Letras & Letras

Recensões


Mar e Tudo
José Francisco Costa
Lisboa, Salamandra, 1999

A maritude de José Francisco Costa

A literatura luso-americana tem engrossado consideravelmente os seus ficheiros nestes últimos anos. Ainda há pouco tempo dediquei ao tema um longo ensaio (1) e apontava a nova fase – a da escrita em inglês – a que vimos assistindo com o surgimento de livros, como por exemplo os de Katherine Vaz, Saudade e Fado and Other Stories.

Mas essa novidade não significa o fim da fase anterior, já que continuam a aparecer novos títulos em português de autores imigrantes. Aliás, não só de imigrantes, porque um outro fenómeno recente, e notável, é o do aparecimento de livros de autores açorianos abordando a temática imigrante não já meramente do ponto de vista dos Açores, como acontecia até aqui, (com excepção quase exclusiva de Gente Feliz com Lágrimas, de João de Melo) mas reflectindo uma considerável experiência americana. A prová-lo, basta mencionarmos o romance Já Não Gosto de Chocolates, de Álamo Oliveira, o livro de poemas My Californian Friends, de Vasco Pereira da Costa, e, em certos aspectos, Relação de Bordo, o diário de Cristóvão de Aguiar.

O encurtamento das distâncias entre os Açores e a América acontecido na última década tem permitido um convívio frequente dos escritores açorianos com a realidade emigrante. Por outro lado, os livros de autores insulares residentes nos Estados Unidos são publicados em Lisboa, juntamente com os de residentes nos Açores. O resultado de tudo isto é uma osmose das linhas divisórias entre a literatura açoriana e luso-americana, quase seu apêndice, bem como entre a açoriana e esse círculo mais vasto de que faz parte, a literatura portuguesa. Também na arte a fusão de barreiras que caracteriza o mundo contemporâneo acaba por acontecer normalmente. Geograficamente, o Atlântico feito rio aproximou hoje os Açores mais e mais das suas duas margens: a de Portugal Continental e a da L(USA)lândia.

Uma das mais recentes novidades literárias nestes três círculos interligados é Mar e Tudo, de José Francisco Costa, editado pela Salamandra, de Lisboa.

Não é uma voz nova nas letras mas é o seu primeiro livro. Um livro tardio que tem a vantagem de se estrear como obra de maturidade. Professor de Português no Bristol Community College, em Fall River, José Costa nasceu nas Capelas, São Miguel, Açores, frequentou o Seminário de Angra do Heroísmo, a Universidade Católica de Lisboa, tendo depois obtido o bacharelato em História na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, antes de emigrar para os Estados Unidos em 1978. Aqui, fez um Mestrado em Estudos Portugueses na Universidade de Brown e, presentemente, é doutorando no Departamento de Estudos Espanhóis e Portugueses da Universidade de Massachusetts, Amherst, tendo entre mãos uma tese sobre Jorge de Sena. Trabalhou no Ser-Jobs for Progress de Fall River; na estação de rádio WRCP, de Providence; e foi professor na Escola Portuguesa de East Providence, da qual é actualmente Director Pedagógico.

Afirmava acima que José Francisco Costa não é uma voz nova nos sectores das letras. Personalidade multifacetada, é assaz conhecido nos meios afectos à cultura da diáspora pela sua diversidade de talentos. Tem publicado poemas, contos e ensaios, em revistas e livros colectivos nos Estados Unidos e nos Açores. Mais ainda, é autor e intérprete de apreciadas composições musicais – letra e música – tendo mesmo uma delas representado as comunidades portuguesas da Nova Inglaterra no I Festival da Canção Emigrante realizado em Trancoso. "Velho Pezinho", outra muito conhecida canção do autor, foi primeiro incluída num disco do Duo Ouro Negro; depois, num CD do grupo musical Bela Aurora, de S. Miguel; e, recentemente, noutro do Grupo Coral das Lajes do Pico.

Em nota que publiquei no Portuguese Times a anunciar a publicação deste livro vaticinava para ele excelente aceitação da parte da crítica e do público, por se tratar de uma obra que marcará a ficção da nossa diáspora pela beleza literária e pela força humana das suas narrativas.

É agora altura de esmiuçar o vaticínio.

Mar e Tudo tem esse título porque é exactamente isso: mar em tudo e maré cheia do tudo da vida de um português da ilha que agarrou da mala, rumou para Oeste como milhares de antepassados seus e deu à costa, ou deu com as costas (e os Costas todos da família!) na América num período em que ficar em Portugal teria muito provavelmente sido fazer uma América com a prata da casa, ou se calhar mesmo com o ouro da casa.

Mar e Tudo é um poema longo, espécie de prosema, ladainha em que o autor encadeia histórias com sonhos, memórias com esperanças, sofrimentos com violão, agruras com aspirações, tudo salpicado de palavras molhadas na frescura da água salgada. Se o pai do Duarte de um dos contos era, segundo o narrador, "o único homem que conhecera com a alma verdadeiramente salgada" (p. 50), mar e humanidade são as duas mais constantes notas deste precioso pequeno volume. António Rego disse-o já melhor do que ninguém no prefácio:

"Este livro está temperado pelo mar. Pelo fundo do mar, com um prisma de cor, um universo de códigos e rituais a que poucos têm acesso. Não tenham medo. Mergulhem em cheio. O mar do José Francisco Costa é um oceano de humanidade". (p. 9)

Para "que nunca a alma do mar de nós se aparte!" bebem dois amigos em saudação mútua. E ela não se aparta nunca nestas páginas. O mar é a metáfora recorrente de vida, onde a profundidade se esconde ("o mar, visto do paredão da rocha, era como um cão desconfiado do dono", p. 60), lugar de tempestades, escuridão, vagalhões mas há também algumas (poucas) manhãs de azul, tardes de bonança e (muitos) mergulhos refrescantes de caça submarina. No tudo da vida, porém, estas histórias preocupam-se mais com os dias cinzentos, pois a alegria dos luminosos vive-se mais do que se escreve. Embora a dor seja sobretudo "o que não se sabe dizer, ou o que não se pode ou deve contar", é sobretudo dela que estas páginas se enchem. E dos invernos, que é "quando a terra treme de frio e medo do mar" (p. 93). É das experiências doridas que o autor nos conta, porque, "experimentado nos trilhos da emigração", também ele foi "romeiro neste sonho de tantos" (p. 48) e nas terras do sonho americano "não há tempo para sonhar" (p. 60). Elas são a "Laborlândia" (p. 82), do outro lado do sonho que Diniz Borges inspiradamente gravou em título de um livro de ensaios. Não é só para o Duarte dessa história que "a sorte lhe anda destemperada" – "Roto. Todo roto por dentro" – mas de igual modo para muitos outros que se lançaram à aventura do cruzamento do Atlântico.

Mar e Tudo é um poema em estórias. Estórias de mar amargo. Mas também de amar. Veja-se por exemplo a bela página de ficção autobiográfica, em cumprimento quase da profecia do ti António Cordeiro (p.98) entretecida na igualmente bela história que com chave de ouro fecha este volume.

Livro de contos português, a sua prosa carrega consigo aquela marca de certa melancolia saudosa da infância e adolescência, marca tão portuguesa, mais ainda açoriana e sobretudo micaelense, afinando pelo tom menor que caracteriza o seu folclore. A promessa dos dois amigos de irem cada ano, no primeiro dia de férias na ilha, até ao cimo da rocha, "permanece viva, viúva e triste". O dr. Rodrigues "em silêncio percorre o mar com o olhar magoado. Depois desce vagarosamente até ao porto." (p. 70) Numa terra de mar onde "o silêncio é dono de tudo" (p. 64), onde há "sombras prenhes de silêncio" (p. 77), onde às vezes "o sono morre na noite" (p.77) e onde há personagens como o Ti Chico Custódio, que repetem "canto-chão em pauta de miséria" (p.58), como fazer eufórico o registo? Contudo, ele é sempre criativo e profundamente humano:

"A memória me basta de recordações infantis. Visões maduras como os figos de bico-doce de uma figueira nova que o diabo levou com a quebrada. Meu país era uma terra plantada em pátria nenhuma, com água no mar e maré cheia nos olhos. A memória me basta de sonhos tristes e ternos do meu avô Feliça morrendo-se de falta de ar adocicado por um eterno perfume de tabaco de rolo... A janela de cima da rocha foi-lhe púlpito para madrugadas de bons-dias a Ti António Bernardo e mestre João Botelho". (p. 68)

"Glorinha, mel das ilhas" é decididamente a grande excepção. Mas mesmo assim, é de uma doçura melancólica (pp. 23-24, por exemplo) na sua profunda humanidade. Aliás, a humanidade e o mar de Mar e Tudo culminam na história do ti Cordeiro "Enquanto a ilha for...", a última do volume. (Atente-se especialmente no exímio retrato do protagonista, p. 90).

Uma das marcas de autenticidade do livro está na oralidade, na capacidade de captar o discurso dos seus personagens. Escute-se a do ti Cordeiro, a contar ao narrador como lhe ensinou a nadar, era ele ainda criança. Essa narrativa é bem um paradigma da mestria do escritor no domínio da palavra e da fidelidade do ouvido à voz dos seus personagens (p. 96/7).

Os dois amigos de um dos contos "regressavam, cada ano mais convencidos de que a ilha se comove quando a trazemos ao peito" (p.63). Estas páginas de Mar e Tudo trazem a ilha ao peito. A voz das suas histórias continua a cantar as sapateias e saudades, liras e olhos pretos, velhos pezinhos e tiranas das gentes que de ilha ao peito vieram para a América à procura do fim do mar onde supostamente havia tudo e onde afinal encontraram de tudo. E é desse tudo que nos contam e cantam estas histórias. A sua leitura tem o efeito da música. Torna mais doces e humanos os dias. São o outro tom da sapateia.

(1) "Duas décadas de literatura luso-americana: um balanço (1978-1998), Veredas I (1998), nº1.

Onésimo Teotónio Almeida, Providence, 8 de Junho de 1999

Voltar à página inicial

Colaboradores | Coordenação | Contactos | © 1997-2015 Letras & Letras