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Recensões

Ciclos, Fragmentos, Idades
Agripina Costa Marques
Pedra Formosa Eds., Guimarães, 1998

Ciclos, Fragmentos, Idades
de Agripina Costa Marques

De quando em vez aparece um livro com magia dentro. Um livro que na sua fulgurante leveza nos reconcilia com o mistério da poesia e que, súbito, nos acorda da dormência que o quotidiano instala em nós. Ciclos, Fragmentos, Idades, de Agripina Costa Marques, inscreve-se justamente na categoria desses livros que, pela sua rareza, reinventa a literatura e a poesia.

A «sabedoria sossegada», que um António Cândido Franco certeiramente detectou neste livro, indica uma sagesse em que as palavras, na sua espessura conceptual, convocam o mundo como coisa transparente:

Na rara limpidez, a fragância
mais pura consagra o dia pleno
a floração das rosas.
Rompem a obscuridade, de coração
vibrante. Deslumbram:
os raios solares, a seiva ardente.
Cálices em avidez fruindo a luz. (p.99)

A materialidade sígnica atinge, nesta poesia, uma depuração que remete para uma sabedoria do que é mais elementar e essencial. Com efeito, a sagração que aqui se fala não aponta para uma transcendência em relação ao qual o poema se posicionaria como coisa exterior. Esta sagração constitui-se como con-sagração, inserção radical do nome e do nomeado, do sujeito e do mundo, superação subsumptiva da exterioridade e da interioridade: «os raios solares, a seiva ardente/ Cálices em avidez fruindo a luz». A afirmação é assim plena, desejo de fazer unidade coma totalidade do mundo. O sagrado não se expõe aqui como coisa tremenda, antes se põe como realidade a partir do qual se diz o sentido do mundo e o mundo do sentido. Ao amontoado desertificante das coisas do mundo, a poesia de Agripina Costa Marques propõe e celebra a origem fundadora da consubstanciação. Mas sem liturgia nem homilia que no seu procedimento ritualista nega o que afirma:

Quando se vela a luz numa penumbra
mais fundamente no teu reconhecimento
evocas a Presença em recíproco apelo.
Com o olhar renovado na abolição do tempo
de novo acedes à invisível luz que em ti reside
– que sem te abandonar por excesso é dispersa
sob a expansão de um dilúvio solar. (p.126)

O poema presentifica-se com o mundo, não o torna visível, nem mesmo, como manda a linguagem kantiana, é condição de visibilidade dele. Antes o poema faz unidade com o mundo em plenitude coincidente. A dicotomia sentimento/pensamento, ponto de partida e de chegada do pensamento logocrático, é assim ultrapassada pela razão amorosa que ilumina o conhecimento e trespassa a obscuridade:

Ponto intermédio entre cérebro e coração, pilar

do rosto que do encontro de ambos se alumia
quando se fundem na emoção que a releva, a nuca:
onde os dedos denunciam a ternura que alicia. (p. 113)

A palavra ilumina e ilumina-se; fulgura, não ofusca. No brilho que irradia traça o mapa para o centro dela mesma. A convocação epigrafada de Yalal ud-Din Rumi - «Ao centro fui e no centro ardi» -, reforça o apelo a uma ataraxia activa, uma serenidade dinâmica que, quase programaticamente, o poema que abre o livro afirma com toda a clareza:

Que me tome a serenidade
que sobre mim se verta
em generosa dádiva.
Que ante as dissonâncias
que ferem a minha mente
lhe consagre uma leveza de asa
imune: a ameias que sitiam
ou a iníqua voragem. (p.11)

Esta poesia não protesta, não grita nem se confessa como inquietude que procure arrebatamento ou catarse salvífica. Nem sequer cumplicidades auto-satisfeitas pela denúncia do mal-estar do homem moderno ou pela fragmentação a que estamos condenados. Se fragmentos encontramos em Ciclos, Fragmentos, Idades, são, em todo o caso, fragmentos afirmativos. Veja-se, por exemplo, o «fragmento» da pág. 80:

O princípio onde tudo se forma
é o interior recôndito,
centro gerador, fonte ou matriz
virtual da integridade,
permeável à onda vibratória
que avassala. Dinamizante foco:
a chama reconverte em inteiro
espaço; retorno em nascimento.

Todas as palavras significativas estão no poema: fonte, matriz, foco, chama, princípio, interior. Mas estão ao modo de não estar, isto é, não acrescentam, nem explicam. De facto, não se diz que alguma coisa, diz-se que o que é auto-gera-se como

retorno a si mesmo. O espaço reconverte-se pela «onda vibratória» que a chama irradia. No entanto, não se trata de uma mera redundância. Esta, como sabemos, é o modo como a linguagem, desdobrando-se, diz o mesmo. Colocada ao serviço da compreensão, da explicitação do que é dado, a redundância pressupõe a obscuridade do dito. Ora, nesta poesia não se parte de nenhuma obscuridade a necessitar de inteligibilidade, ferida inicial a precisar de curativo, de religação póstuma. Antes a afirmação de uma origem que é preciso reencontrar.

Se a palavra, no acto de o ser, coloca o sujeito em posição de exterioridade pela distância que o dizer do mundo produz, a palavra em Agripina Costa Marques instala-se no exacto centro do mundo em que a palavra ela-mesma flutua como pura disponibilidade, acolhimento e recolhimento de todas as virtualidades significativas do mundo:

Viera de longe de um reino visionário
trazia a ciência de todas as rotas
o abraço de luz o gesto encantado.
O olhar deslumbrado dizia do encontro
de êxtase súbito todo o ser desperto
e o rosto que a si e ao outro reflecte
na expressão acesa que se reconhece.
A beleza ampliada à sua transparência. (p.111)

Não se trata, em Ciclos, Fragmentos, Idades, de nomear as coisas do mundo e sobre elas dizer qualquer coisa que, face ao inumerável delas, seria sempre dizer uma coisa qualquer. Esta poesia procura instalar-se no centro e daí irradiar para o renovo cíclico da vida e do mundo. Se fosse caso de reconduzir a poesia de Agripina Costa Marques a uma cosmogonia confrontadora, seria à de Anaximandro pela recusa em nomear explicitamente a origem e horizonte de inteligibilidade a partir do qual tudo acede ao ser. Com efeito, tal como a ondeação do fogo, a palavra sábia revela-se como coisa fluida, inomeável em definitivo:

Nome é prece que em recolhimento
se murmura. Em fervor concentrado
no nome se nomeia o que o nome
mediatiza quando nele se identifica
nome e nomeado na extrema contensão
de nomear por dentro do nome
ou alongar no lento chamamento
a intensidade de nomear e animar
o nome de profundo significado. (p.112)

Fernando Martinho Guimarães, 1999

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