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Teoria da Disponibilidade
Silva Carvalho
Porto, Brasília Editora, 1994

Teoria da Disponibilidade:
de Silva Carvalho

Teoria da Disponibilidade (TD, Porto, Brasília Editora, 1994) prolonga e desloca O Princípio do Eco (PE) (1).

TD prolonga PE porque há todo um feixe de modulações sobre o impoder da voz com novas sequências (onde se destaca a p. 58, inteiramente "disléxica", nas suas falhas do falar estruturador do discurso). Mas o que era exibidamente medular em PE, aqui parece-me mais subterrâneo, para eclodir a «disponibilidade". Disponibilidade para quê, ou para quem ou para onde? É aqui que há um deslocamento, configurado em dois aspectos.

Primeiro aspecto. Resumiria em duas passagens (que são deslassadas no final do livro). "Não faz sentido fazer sentido" (59); "[...] quando aceito a dádiva do dizer, / a experiência do que nunca, / possivelmente, teve a oportunidade de ser sentido. / De fazer sentido. [...]» (84). (Existem outros ecos internos do livro: por exemplo, a p. 47 parece responder – "nada se alcança" – à p. 43 – "chegar, mas chegar onde?". Mas estes ecos, e outros, podem ser por ora condensados naquelas duas passagens.) Não faz sentido fazer sentido e estou disponível para o que a língua me faz sentir fazendo-me sentido. "E no entanto a humanidade inventou línguas...", exactamente: sentido é o que encadeia desencadeando, é o que está entre essas "duas palavras apenas". Este livro é a invenção de uma língua que faz e desfaz sentido, do sentido e do real, de uma escrita com o real ("Nunca a realidade da realidade. Nunca o sentido do sentido." – porque já não há identidade – paradigma clássico – nem autonomia – paradigma moderno, da escrita em relação ao real). Daí o trabalho incessante na sintaxe (na "ordem"). A sintaxe (suntaxis, sun, "com", e taxis, "ordem") devém toda ela uma parataxis (pará, "aproximação" e "oposição"). A sintaxe devém uma suspensão a-semântica do discurso. Precisamente: disponibilizar o discurso: dis-por, isto é, separá-lo desviando-o. É possível escrever com uma parataxe (no lugar da sintaxe) fazendo sentido? E todo o repto da disponibilidade (da escrita e da leitura: da escrita na leitura, e da leitura/escrita).

Mas, no final do livro, a disponibilidade para o sentido passa a estar verbalmente consciente da coincidência com a disponibilidade para morrer "de cada vez num poema" (pois "nunca escrevi para me furtar à morte", sendo possível, a partir daqui, desenvolver tudo isto, relacionando as pp. 52, 91, 94, 98). É nesta coincidência, que ao longo da escrita no tempo se vai disponibilizando, que o livro ganha um contágio iriante extraordinário. Porque aí coincide e deslassa-se o que se teceu: "[...] um prazer tão grande não ter descoberto / nada no nada que se descobre [... J" (91). Que se descobre. Isto é, na senda do nada, não é uma substância residual do sentido o que se desvela, mas o desvio do que não permanece. Passagem do des-cobrir para o inventar. (A este respeito, ler o ensaio de Derrida, "L'Invention de l'autre" (2).)

Segundo aspecto. É a revalorização, por deslocamento, da noção de "Teoria". E aqui através de dois precedimentos: da resistência à teoria (a uma determinada concepção da "teoria"), por exemplo nas pp. 56 e 81; e da ironia para com a teoria (de um tipo de ironia que já não é romântica, por exemplo, p. 95). Era preciso ver agora que "resistência" e que "Ironia". Mas para já vislumbro que "deslocamento". Eu penso que se opera um movimento da mesma índole – a um tempo linguística e civilizacional – que o testemunho do "Fragmento 4" de Da Estupidez (3). Se aqui se tratava de deslocar o pejorativo, agora trata-se de deslocar o discurso conceptual, alargando-lhe as ressonâncias e as interferências num cruzamento incessante de discursos sem privilégios c hierarquias (fazendo, igualmente deles, "um momento ou um motivo de criatividade»). Não é só o mimetismo de repetir que não há «linguagem poética", é o facto de a porética praticar o cruzamento e a deriva inauditas de todos os discursos que advém à fala.

Um terceiro aspecto, a ser estudado em detalhe, seria o de relacionar os dois precedentes. Que teoria da disponibilidade, isto é, depois de se compreender qual a ordem dos significados deslocada pela disponibilidade, e qual a ordem dos significantes deslocada pela teoria, tratar-se-ia enfim de ler quais as formulações concretas para uma "teoria" disponível, e para a disponibilidade à "teoria". As páginas anotadas penso que são o ponto de partida, porque o que interessa é ler o que emerge como irredutivelmente do autor (independentemente de, aqui e ali, se poderem ler assimilações transformadas de tal ou tal "teoria" – e nisto, resolutamente, Silva Carvalho se distingue de um Antero). (Entretanto, é discernível uma "teoria ambulante da leitura", onde se frequenta o texto mais do que se interpreta, com constantes injunções ao leitor para se levantar e consultar o dicionário – p. e.: p. 96 -, assim como outras injunções mais discretas. Por isso lhe correspondem, na «teoria ambulante da escrita", como autênticos alicerces do discurso, aquilo que eu chamaria, provisoriamente, "didascálias para um solo sem encenação , como se o eu de enunciação balbuciasse e se fosse certificando de uma presença que impermanece, cirandando-o – é um verbo que neste livro aparece nevralgicamente – pelo discurso: são as constantes auto-indicações, que se ampliaram e complexificaram: "digo-me", "penso", "sinto", "sussurro", "replico", «ouço-me dizer", "pergunto", "sorrio", "surpreendo-me", etc.).

Um outro aspecto, porém este é dos que menos aprecio, é aquilo a que chamaria o "bordão dos significantes". Em certos momentos, Silva Carvalho apoia-se no «emaranhado das palavras", dando a sensação que, no esgotamento total do poder identificador e compensador da linguagem, apenas restasse como esteio um reenvio infindo de sonoridades de palavras para palavras (é certo que não são calembours puros, cuja origem fosse discernível para lá da superfície, mas ainda assim, por vezes, é devedora de uma prática do calembour, que é, penso eu, ainda um momento de negatividade da desconstrução da linguagem e, nalguns casos, como bem observa Deleuze (4), está ainda à procura de um primeiro princípio, à procura de restituir, pela fixação/desconstrução dos significantes, um "princípio no princípio" – e isto é muito menos interessante do que o trabalho na sintaxe e o cruzamento dos discursos, onde se parte sempre "a meio" do verso. Cf., p. e., 60, 61, 85).

NOTAS

(1) Porto, Brasília Editora, 1993.

(2) in Psyché, Paris, Galilée, 1987.

(3) Do mesmo autor, Porto, Brasília Editora, 1988.

(4) in Dialogues [com Claire Parnet], Paris, Flammarion, 1977.

Tomás Maia, 16.2.95

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