os fios das palavras (1).

Ultrapassemos as justificações propedêuticas e as deambulações mais ou menos marginais ao trabalho literário e passemos às opiniões sobre os presentes textos de José Vieira.

Fiz a requerida leitura dos textos de Fragmentos de Sombras e fiquei sinceramente agradado. Partilhei mesmo a leitura e algumas opiniões com amigos de profissão e de paixões literárias. Pode-se, portanto, dizer que os sentimentos iniciais de obrigação e de surpresa (chamemos-lhe assim) deram lugar ao prazer e à recompensa. Como leitor interessado, e não como crítico profissionalizado ou especialista em matérias estético-literárias, a minha impressão é, deste modo, francamente positiva. Sendo estes textos as quase primícias poéticas publicadas de José Vieira, eles revelam assinaláveis qualidades, ao nível da arte da palavra e do manejo da frase poética. Arrisco mesmo afirmar que, por detrás desta capacidade expressiva, sobressai também uma indisfarçável sensibilidade poética. Por tudo isto, a minha palavra tem de ser de franco estímulo: José Vieira, vale a pena continuar a escrever. Por outras palavras, gostei de ler os seus textos poéticos e move-me a intenção de levar outros leitores a comparticipar desse prazer.

2. Leituras de uma poética

Como sabemos, todo o texto literário se articula na observação (ou ruptura) de certas práticas ou princípios técnicos e compositivos – é aquilo a podemos chamar de carpintaria do texto, cujas concepções variam de época para época, ou até de autor para autor, segundo certos princípios e gostos estéticos e literários.

Ao mesmo tempo, no texto literário inscrevem-se, mais ou menos explicitamente, determinados subtextos ou influências – a este facto podemos designá-lo de memória ou tradição literária. Ninguém escreve adamicamente, não é possível eximir-se a algum tipo de influência, estilístico-formal ou imagético-temática. Como criadores ou leitores, somos sempre portadores de uma certa "enciclopédia" cultural e literária. Os textos falam sempre de outros textos, ora dum modo mais explícito, ora duma maneira mais velada. Humoristicamente, Eduardo Prado Coelho, relembra-nos que é, hoje, ingénuo defender o dogma da imaculada percepção ou concepção literárias...

São sobretudo estas duas importantes componentes do texto literário que perfazem, dum modo articulado, aquilo a que os críticos e teóricos literários denominam de arte poética, ou, simplesmente, poética de um autor. Façamos um brevíssimo percurso ilustrativo pela escrita de Fragmentos de Sombras, a fim de exemplificar estes dois aspectos referidos, sem os destrinçar totalmente.

Que concepção poética julgo ver, então, transparecer destes textos de José Vieira? Que princípios formais ou que ideias parecem presidir à sua escrita? Como já deixei sugerido, deparei com uma poesia que prima pela afirmação da sensibilidade e da confessionalidade subjectivas. Por isso, reconheço que apreciei ler textos como este: "aqui,/ onde a tarde se esvai,/ pachorrentamente,/ e a noite se instala/ sem ninguém dar por isso,// aqui,/ onde a morte não precisa/ de chegar,/ e a vida recusa não mudar,// moro eu, submisso,/ afeito ao lugar,/ rebelde por inovar,/ morto e vivo, impreciso".

A voz da poesia é, privilegiadamente, a 1ª pessoa, embora esse eu poético tenha um alcance colectivo: na voz singular do poeta, revemo-nos todos nós. Ora esta voz, quando opta obsessivamente pela 1ª pessoa, ganha aqui, por vezes, uma indesmentível dose de furor erótico e construtivo, de violência sadia e genesíaca. Isto mesmo ocorre noutro dos poemas que mais prazer me proporcionou, um texto que de algum modo representa o percurso de toda a existência humana, a do poeta e a de cada um de nós: "para nascer,/ dilato, rebento, furo;// para comer,/ mordo, corto,/ retalho, dilacero/ faço desaparecer;// para amar,/ abro, aperto,/ prendo, penetro;// e nem após morrer/ fico inofensivo/ e quieto:// e daqui,/ vem-me o saber/ de que nem toda a violência/ é inutilmente destrutiva-/ também há a natural/ e a essencial à vida".

Na sequência destas considerações, pode legitimamente perguntar-se: este tipo de escrita enquadra-se em alguma tendência, em alguma poética conhecida? Creio que não, até porque sabemos, como nos recorda João Cabral de Melo Neto, que uma das marcas da modernidade pós-romântica e da contemporaneidade reside justamente na atomização ou fragmentação de uma poética geral em poéticas ou percursos individuais, sempre sob o signo da ruptura mais ou menos revolucionária e iconoclasta.

Parece-me, aliás, ser esse o sentido de outro texto poético de José Vieira, em cujo "incipit" ecoa Fernando Fessoa/Álvaro de Campos (de "Lisbon Revisited, 1923"), a que não é alheia uma concepção platónico-romântica de literatura: "Não me venham falar/ em modelos, movimentos, escolas!/ disso não quero saber!// quero a escrita/ sem muros, nem bitolas,/ quero-a quando/ e como ela me nascer!". Aqui está uma afirmação das concepções poéticas de José Vieira: a escrita é o furor divino e espontâneo, alheio a regras mais ou menos coercivas ou normativas. A sombra do autor da Mensagem volta a manifestar-se noutro pequeno mas precioso texto de José Vieira: "Já gastei uma caixa de palavras/ e ainda não acendi o poema...// ...começo a esfriar,/ vou-me aconchegar ao lume de Pessoa".

Exploremos um pouco mais outra vertente: que influências literárias me parece que se mostram mais actuantes, intertextualmente falando, no tecido textual de José Vieira? À cabeça, salienta-se Fernando Pessoa, ora pelas alusões mais ou menos diluídas (como já apontei), ora pelas referências expressas. Neste último caso está um breve e significativo texto dedicado ao próprio poeta de "Mar Português": "Nos teus caminhos/ corre um Oceano de Lágrimas/ com mais sal/ do que para o mar/ verteram as de Portugal".

Mesmo quando Fernando Pessoa não aparece expressamente citado ou referido, não é difícil descortinar a sua presença. Veja-se, por exemplo, o modo como José Vieira se deixou seduzir pelo jogo das antinomias pessoanas e pelo consequente sentimento de frustração: "esta noite,/ sou o que hoje sou/ e sou apenas o que pressinto:/ vida que até a morte renegou,/ famélico aperto de cinto...// e quando acordar, amanhã, isto já não sou eu,/ foi pesadelo que o sono apagou/ e o tempo esqueceu". A mesma alusão intertextual é palpável no texto intitulado "Caminho Marítimo" – Pessoa opinava que nos tínhamos realizado no mar salgado (com muitas tragédias e lágrimas!), mas que faltava cumprir-se Portugal; José Vieira, retomando de algum modo a mesma tese messiânica, escreve: "Saudoso das naus/ naufragadas,/ - outros mundos/ descobertos-/ de mansinho/ para não as acordar,/ Portugal vai-se/ afundando/ lentamente no mar". Depois da glória e da epopeia no mar português, depois do sonho grandioso do passado, a triste decadência, a irremediável desilusão e pequenez do presente.

Noutros momentos, vemos José Vieira optar pela temática da peregrinação interior, da viagem à sozinhidão do ser humano (de que falava João Guimarães Rosa), da introspecção quase narcísica: "não saio!/ fico em viagem de egoísmo/ a dar voltas ao umbigo/ comprazendo-me de orgulho/ por estar só... contigo// não vou! paro aqui... onde estou/ a olhar-te no espelho/ a ver se o que sou/ quando sair... sai comigo".

Mesmo quando nos parece indecifrável ou hermética, a literatura fala da vida e dos seus meandros inexplicáveis e complexos: "Leio,/ em página despida,/ como analfabeto/ conhecedor de letras,/ um poema/ que não entendo.// Concentro-me,/ abro o dicionário,/ e na página despida/ - tela de memórias -/ passa a minha vida". Bela conceituação da função mimética e cognoscitiva da literatura. Fiquemos ainda com um derradeiro auto-retrato poético, com a sua salutar filosofia de demanda – cada homem, ciente da sua maneira de ser, busca o seu caminho: "procuro/ o sítio exacto/ de guardar/ a porção certa/ de estar.// não carece/ de muito espaço-/ sei ser/ de pouco andar".

Aqui fica um juízo breve e sem ambições, sobre um livro apreciável de poemas. O futuro mostrará a precariedade ou acerto destas impressões críticas. Os leitores ou degustadores de literatura sabem como os poetas e os escritores falam, dramaticamente, na transitoriedade das construções e sentimentos humanos. Nada mais efémero do que um juízo impressivo. Mas não nos cabe adivinhar, temerariamente, o juízo da história futura. Ninguém nos retira, pelo menos, o prazer presente desta e doutras leituras.

NOTA:

(1) A popularização desta perspectiva do texto como tecido, da escrita como um tecer, e do escritor como bricoleur, deve-se a Roland Barthes, num célebre artigo da Encyclopaedia Universalis, Vol. 15, intitulado "Texte (Théorie du)", Paris, 1977, p. 1013-1017. No propósito de responder à pergunta – o que é um Texto? –, Barthes começa por escrever: "C'est la surface phénoménale de l'œuvre littéraire; c'est le tissu des mots engagés dans l'œuvre et agencés de façon à imposer un sensstable et autant que possible unique. (...) Lié constitutivement à l'écriture (le texte, c'est ce que est écrit), peut-être parce qu'il reste linéaire, suggère plus que la parole, l'entrelacs d'un tissu (étymologiquement, «texte» veu dire «tissu») il est, dans l'œuvre, ce qui suscite la garantie de la chose écrite, dont il rassemble les fonctions de sauvegarde".

J. Cândido Martins, 01/08/1996

Voltar à página inicial

Colaboradores | Coordenação | Contactos | © 1997-2015 Letras & Letras