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Recensões


Não É Que Eu Saiba o Que Sei
Alberto Augusto Miranda
Lisboa, 1996

Não É Que Eu Saiba o Que Sei de Alberto Augusto Miranda

Não é que eu saiba o que sei é o décimo título publicado de Alberto Augusto Miranda. De Outubro de um Século, romance dado à estampa em 1981 até ao presente livro, a produção artística de Alberto Augusto Miranda é marcada por uma significativa periodicidade e por uma não menos significativa abrangência nos géneros literários. Do manifesto, com o opúsculo O que se escreve – Quem escreve? – Subsídio para o Antigosto das palavras, passando pela dramaturgia com a peça Nojo, pela novela com Redond'Ilha (1993) e Portografias de 1995, pelo conto com Viagem à volta de Sabine em Oitenta Noites de 1989 e pela poesia com Miligramas, Linha de Linho e A Poesia de Yvone M., de 1994, a produção criativa de Alberto Augusto Miranda ocupa já no espaço cultural português um lugar assinalável que a crítica não pode de maneira nenhuma rodear.

O presente livro de Alberto Augusto Miranda é, permitam que o diga, um objecto paradoxal. Desde logo pela estranheza que o título suscita. A remetência à douta ignorância socrática aparece em toda a evidência. No entanto o apotegma socrático «só sei que nada sei» revela, ainda assim, uma sabedoria, negativa, é certo, mas em todo o caso sabedoria. Sabemos que a sabedoria socrática apresenta a ambiguidade de a um tempo se apresentar como ponto de partida de um saber que se quer autofundante e ao mesmo tempo ponto de chegada de um trabalho subversivo de desconstrução que tem por objecto o pretenso saber sofístico. É certo que a invocação de um demónio interior por parte de Sócrates levanta a fundada dúvida sobre a infundada sabedoria que o apotegma traduz e que a ironia permitiria recentrar na por demais celebrada humildade filosófica. O demónio interior socrático não é bem a negação dessa pretensão à objectividade racional que o conceito expressa? Artifício de comediante, diz-nos Nietzsche, este demónio interior resguarda o indivíduo da ex-posição publicitária que a universalidade do conceito implica. Delírio de solitário ou sopro divino, invenção ou exigência moral, o demónio socrático expressa o desejo de impenetrabilidade de que o trabalho da razão aprecia mascarar-se. O fascínio que o personagem Sócrates exerce não reside precisamente aqui, na ambiguidade desconcertante de um saber que se afirma, negando-se? Ora, é precisamente desta duplicidade, desta ambiguidade que ao negar-se se assume que os ensaios de Não é que eu saiba o que sei faz objecto e modo de abordagem. A duplicidade interpretativa entre a alternativa – que se saiba o que se sabe ou que não se saiba o que não se sabe, o título indica uma flutuação entre o que se afirma que se sabe e o seu desmentido. Há pois uma ironia que a denegação não anula, antes reforça. Diz o autor de Não é que eu saiba o que sei: «De tudo isto têm os sábios receio: é que nada há que não tenha duplo sinal; assim, um exemplo comezinho: o rasgão da camada de ozono (camada constituída por um povo de matriarcas) contamina tanto o nível de vida terrestre como o nível de vida firmamental. Assim, se Deus penetra agora muito mais na Terra (mesmo contra a Sua vontade) que não está preparada para receber todo o esplendor divino, também os homens penetram muito mais na ordem divina e o grande perigo é Deus ser contaminado pelos afectos humanos. Poderá ser, se Deus quiser, o fim do mundo» (p.15).

De entre os vários elementos que acompanham um texto e ajudam a explicá-lo – os chamados elementos paratextuais – contam-se o título, prefácios, recensões e subtítulos. O subtítulo de Não é que eu saiba o que sei podia muito justamente ser Ensaios. De que modo a invenção de Montaigne nos pode ajudar?

Sílvio Lima em Ensaio sobre a Essência do Ensaio aponta como características do ensaio a liberdade pessoal e o esforço constante pelo pensar original, no sentido de um pensar autónomo, representando uma tentativa, um tacteio. Para além de expressão literária o ensaio revela uma atitude crítica. Do pessoalismo sem método de Montaigne ao ensaio com método de Descartes um elemento comum os aproxima: em ambos se conta a história de um pensamento que se procura.

Ensaio é pois uma demanda, uma procura. Isto é, acerca do que se sabe que não se sabe o pensamento empreende uma busca, metódica, no caso de Descartes, subjectivamente errante no caso de Montaigne. Em qualquer dos casos o ensaiador experimenta, no sentido laboratorial do termo, argumentos. Trata-se, pois, de um diálogo em que o ensaiador argumenta e contra-argumenta, pergunta e responde. Não dizia Platão que o pensamento é um diálogo da alma consigo mesma? Pensar, eis o que o pensar nem sempre tem por objecto. Neste último livro de Alberto Augusto Miranda o pensar assume a sua duplicidade originária, a sua ambiguidade estruturante. Pode ler-se na página 84: «Se a reescrita já foi executada, o movimento de re-criação é, afinal, um movimento nulo – paradoxo contrastante com a inércia de um dado movimento – e assaz mortífero. Só a criação, ou seja: a escrita de uma outra escrita fundadora se pode constituir em fonte, em origem. É é muitas vezes o que se sauda na morte, na cor definitiva: não poder ser reescrevível». Eis o que me intriga na Odisseia de Homero: nada diz, nem indica, sobre o quotidiano de Ulisses após o regresso a Ítaca. Hipótese plausível, mas que tomo como certa: nada há a dizer. Solução optimista: passados uns dias Ulisses fez-se de novo ao mar: não era já aquela a Ítaca originária.

Se necessário fosse entroncar esta atitude num dizente filosófico encontrá-lo-iamos em Merleau-Ponty quando a propósito do lugar da Filosofia o autor do Elogio da Filosofia afirma que filosofar é o transporte do saber para a ignorância, da ignorância para o saber e o intervalo entre eles. Alberto Augusto Miranda di-lo de outra maneira. No ensaio intitulado «Do Direito à Resposta» pode ler-se: «os esforços devem coincidir entre o primitivo e o sofisticado para que a resposta seja superfície. Porque o erro fatal é querermos compreender a resposta quando a nossa compreensão é já, em si, um exercício muito limitado que desencadeia muitas perguntas que solicitam sólidas respostas mas não conduzem à Resposta» (p.71) Entenda-se: não é a Resposta logocraticamente sediada que aqui é problema. Alberto Augusto Miranda não demonstra: argumenta. Ainda o autor de Não é que eu saiba o que sei: «Porque a Resposta não se filia no emotivo: não se sente e, portanto, não se pode compreender; tão pouco se resume ao racional para que a notável cientificidade a possa entender e experienciar. É verdade que a Resposta é conjugada também por essas duas dimensões mas estratifica-se no para-onírico descompartimentado, sem cabimento de controlo, aberto e totalmente receptivo» (p.71).

A razão e a paixão, o conceito e a fantasia, não isto ou aquilo, antes a contaminação, a flutuação dúplice entre a racionalidade objectivante e a argumentação persuasiva. O carácter paradoxal destes ensaios reside pois na oscilação interpretativa a que permanentemente estamos sujeitos. Assim, se por um lado o jogo vocabular lúdico-ficcional desperta no leitor uma fruição quase sensitiva, já o carácter argumentativo de boa

parte dos ensaios aponta claramente para uma dimensão de ordem intelectual, racionalizante. A este propósito, chamo a atenção para o ensaio com o título A qualidade do Ser na Perseguição à Certeza onde Alberto Augusto Miranda literalmente persegue esse par categorial – «indícios maniqueus», na expressão do autor – que atravessa toda a história da teoria do conhecimento: a certeza e a dúvida.

Dizia Jorge de Sena que o ensaio «é, ou deve ser, anti-didáctico – contribuir discretamente para a confusão dos espíritos». Pensamos que Não é que eu saiba o que sei cumpre plenamente este objectivo.

Fernando Martinho Guimarães, 1999

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