Andanças e Façanhas de Alfanhuí
Rafael Sanchez Ferlosio
Lisboa, Edições Cotovia, 1991
de Rafael Sanchez Ferlosio
De novo Rafael Ferlosio surpreende ao assenhorar-se de uma escrita encantatória nesta feliz tradução com que a Cotovia repõe a obra de 1951.
Fazendo da efabulação matéria de livro, o autor expõe-nos a todas as incredulidades, através da estória absurda de um menino embalsamador na sua viagem pelo mundo do insólito.
Pasme o leitor ao saber que quem escreve com tinta feita de galo catavento se torna capaz de criar um novo alfabeto. Ou que o vermelho do poente pode ser recolhido dentro de caçarolas e panelas. E que por certo há animais transparentemente cristalinos e até aranhas que se alimentam das cores do arvoredo.
Se lhe sobrar ainda a capacidade para suspender a descrença e por certo o estilo líquido e surrealista de Ferlosio o colará ao livro , travará conhecimento com outras personagens fantásticas. Destaco o mestre do menino, espécie de «griot» que sabe de lendas espantosas e habita em Guadalajara, entre o jardim do sol e o da lua. Ou ainda ladrões filósofos, galos de catavento, uma criada embalsamada (mas com vida própria!), um gato clandestino, ciganos esquisitíssimos, etc. É todo um universo de seres peculiares e irreais, mas convivendo entre si como se a estranheza fosse o natural e o natural o estranho.
Imaginário por imaginário, apostado no desconcertante, com uma pitada de humor negro, cada episódio é um desafio tão curioso quanto disparatado. Dir-se-ia haver algum excesso, traduzido em incongruências, nesta enxurrada de bizarrias sem lição de moral ou propósito. No entanto, para o público cada vez menos restrito do fantástico, este romance é uma guloseima.
Resta lembrar que Ferlosio é um autor dominante na ficção espanhola do pós-guerra, tendo-lhe sido atribuído o prestigiado Prémio Nadal, e que para quem desconhece a sua produção este livro é bom pórtico de entrada - ou de fuga. A escolha é sua.
João de Mancelos, Julho de 1999