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Recensões

Sapateia Onesimiana:
Subsídios para uma leitura de (Sapa)teia Americana


Estes subsídios propõem uma leitura de (Sapa)teia Americana que privilegia a interdependência dos vinte contos que compõem a colectânea (1). O título do livro – que aponta indirectamente para o título de um único conto, «(Sapa)teia Quotidiana», mas implica-os a todos – poderá ou não ser um sinal genérico, um convite da parte do autor à leitura dos contos como ciclo. O grau de homogeneidade e intratextualidade dos textos componentes persuade-nos, porém, a uma abordagem que tome em conta, pelo menos em parte, uma das denotações/conotações do riquíssimo título da obra: o seu plano artístico, a analogia implícita entre o escritor e a aranha, grande artista da natureza que, no dizer poético de Emily Dickinson, «sewed at Night / Without a Light / Upon an Are of White» (2).

O ciclo de contos – género que também já foi rotulado como sequência de contos, complexo de contos, contos-romance ou romance-contos, conjunto de contos, rovelle (do francês roman e novelle), recolha de contos integrados, ou simplesmente volume de contos – é, de facto, equiparável a uma teia urdida pelo escritor e pelo leitor. Pois se àquele pertence o crédito da composição, a este cabe a responsabilidade de lhe seguir as sugestões, detectar ligações entre os vários textos, reavaliar primeiras leituras à medida que os fios construtores e condutores se vão, qual padrão de teia, entrelaçando e organizando.

A crítica anglo-americana faz remontar os ciclos modernos a colectâneas de Washington Irving, Edgar Allan Poe, Nathaniel Hawthome e Herman Melville. No entanto, é em fins do século XIX que aparecem obras que posteriormente constituirão modelos importantes do género, entre elas Main-travelled roads (1891), de Hatrilin Garland e The country of lhe pointed firs (1896), de Sara Orne Jewett. É na primeira metade do nosso século, porém, que aparecem as obras consideradas paradigmáticas do género: Dubliners (obra escrita antes mas só publicada em 1914), de James Joyce, Winesburg, Ohio (1919), de Sherwood Anderson, In our time (1925), de Ernest Hemingway, e The unvanquished (1938) e Go down, Moses (1942), de William Faulkner.

Na definição de Forest L. Ingram, proposta no seu livro pioneiro Representative short story cycles of lhe twentieth century (Haia: Mouton, 1971), o ciclo é «um livro de contos tão ligados entre si pelo seu autor que a sucessiva experiência do leitor a vários níveis do modelo do conjunto modifica significativamente a sua experiência de cada uma das partes componentes» (pág. 15). Robert M. Luscher, que prefere a designação «sequência de contos» e reconhece um papel de maior relevo ao leitor, define o género como «um volume de contos coligidos e organizados pelo seu autor como um todo estético, de forma a que o leitor descubra sucessivamente os modelos subjacentes de coerência e a sua unidade temática pela contínua modificação das suas percepções de modelo e de tema» («American Regional Short Story Sequences», Dissertação de Doutoramento, Duke University, 1984, pág. 8).

A multiplicidade de designações genéricas – defendidas em alguns livros mas sobretudo em dezenas de dissertações de doutoramento em universidades americanas e em dúzias de artigos – aponta para a complexidade e fluidez do género em epígrafe e para a necessidade de uma distinção – por necessariamente superficial que ela tenha que ser aqui – entre os dois rótulos mais competitivos, os quais, por sua vez, costumam ser geralmente empregues indiferentemente: ciclo e sequência, sendo aquele o mais frequentemente usado. Ambos os termos têm uma riquíssima genealogia literária: ciclos épicos e de novelas de cavalaria; sequência de sonetos e moderna sequência poética, acentuando esta última designação a afinidade entre os géneros lírico e contístico. Luscher é um dos poucos críticos que justifica a sua preferência: «ciclo» chama a atenção para a recorrência de temas, símbolos, personagens, mas não sublinha a sucessividade dos textos; «sequência», pelo contrário, aponta para o facto d e os textos individuais, sem renderem o seu carácter distintivo e independente, elaborarem os contextos, personagens e temas a desenvolver pelos textos seguintes. Creio eu que, empregues criteriosamente, as designações «ciclo» e «sequência» nos permitem distinguir entre duas principais tendências de colectâneas integradas: aquelas que apresentam uma configuração equiparável à estrutura musical «tema e variações» (ciclos), e aquelas em que os textos apresentam uma concatenação ou sucessividade que os aproxima mais do romance sem com ele se confundir (sequências). Num ciclo, os «temas» (enredos, personagens, temas, imagens) recorrem com variantes de texto para texto sem necessariamente apresentar o grau de interligação verificada na sequência – por exemplo a reaparição e maturação de personagens ao longo da obra. Importante, no entanto, é constatar que não há géneros puros. Os Novos Contos da Montanha (1944), de Miguel Torga, constituem, a meu ver, um exemplo de ciclo. Os Grão-Capitães: uma sequência de contos (1976), de Jorge de Sena, são, como o próprio subtítulo da obra indica, uma sequência. Em Torga, os elementos constitutivos dos textos ou os «temas» – na acepção lata que aqui lhe damos – recorrem com variações de texto para texto. Em Seria, a relação entre alguns dos contos (por exemplo, «Homenagem ao Papagaio Verde», «As Ites e o Regulamento» e «A Grã-Canária», conto este estrategicamente usado como fecho da colectânea) aponta para uma concatenação feita em parte com base na estrutura de aprendizagem, pois os personagens autodiegéticos desses contos podem ser vistos (e a isso nos convida e encoraja Seria, acentuando no prefácio o seu carácter autobiográfico) como momentos sucessivos na sua Bildung.

Acentuando sempre a fluidez do género em epígrafe, uma fluidez que convém sobretudo frisar, dada a já reconhecida participação subjectiva do leitor na «elaboração» do ciclo ou sequência (rótulos que essa «elaboração» largamente terá de detem-finar e justificar), poderíamos mencionar, como exemplo duma obra de carácter intermediário entre o ciclo e a sequência, a colectânea de Luís Bemardo Honwana, Nós Matámos o Cão Tinhoso (1964). Por um lado, a obra reflecte elementos do Bildungsroman. A personagem do menino Ginho, do primeiro e conto titular, recorre, já como pré-adolescente, em «Papá, Cobra e Eu» (quinto dos sete contos que integram a obra). Poder-se-ia arguir, com menos certeza embora, que essa mesma personagem também figura nos textos «Inventário de Imóveis e Jacentes» (segundo conto) e «As Mãos dos Pretos» (sexto). Estes contos, porém, e os restantes já não se apoiam tanto na estrutura de aprendizagem – mas sim na recorrência, entre outros, de personagens compósitos, cenários, temas e imagens. A obra de Honwana poderia pois considerar-se uma obra híbrida, intermediária entre a sequência e o ciclo. Onde o ciclo (ideal) apresenta uma configuração circular e a sequência (ideal) uma configuração linear, a colectânea híbrida, unindo essas duas configurações, aproxima-se a uma espiral, reflectindo simultaneamente a reciclagem de elementos e uma mais ou menos pronunciada tendência para a linearidade. A distinção aqui proposta e os exemplos ilustrativos são, no entanto, susceptíveis de interpretações radicalmente diferentes. A isso se prestam os ciclos e sequências (3).

(Sapa)teia Americana apresenta um pouco esse carácter de hibridismo genérico. É um ciclo pela recorrência, com numerosas variações, de «temas» – uma vez mais num sentido muito lato do termo; e constitui uma sequência pela estrutura de aprendizagem que informa vários contos e, poder-se-ia dizer, subjaz à experiência da imigração – lematizada e dramatizada em todos estes textos e encarada pelo Autor em parte como processo constante de (re)aprendizagem. (Sapa)teia Americana é ainda, e sobretudo, um ciclo/sequência regional, isto é, uma colectânea integrada em parte pelo seu cenário espácio-temporal: o «mundinho imenso da LUSAIândia», como se indica no pórtico da obra, ou, como o Autor lhe chama em outra parte, «a décima ilha». Essa ilha, esse mundinho imenso – em qualquer dos nomes que o tecedor de palavras Onésimo Teotónio Almeida lhe tem dado – partilha, simultaneamente, dum carácter mítico-literário (irmanando-se assim a mítico-literárias regiões como «Dublin, cidade da parálise» de Joyce, ao «Winesburg, Ohio» de Anderson, às «Pastagens do Céu» de Steinbeck, à «Montanha» de Torga e à «Luuanda» de Luandino Vieira) e dum tempo e lugar históricos: as «comunidades» portugueses dos Estados Unidos e, neste caso, em parte também do Canadá e das Bermudas. Pelo cenário histórico-geográfico (a imigração portuguesa para a América do Norte, com especial incidência nas últimas três ou quatro décadas), (Sapa)teia Americana filia-se na tradição literária de ciclos e sequências, que toma uma época e uma comunidade como elementos unificadores: U.S.A. (1938), de John dos Passos, que focaliza aspectos da vida americana das primeiras três décadas do século XX; Uncle Tom's children (1938), de Richard Wright, que trata a discriminação dos negros no período anterior à Segunda Grande Guerra; Novos Contos da Montanha, que trata populações rurais em Trás-os-Montes; e Os Grão-Capitães, cujo foco geográficohistórico é o Portugal salazarista de 1928 a 1961.

O estudo de J. Gerald Kennedy, «Toward a poetics of lhe short story cycle» (4), proporcionar-nosá um esquema, que modificaremos quando seja necessário, para a presente leitura de (Sapa)teia Americana, e para futuras leituras cíclico-sequenciais que espero a presente proposta suscite. Privilegiar-se-ão, e nessa ordem, os paratextos (dedicatória, epígrafe, pórtico e título) da colectânea e – a explicar oportunamente – a estrutura textual, os sinais intratextuais (os sinais topical, espácio-temporal e de personagem) e a estrutura profunda da colectânea.

«A meus pais, que de e/imigração entendem mais do que eu», reza a dedicatória. E curioso que numa colectânea em que o narrador ante algumas personagens assume implícita, e não poucas vezes explícita e activamente, o papel de «professor», o Autor reconheça e afirme, relativamente à e/imigração, a validade e até superioridade dum saber de experiências feito. Mais significativo ainda é a chamada de atenção, mediante o verbo «entender», para o carácter de aprendizagem inerente à experiência e/imigrante. A e/imigração como processo de aprendizagem é uma das principais constantes de (Sapa)teia, manifestando-se a nível subgenérico (os vários contos de aprendizagem), de cenários e temas (começando com o primeiro conto, que se passa numa escola mas que aponta para as experiências fora da sala de aula como a grande sala de aula do e/imigrante), e de ideologia (aprendizagem negativa, a desse primeiro conto e discutivelmente de quase todos os outros).

Extraída do poema «A Caminho do Corvo» da Sapateia Açoriana, de Vitorino Nemésio, a epígrafe que encabeça a colectânea onesimiana – e que adquire um relevo especial por ser a única epígrafe em toda a obra – constitui um olhar retrospectivo para a dedicatória (e para o título da obra, também intertextualmente nemesiano) e um apontar prospectivo para o conteúdo temático-ideológico da colectânea. Da espuma do mar (dos Açores) sai gente, iniciando o verbo «sair» esse vaivém já explícito no bipartido «e/imigrante» da dedicatória e cujo polo oposto ou «voltar» está tematizado no «Torna-Viagem», representando os outros contos, com especial destaque para «Trilogia Breve», essa a-espacialidade existencial inerente à experiência e/imigrante dramatizada nestes contos. Mas os versos nemesianos apontam, também, para o mito de Urano, tal como é citado por Hesíodo na Teogonia: da espuma produzida pelos órgãos genitais de Urano, excisos por seu filho Cronos como vingança contra a crueldade de um pai que o encerrara a ele e sua mãe Geia nas profundezas do Tártaro, emergirá Afrodite. Promessa de amor a que subjaz a injustiça, a crueldade, a castração, a possibilidade de emersão e/ou imersão, o chegar a porto seguro ou o vogar desencontrado nos mares do lá ou cá – ou desse bipartido, existencial cá/lá.

No apropriadamente intitulado pórtico, «encaixe» das intenções do Autor, destacam-se, pela sua presença ou ausência, vários elementos que continuarei a designar de orientação prospectiva, pois fornecem sugestões ou explicações que, para o leitor, os futuros textos confirmarão ou negarão. O rótulo «estória» não deixa de ser significativo; constitui um sinal genérico mas, ao contrário do que poderá parecer, nada tem que ver com modéstia autoral: estórias são, também, as de Guimarães Rosa. Primeiras Estórias, por exemplo, constituem um ciclo/sequência de contos rurais que, tal como (Sapa)teia Americana, privilegia a estrutura iniciática em vários dos seus textos e no seu conjunto global («Os cimos,» última estória, como reiteração/ prolongamento/ encerramento-em-aberto da primeira estória do volume, «As margens da alegria»); a estreita relação entre as personagens e o meio ambiente; os temas da solidão; o da insuficiência verbal como metáfora para outras insuficiências; a teia linguística e estrutural de que se compõe a colectânea. A polémica atitude vis-à-vis as «modas literárias vigentes», sarcasticamente inscrita numa linguagem semiótica reminiscente de semelhantes atitudes por parte de Torga (no Diário) constitui, em parte, uma implícita defesa da temática referencial. Essa defesa é reacentuada e reforçada pela lista (parcial) de temas que orientam a obra (todos eles sublinhando o empírico e o existencial): osmose linguística, aculturação, choque de mundividências, identidade, conflitos sociais, preconceitos intergrupais. Conspícuo, pela sua ausência – neste entreabrir de portas para o que se vai ler e neste convite a como ler – é o narratário de cá. Porquê? Uma possível resposta seria que, como sugere a dedicatória, o e/imigrante, esse, «entende» a realidade fantástica que ele próprio configura. Não precisa, portanto, de explicação, de figurar como narratário de estórias sobre o que ele/ela entende «melhor» do que o Autor. Outras interpretações, porém, são possíveis: omissão do narratário e/imigrante por deslize (freudiano ou não) da parte do Autor; ou omissão tematicamente expressiva: como toda a gente sabe, as aranhas e/imigrantes (numa das acepções que o polissérnico título permite) farão teias, darão pontos e coserão meias – mas normalmente não lêem livros de contos.

A polissemia do título da colectânea onesimiana já foi acentuada, entre outros, num estudo inédito de Teresa Martins Marques, «A Ilha L(USA)Iândia»: a evocação nemesiana de festa euforizada e disforizada pelo «engenhoso processo parentético» que simulta ricamente remete para «sapar» (trabalhar) e enredamento numa teia. Marques reconhece duas estratégias sugeridas pelo título: a da aranha, que com sua teia pretende conseguir alimento, e a da mosca que «tenta desenredar a teia em trabalho de sapa, um pouco às cegas, tentando sobreviver». O título, porém, é quase inesgotável. E, como sugerimos acima e como o fora para Emily Dickinson, é também metaficcional, alusivo à própria confecção artística e, na minha leitura, genérica. Não terá sido por casualidade que Miguel Torga também intitulou um dos contos de Novos Contos da Montanha «Teia de Aranha», numa óbvia alusão à urdidura criminosa do personagem central, mas aplicável simultaneamente à sua (torguiana) teia textual. Convém, no entanto, insistirmos em outras potencialidades metafóricas dessa aranha implícita no título: a relação da aranha com o mundo das trevas e da luz e a presença da aranha na mitologia e no folclore. Adaptável a qualquer ambiente mas habitante de lugares escuros e escusos (porões e cavernas, águas-furtadas e retretes), cleptoparasita e colaboradora, entrapadora e entrapada, inspiradora de admiração e de fobias, a aranha deriva o seu nome da jovem tecedeira grega que desafiou e venceu Atena. Este mito que Ovídio cantou – mas que Stith-Thomson considera de origem popular – tem a sua contrapartida na cultura dos navajos: a lenda da Mulher Aranha que ensinou aos índios a arte de tecer. Numa lenda cristã, a aranha, tapando com a sua teia a boca duma caverna, salvou Jesus dos exércitos de Herodes. A dança italiana tarantella supostamente teve a sua origem na Itália do século XIV – com base na superstição de que a inofensiva Lycosa tarentula era extremamente venenosa e de que a doença por ela causada só era curável com vigoroso bailar ao som duma música especial. Quando, no pórtico, Onésimo Teotónio Almeida se refere ao «acto de contar (ou cantar) estas (sapa)teias» está a referir-se, portanto, a muito mais do que à sapateia (de sapatear) açoriana, como, aliás, Vitorino Nemésio já o fizera no livro que serve de pedra de toque intertextual ao título onesimiano. No contexto específico da e/imigração, porém – que é o de todos estes contos – o polissémico (sapa)tear anunciado no título e reiterado no pórtico serve para anunciar uma enon-ne série de possibilidades ideológicas, temáticas, simbólicas e imagísticas que se desenvolverão nos contos individuais.

O título da obra instaura, assim, um estratagema ortográfico de longo alcance semântico e estilístico, emblemático já da personalidade literária de Onésimo Teotónio Almeida: o estratégico e por vezes irónico parênteses que, com uma extraordinária economia verbal, semanticamente desencadeia um fenómeno equiparável a uma reacção em cadeia. Este processo de des/resemantização repete-se em cinco (ou vinte e cinco por cento) dos títulos dos contos individuais (e numerosas vezes no próprio corpo deles). Uma breve chamada de atenção para algumas das mais óbvias potencialidades semânticas e estruturais desses títulos ajudar-nos-á a apreciar a viabilidade da técnica do parênteses na economia global do ciclo/sequência onesimiano. Em ordem cronológica, «(Sapa)teia Quotidiana», o terceiro conto, remete, como antes mencionei, para o título geral, particularizando-o e sugerindo a noção de tema e variações já identificada como frequente elemento estrutural de cicios/sequências. «A Amér(d)ica do Mariano» é exactamente o décimo conto, portanto o centro numérico da colectânea. A palavra des/re-semantizada é«América». A centralidade do conto – qual cubo de uma roda de que os anteriores e posteriores fossem raios, ou casulo de que os outros contos fossem o resto da irradiante teia – faz projectar, retrospectiva e prospectivamente, o valor ideológico inerente à escatologização (na acepção etimologicamente proveniente de skatos) da pátria do «sonho americano», o que uma leitura cuidadosa deste conto (e de todos os outros, em graus diferentes) confirma. Os títulos de contos individuais apresentando vocábulos des/re-semantizados acumulam-se no fim da colectânea: «Contra-(o)-Tempo», «Vingança E(u)rótica» e «O(s) Adriano(s)». Uma vez mais, e sem nos alongarmos em explicações de textos a que teremos que voltar, o título do primeiro deste trio de contos implica-os a todos: e/imigrar é remar contra o tempo (dir-se-ia ser esta a séria dimensão-mensagem que a manipulação linguística desencadeia) mas é, também, um contratempo – constituindo este segundo um parênteses sardónico aplicável à personagem do conto em epígrafe, que e/imigra por razões muito menos que trágicas. Concentrado-nos, por enquanto, apenas no título, o parêntesis da «A Visão E(u)rótica» produz um leque semântico no centro do qual está o «eu» bipartido (em «E» e «(u)», este apertado entre as mandíbulas dum parêntesis) pelo encontro patético-erótico que, por sua vez, particulariza e reintroduz, naquilo que possui de e(u)ro-vingança na mulher americana contra o (para o e/imi~ grante) castrante homem americano, uma profunda relação intratextual com esse profundíssimo conto que é «O Dever de Homem». Este tema – lembremo-nos de Urano da epígrafé nemesiana – do «castrado» que se vinga «castrando» é, num palco de lá, o tema central do conto contíguo a «O Dever de Homem»: «Toma Viagem», onde o torna-Viagem «castra» com a bola, vingando-se do seu antigo «castrador», que com bola o «castrara» – sendo a imagística da bola e do futebol uma das mais frequentes na colectânea. Seria uma especial injustiça reduzir «O(s) Adriano(s)», conto com que se encerra (e se mantém em aberto ou prolonga, como veremos oportunamente) a colectânea, conto esse que tem recebido uma merecida mas desproporcional atenção crítica, com uns escassos comentários ao título. Acentuemos, porém – que é o que nos interessa de momento – algumas das suas mais óbvias relações enquanto título aparentado com a técnica parentética a/enunciada no título global deste ciclo/sequência. A sua singularidade («O Adriano») sugere a individualidade, o carácter independente de cada peça que perfaz a colectânea, singularidade essa que é posta em causa precisamente pela sua pluralidade («Os Adrianos»), pois de certo modo todos os personagens que povoam todos estes contos são o(s) Adriano(s) que, por sua vez, também os simboliza a todos. Note-se, por exemplo, que o nome da personagem partilha as últimas quatro letras do nome com o Mariano (Mar-iano) do conto central, esse tal onde se punha parenteticamente em causa o «sonho americano» – sonho que o(s) Adriano(s), personagem que é simultaneamente encarnação da fragmentação causada pela e/imigração e caleidoscópio de potencialidades inerentes à e/imigração, irá confirmar ou negar (mas isso só na mente do leitor, a quem o narrador, concluindo o ciclo/sequência, se dirige). Que o Autor não tivesse jogado com o potencial inerente a Mariano – Mar(i)ano – pertence ao domínio da especulação.

Regressando ao esquema de J. Gerald Kennedy, a estrutura textual dum ciclo apresenta vários tipos de configuração na disposição dos contos que o perfazem, entre eles progressão, combinação e justaposição. Esses termos, como Kennedy reconhece, constituem tão-somente um ponto de partida e a sua utilidade está sempre dependente da competência do leitor, da sua – acrescentaria eu – destreza como co-urdidor das malhas do texto que, com o autor, construirá ou em que, sem o autor, se enredará. Ao falar de progressão, Kennedy exemplifica com Dubliners, onde se verifica, por parte das personagens joyceanas, um avanço que principia na infância, passa pela adolescência e avança até à maturidade. Simultaneamente com a progressão, dão-se, em graus diferentes de ciclo para ciclo, combinações de contos (gravitando vários deles, por exemplo, para um centro temático ou confluência de enredos e/ou imagística – para mencionar apenas duas das numerosas possibilidades – que, nalguns casos, poderá dar origem a um ou vários mini-ciclos dentro do ciclo) ou justaposições (em que a contiguidade ou não de determinados contos pode atingir de per si expressividade temática e/ou ideológica). Estas categorias alusivas ao papel transcendental que a disposição dos contos poderá representar – dependente ou independentemente de qualquer intencionalidade autoral, acentue-se – é de bastante utilidade como um dos vários ângulos desta proposta de abordagem a (Sapa)teia Americana.

Em termos de disposição espacial, o primeiro e último conto dum ciclo assumem sempre um estatuto privilegiado: o último porque, para parafrasear o célebre poema wordsworthiano, «The Solitary Reaper», é o que paira à tona da memória depois que o canto/conto se esvai; o primeiro porque, tal como o primeiro andamento duma sinfonia, é o que nos propõe os «temas» para desenvolvimento posterior. Se por um lado o primeiro conto dum ciclo/sequência é o mais distante no tempo e no espaço, é por outro lado, por insistentemente batido e re-batido ao longo do percurso da obra, o que mais de perto nos acompanha. Não só por ser um conto de abertura, pois, é «7 de Outubro no Lorige» um conto-chave. E não só por ser um extraordinário conto, é «O(s) Adriano(s)» significativo. Identificar, porém, todos os elementos que o primeiro conto «propõe» para desenvolvimento não é minha intenção neste momento (a esse texto regressarei ao tratar outras rubricas do esquema proposto acima). Aqui quero apenas salientar dois elementos constitutivos desse conto – a estrutura iniciática e a aprendizagem negativa – e tentar detectar, para fins não exaustivos mas meramente exemplificativos, como esses elementos progridem ao longo da colectânea até ao último conto, ele também iniciático, num sentido lato do termo, mas de aprendizagem mais ambígua.

Emigrar é também ir para (e sair da) escola, pois nestes contos cada «tese» implica quase sempre a sua «antítese». Assim o sugere o conto iniciático «7 de Outubro no Longe», que inicia, para variação ao longo da colectânea, uma estrutura dramática (uma experiência de aprendizagem da parte de, neste caso, dois meninos-um-só) com um resultado (aprendizagem negativa) que – depois de passar por uma série de variantes em outros contos iniciáticos ou em que se incluem iniciações e resultados mistos – vai (re)aparecer para tratamento especial no último conto de um menino-vários-meninos, «O(s) Adriano(s)». Obviamente de aprendizagem, de várias maneiras e em vários graus, são também «(Sapa)teia Quotidiana», «Postal de Boas Festas», «Burro, Eu!», «César Augusto Era Português?», «Contra-(o)-Tempo» e a «Vingança E(u)rótica».

Não seria exagero ver o jovem de 17 anos protagonista de «(Sapa)teia Quotidiana como uma projecção – ou melhor, um resultado ou efeito – da experiência negativa desses dois meninos «marginalizados» no parque de estacionamento da escola. Porém, como é o caso na música, uma variação é mais do que uma repetição. Este conto de aprendizagem negativa adquire, relativamente ao primeiro, matizes enriquecedores e complementares. A «(efi)ciência» (iffy ou duvidosa ciência) do sistema que ela representa e à personalidade da própria Mrs. Travers (onomástica significativa, pois aponta para o ser fragmentado que ela é: traverse pode linguística e culturalmente sugerir a que tentou uma travessia mas não a completou, tomando-se assim uma travesty), vem agora unir-se, em «(Sapa)teia Quotídiana», a intransponível bipolaridade já implícita no título: (Sapa)teia (de lá), Americana (de cá). Ao «lá» pertence, desta vez, a negatividade da aprendizagem do personagem António, negatividade essa simbolizada na figura de Maria José – que nega a (potencial mas irrealizada) positividade encarnada no conselho do «airiche [de cá] em vésperas de reforma» (pág. 45).

«O Postal de Boas Festas» – conto digno de figurar numa antologia de contos de Natal – não é susceptível de ser considerado apenas como conto iniciático. Pode, no entanto, ser lido em parte como iniciático. Para o menino, constitui uma epifania reminiscente, no que possui de inesperada prenda de Natal, do final do conto «O Natal do Clandestino», de José Rodrigues Miguéis. Mas sêlo-á para os pais, involuntariamente apanhados nessa Torre de Babel que o cenário sugere, inocentes moscas enredadas pela primeira vez na teia do «Natal das bísinas», prenúncio de outras teias? Sê-lo-á, sobretudo, para esse Santa Claus/Pai Natal que fala português com sotaque micaelense? A isso regressará o Autor e regressaremos nós. Eis algumas perguntas que esse «postal» – presumivelmente endereçado ao narratário de lá – suscita.

«Burro, Eu!» inverte a aprendizagem: desta vez é o narrador-professor-universitário que «leva» uma aprendizagem negativa da parte do imigrante. Mas é ele, o narrador, que sairá para a luz do dia, deixando a «aranha» e/imigrante no escuro/s do seu subterrâneo (a este e outros espaços regressaremos) saboreando a sua fácil mas pateticamente inútil vitória. Desta irónica aprendizagem positiva saltamos – com o narrador/professor universitário – para «César Augusto Era Português?». Como que desforrando-se da lição que recebera da personagem de «Buffo, Eu!», o narrador vem dar uma importante (e negativa) lição aos personagens deste conto. Ao contrário de satirizar certos arroubos chauvinistas a la Pedra de Digliton, como fez o Autor em Ah! Mónim dum Corisco!... (5), aqui a piada – como todas as situações piadísticas comuns a vários destes contos – tem uma dimensão séria: o patético desejo de seres (marginalizados sobretudo pela falta de instrução) defenderem desesperamente tudo (e que neste caso o símbolo seja uma estátua de César Augusto localizada num campus atinge uma hiperbólica ironia) que lhes traga um pouco de dignidade.

Dignidade é o que falta a esse símbolo grotesco do oportunismo e hipocrisia políticos, fruto podre da Abrilândia, retratado em «Contra-(o)-Tempo». No entanto, é sobretudo à esposa que cabe o negativo da aprendizagem. Vítima passiva e silenciosa do marido, essa figura, baseada em parte na Luísa do célebre poema de António Gedeão que serve de pedra de toque intertextual ao conto onesimiano, é uma das mais notáveis na galeria de personagens inesquecíveis desta colectânea e que oportunamente comentaremos. Seguindo ainda a estrutura de aprendizagem, passamos para esse impressionante conto em que o narrador nos dá nova prova da insuficiência do seu saber académico na escola do ser-se e/imigrante. Este, o protagonista da vingança e(u)rótica, está – tal como os meninos do «7 de Outubro no Longe» – no primeiro dia da escola da e/imigração (o narrador refere-se a ele como «imigrante fresquinho»), pois a experiência dramatizada e tematizada no conto corresponde ao que os psicólogos sociais têm chamado a fase de espectador (posterior à fase preliminar e anterior às fases de progressiva participação, de choque cultural, de adaptação, de re-entrada ou torna-viagem, todas elas, excepto a penúltima, representadas nesta colectânea de Onésimo Teotónio Almeida). Razão terá tido o Autor para colocar em penúltimo lugar um conto que «antecipa» a vingativa bacanália mental de «O Dever de Homem», em que quase todos os «heróis» (e arrepia pensar na semelhança entre esta desenfreada sexualidade de botequim e o caso do Big Dan's (6) – num como que frenesim de tubarões da cópula mental ao qual nem algumas das próprias esposas escapam – verbalmente se traem traindo, se violam violando, se vitimizam vitimizando, se autoflagelam flagelando. Com ou sem implicações freudianas ou de outras psicologias profundas, é o conto mais profundamente triste de (Sapa)teia Americana. Serão repugnantes estes seres. Mas mais repugnantes são as circunstâncias – muitas delas dramatizadas nestes contos – que os compeliram à estranha catarse, à patética bacanália retributiva. Este conto merece muito mais atenção do que a que lhe podemos dar aqui. Mencionem-se mais alguns dos seus atractivos: por exemplo, a paródica intertextualidade, expressa na fala de um destes marinheiros do sexo da L(USA)lândia, com um dos episódios da Ilha dos Amores: «Assim que a vejo ali encoura, começo-me a despir a toda a pressa. Arrebentei com botões de camisa e tudo. Eu até nem tive tempo de tirar os peúgos!» (7). Quem não perceberá nisto um eco (e não é o único) do camoniano «Tal dos mancebos há que se arremessa, / Vestido assi e calçado (que, co a mora / De se despir, há medo que inda tarde) / A matar na água o fogo que nele arde» (Lus., IX, 73)? Acresce que a relação entre a impotência linguística – uma das constantes na caracterização de personagens de vários destes contos – realça e confere amplidão temática e simbólica à verbo-sexual vingança. Lembremo-nos de que uma das grandes frustrações do protagonista de «Vingança E(u)rótica» – uma frustração que, no contexto da cena, conota impotência e castração – também é expressa em termos linguísticos: «O que é que um homem há-de fazer? Ainda mesmo que eu dê de olhos também, de que é que serve, se depois ela se chega e eu não sei falar?» (pág. 166). Outro elemento que mereceria elaboração é o papel que a tradição do desafio representa no «ataque» às mulheres. Essa tradução/trasladação de tradições da terra da Sapateia para a terra Americana, por vezes com dramáticas ou até trágicas consequências, é um «tema» repetidamente variado ao longo desta colectânea.

Para além dos contos iniciáticos ou de aprendizagem que apresentam uma disposição sobretudo linear ao longo da obra, é possível identificar – uma vez mais a título de exemplificação e não de esgotamento de possíveis categorias – os seguintes mini-ciclos dentro do global ciclo/sequência que é (Sapa)teia Americana: o mini-ciclo das datas significativas, o das aranhas-que-caçamaranhas e o linguístico. Estes mini-ciclos apresentam duas óbvias configurações: uma gravitação espacial/temática, uma gravitação temática/espacial. No primeiro caso, a justaposição ou contiguidade dos textos sublinha a sua semelhança temática (geralmente implícita no título) e a sequencialidade. No que chamei de gravitação temática/espacial, a descontinuidade ou não sequencialidade é que enfatiza o carácter cíclico da obra, isto é, traz novamente à baila um «tema» proposto antes. Em ambos estes casos – contiguidade e não contiguidade que, alternando uma com a outra, sugerem a espiral a que acima me referi – temos estratégias que sublinham as várias séries «temáticas» dum sistema (o ciclo/sequência global) que está dependente de vários recursos repetitivos. Acresce que a reiteração também serve os propósitos didácticos (sentido lato) do Autor quanto à emigração (a discutir mais tarde). Os miniciclos – em que se batem e rebatem assuntos e «ternas» já abordados de outros e semelhantes ângulos – constitui uma eficaz maneira de chamar a atenção para «a(s) tese(s)» que o Autor deseja defender. Como mostrou Susan Suleiman, no seu Authoritarian fictions (New York: Columbia University Press, 1983), o romance de tese – que, aliás, se apoia em grande parte em estruturas iniciáticas ou de aprendizagem (positiva e negativa) – é uma obra largamente reiterativa. Não querendo chamar didácticos ou autoritários (no sentido restrito desses termos) a estes contos, não hesito, por outro lado, em chamar a atenção para reiteradas ideias relativas à e/imigração inferíveis da leitura deles (e a desenvolver mais tarde).

Outro aspecto do ciclo/sequência é a maleabilidade dos seus textos componentes, os quais se prestam a vários tipos de agrupamento de acordo com a óptica privilegiada. O «7 de Outubro no Longe» aponta titularmente para a radical iniciação dos meninos para esse renascer no longe. Como já apontou George Monteiro, um elemento-chave do conto é o conhecimento, da parte do leitor, que na América as escolas começam em Setembro. A data do título aponta, pois, para o primeiro abalo dos meninos – o de ter que iniciar a sua saga e/imigrante mediante um flash-forward (experiência a que o próprio título do muito posterior «Contra-(o)-Tempo» virá a servir de eco). Porém, a relação mais mediata e imediata da portentosa experiência anunciada no título do primeiro conto é com o segundo: «Sexta-feira, a Santa». Neste caso trata-se de um outro tipo de viajar no tempo: des-sacralizá-lo. Um dos dias mais santos do calendário católico não só se profaniza mas comercializa (prenunciando assim a comercialização do outro pólo das datas sagradas: o nascimento de Jesus «comercializado» no conto «Postal de Boas-Festas»). A justaposição desses dois contos, portanto, não só constitui um mini-ciclo que mutuamente se complementa, mas fornece toda uma série de elementos que prenunciam outros contos – e desencadeiam todo um padrão imagístico que, como veremos, é crucial como elemento de coesão entre vários contos da colectânea. Refiro-me à imagística religiosa, sobretudo derivada da Paixão.

«Bísinas São Bísinas», o contíguo «O Pastor da Paróquia das Chagas», que é o quinto conto da colectânea, e «Dom McCollins e o Senador Williams» – sendo este último o décimo sexto conto – perfazem o mini-ciclo a que chamei o das aranhas-que-caçam-aranhas, alargando assim o já amplo campo semântico inerente ao título. Como há aranhas que vivem de outras aranhas – por exemplo, as aranhas-piratas – também há, nestes contos como na realidade empírica do e/imigrante, casos de económica antropofagia intragrupal. «Bísinas São Bísinas» é uma certeira caricatura da ganância desenfreada. O conto põe a circular um padrão imagístico, o do futebol, que se vai repercutir em outros contos. «O Pastor da Paróquia das Chagas» apresenta-nos uma galeria de padres e agregados reminiscentes das galerias de padres queirosianos, embora a sua teia seja mais económica do que propriamente sexual. Esse eco do anticlericalismo queirosiano serve, pelo menos para este leitor, para ironicamente acentuar a trasladação/tradução para a L(USA)lândia de instituições e práticas do velho jardim à beira-mar plantado e seus canteiros insulares. Da antropofagia intragrupal passa-se, inevitavelmente, à intergrupal em «Dom McCollins e o Senador Williams», onde a notória apatia política do e/imigrante português e o igualmente notório oportunismo político e económico do acolhedor país são caricaturizados. Aliás, este conto alimenta-se, intertextualmente, do episódio «Mr. John Hartmeinsh, candidato a Mayor», de Ah! Mónim dum Corisco!...

Um dos mais curiosos e frutíferos mini-ciclos – que, como os anteriormente mencionados, também é constituído por contos que gravitam para um centro temático e para uma disposição de contiguidade mas com profundas relações retrospectivas e prospectivas – é o linguístico. Perfazem este mini-ciclo os contos «O Imperfeito do Conjuntivo», «Era-lhe Pátria Aquela Língua» e «O Manifesto pela Libertação do Micaelense». Drama pungente e de premente actualidade na L(USA)lândia – e talvez mais ainda nessa parte dela que o Autor escreve com maiúscula do que na minúscula porção lusa dessa lândia – «O Imperfeito do Conjuntivo» remete-nos para a reivindicação, feita no pórtico, da «realidade empírica» versus a «realidade literária» simbolizada pela terminologia semiótica. Deste conto infere-se uma reivindicação semelhante: a renvindicação abstraível do dramático contraste entre o imperfeito do conjuntivo – com suas cláusulas contrárias à realidade e a ênfase que o professor dá ao «prazer do texto» – e a premente realidade humana da Luísa que sofreu o aborto voluntário. Este conto vem na esteira de «A Amér(d)ica do Mariano», onde esse personagem – paródia da lusovítima do destino, que passa a vida a carpir-se em vez de lhe fazer frente – joga com o futuro versus o imperfeito do conjuntivo. «Era-lhe Pátria Aquela Língua» é, simultaneamente, uma magistral paródia – começando, titularmente, por parodiar o pessoano «A minha pátria é a língua portuguesa» e o seniano «Eu sou eu mesmo a minha pátria. A pátria / de que escrevo é a língua em que por acaso de gerações/ nasci» – o conto é também, e sobretudo, um magistral retrato da busca do eu perdido algures numa linguística (e cultural, e existencial ... ) terra de ninguém, retrato esse que nada perde de sério por ser o conto também uma burlesca sátira da patética busca e/imigrante por tudo quanto cheire (ou soe) à santa terrinha, da por vezes grotesca imprensa l(USA)landesa e da impante e vácua retórica lusitana de café (apetece dizer, com Onésimo, de chàfé). Esse vácuo existencial encarnado no personagem de «Era~lhe Pátria» já tinha sido – com outro tom, embora – dramatizado em «Trilogia Breve», sobretudo no terceiro personagem, para quem «Era-lhe Pátria Aquela Língua» necessariamente remete. «O Manifesto pela Libertação do Micaelense», conquanto seja outra farsa digna de Ah! Mónim dum Corisco!..., não deixará de evocar o Santa Claus/Papai Natal que falava com um sotaque micaelense (tema tangencialmente abordado também em «Era-lhe Pátria Aquela Língua»). Em parte, é esse personagem que nos vem revisitar na pessoa deste judeu errante dos sotaques. (Seja-me permitido um parênteses para constatar, com base em conhecimento de causa, que o drama do personagem onesimiano só parecerá apenas burlesco a quem nunca sentiu na pele o aguilhão da discriminação linguística.) A impotente vingança do personagem – dramaticamente comunicada na «nota em testamento» que utiliza o alfabeto internacional – repercutir-se-á, de certo modo, nas vinganças, também essencialmente verbais, dos personagens do contíguo «O Dever de Homem» e do espacialmente distante mas temática e existencialmente próximo «Vingança E(u)rótica». A língua como arma com que se luta, se mata e se morre – sobretudo se morre – é, pois, o que este mini-ciclo, cujas ramificações na colectânea estes comentários exemplificativos estão longe de esgotar, em parte dramatiza.

No esquema de Kennedy, o sinal topical (subcategoria dos sinais intratextuais, que também incluem as subcategorias espácio-temporais e de personagem) está relacionado com, entre outros, as acções ou movimentos simbólicos e padrões imagísticos. Gostaria de focalizar apenas alguns dos mais óbvios e, a meu ver, produtivos sinais topicais desta colectânea: a viagem (e algumas das suas transformações); e os dois principais padrões imagísticos (e as suas principais metamorfoses ao longo de (Sapa)teia Americana): as imagens do desporto e as religiosas.

Nada há de surpreendente que num livro de contos sobre e/imigração a viagem adquira um estatuto relevante. Nesta colectânea, porém, o tradicional símbolo atinge uma inusitada polivalência. «Em vez de passaporte», título do pórtico, o Autor chama a atenção para uma viagem: a do leitor que vai embarcar na leitura de (Sapa)teia Americana. Poderíamos dizer que – como se tem afirmado relativamente a, entre tantas outras, as peregrinações de Dante e a viagem do Gama n'Os Lusíadas – que as viagens de (Sapa)teia Americana constituem também uma auto-referência à realização dos contos. Quanto a técnicas narrativas, o paralelo mais próximo das viagens dentro da(s) viagem(s) são as histórias imbutidas. Estas – que são comuns a quase todos os contos mas atingem uma intensidade máxima no estratégico «7 de Outubro no Longe» e em «(Sapa)teia Quotidiana», «Burro, Eu!» e «Vingança E(u)rótica» – mereceriam, só por si, uma monografia. Esse estudo revelaria, creio, profundas afinidades entre a arte de narrar nemesiana (por exemplo, Mau Tempo no Canal) e onesimiana.

Como os dois pólos geográficos do título implicam, para os personagens essa viagem não será apenas de ida – ou sequer de ida e volta. Será, se considerarmos esses personagens colectivamente, uma série de viagens concêntricas (no sentido espacial e extra-espacial do termo), que começa com a chegada dos dois meninos (e todas as chegadas de todas essas personagens provenientes de, entre outros lugares, Angola, Cabo Verde, São Miguel, Algarve, alguns deles tendo assumido parciais identidades resultantes de viagens dentro da viagem ... ) e ternimando com a(s) viagem(s) virtuais – essas de carácter existencial – do(s) Adriano(s) do último conto. Dos dezoito textos que medeiam entre o primeiro e o último da colectânea, quatro abrem – literalmente, pois refiro-me à primeira oração do texto – com uma clara alusão à principal viagem (a da partida para ou da chegada à América) e por vezes suas razões («Sexta-Feira, a Santa», «Postal de Boas-Festas», «Era-lhe Pátria Aquela Língua» e «Contra-(o)-Tempo»). Este número toma-se mais significativo ainda quando lhe acrescentarmos os exemplos de «O Dever de Homem», em cuja segunda oração se alude «ao Jorge, imigrante de fugir à guerra de África e do caos da universidade portuguesa» (pág. 12 1), e o do conto «O Imperfeito do Conjuntivo», em cuja segunda secção é apresentada a protagonista: «A Luísa viera das ilhas na bagagem dos pais bater à porta do desconhecido em cata de ventura no nome do futuro dos filhos» (pág. 91). Dois elementos são sobretudo notáveis na apresentação da personagem Luísa, ambos relacionados com a viagem: o carácter insólito dessa viagem (manifestado sobretudo no estranhamento do discurso em que a viagem é referida) e a subtil alusão ao «palácio da ventura» anteriano (dentro do qual, como ao fim da maioria das viagens dos personagens onesimianos, e desta Luísa em particular, está o nada). A enfatizar o pólo oposto do título da colectânea está o conto apropriadamente intitulado «Torna-Viagem», de cuja primeira oração fazem parte um «regresso temporário» e essa «viagem triunfal».

Seria trair esse conto não mencionar a multidimensionalidade dessa viagem. Por um lado, trata-se duma dramatização dum rito de passagem a que os psicólogos sociais chamam re-entrada: a e/imigração ao revés, o momento em que tradicionalmente (a ré-entrada é um sine qua non de autobiografias e/imigrantes, por exemplo) se vai determinar, entre outras coisas, o grau de afastamento da pátria de origem e o de aproximação da pátria acolhedora. O conto onesimiano não corresponde, porém, a essa expectativa: é sobretudo um saldar de contas com o passado, o que intertextualmente aproxima «Torna-Viagem» do conto torguiano «A Confissão» (Novos Contos da Montanha), em que um exilado inocente se vinga do verdadeiro criminoso já morto com uma bofetada; e talvez ainda mais da experiência do protagonista do «Regresso à Cúpula da Pena» (Léah e Outras Histórias), de José Rodrigues Miguéis, experiência essa que o narrador autodiegético desse conto caracteriza como «anseio de galgar o hiato do tempo». O personagem onesimiano – e aí se encontra uma das mais bem realizadas epifanias desta colectânea – consegue, simultaneamente com a doce vingança, recriar – numa experiência à qual nem falta a presença dum derrotado Jeová na figura do professor de ginástica – um regresso ao paraíso da infância. (De facto, poder-se-ia dizer que o personagem vem terminar o jogo iniciado na infância e interrompido pela brutal proibição do professor.) Mas esse paraíso reconquistado é, simultaneamente, um paraíso perdido – não só pela impossibilidade metafísica de o reter, como por uma razão muito mais prosaica: o torna-viagem vai tomar à L(USA)Iândia. No amplo contexto dessas duas grandes viagens principais – a da saída (evocada na epígrafe nemesiana, ela mesma tirada dum poema sobre uma viagem, «A Caminho do Corvo»), e a da re-entrada – as viagens a que chamo concêntricas (por ocorrerem dentro das principais) são, também centrífugas, afastando os protagonistas cada vez mais dum centro. Daí que sejam, nos casos mais obviamente simbólicos, viagens caracterizadas por uma absurda judeu-errância: a errância do tio José da Costa de «Trilogia Breve» que – «Regressado das ilhas pela segunda vez. Sim, regressado eram duas, pois a outra, a primeira de todas, fora vinda» (pág. 77) – vai tentando, mediante festas e futebóis, «viver aqui de longe o seu Portugal» (pág. 78) que perdeu sem encontrar uma pátria que o substituísse; a errância do ben-nucaelense de «Era-lhe Pátria Aquela Língua», em que o imperfeito do indicativo indica bem o gramatical/existencial já-não-serque-ainda-persiste dessa pátria-centro que ele, absurdo argonauta do velo de ouro, vai procurar por terras do Tio Sam e num café de literatos em Lisboa, of all places; a peregrinação do protagonista de «O Manifesto pela Libertação do Micaelense». E muito mais se poderia dizer, relativamente aos personagens, sobre viagem e viagens em (Sapa)teia Americana.

O segundo conto de (Sapa)teia Americana, «Sexta-Feira, a Santa» introduz um padrão imagístico de longo alcance metafórico e ideológico. Neste conto, a imagística da Paixão constitui uma tradução para o domínio profano – mais especificamente, económico – do discurso sagrado, com tudo o que isso implica, por parte do narrador, de irreverência perante o sagrado e reverência (sem abdicar da sátira) perante a experiência e/imigrante, a qual aponta para um renascer experiencial e, com esse renascer, uma transmutação ou interpenetração de valores. Como já vimos, pela alteração de datas simbólicas ou rituais «Sexta-Feira, a Santa» aparenta-se com o primeiro conto da colectânea. Prospectivamente, «Sexta-Feira» aponta para a «via-sacra de cinco estações» (pág. 45) (alusivas às cinco paragens para apanhar os companheiros de fábrica) dessa personagem de «(Sapa)teia Quotidiana» que – numa reiterada insistência em imagística sagrada inicia o seu dia de trabalho na fábrica («templo de Mammon», como certeiramente lhe chama George Monteiro) com um rito de purificação, termo esse alusivo à cerimónia que na missa antecede a ablução. O padrão imagístico em epígrafe, em irónica justaposição com a temática capitalista, é nova e oportunamente evocado no título de o «Pastor da Paróquia das Chagas», pastor esse cujo lema de vida pastoral era «requiescat in pace, mas vivo, com saúde, e uns dinheirinhos» (pág. 57). Numa alusão ao título do mesmo conto, o narrador – tocando o extremo da irreverência no tratamento da imagística da Paixão – classifica o desgosto do Father Ferera em não poder celebrar missa em I(USA)landês como «a sexta chaga» (pág. 61). O irónico «Natal das bísinas», do conto «Postal de Boas-Festas», os cozinheiros em «Burro, Eu!» que, suspeita-se, não servem carne à sexta-feira por serem «católicos apostólicos portugueses» (pág. 70) e a quinta-feira santa como cenário temporal de «Vingança E(u)rótica» constituem variações dessa justaposição metafórica e ideológica do sagrado e profano, a qual talvez atinja o cume da (blasfema) ironia no conto «A Amé(r)dica do Mariano». Da personagem titular diz o narrador: «Foi uma tragédia o calvário do visto. Caiu três vezes multiplicadas por três, mais três e por mais outras três. Sem verónica» (pág. 87). Dada esta imagística e as já comentadas implicações do título do conto, poder-se-ia afirmar que nele, de certo modo, as duas acepções de «escatologia» se tocam.

O segundo mais prolífero padrão imagístico em (Sapa)teia Americana é o do futebol constante tematizada, simbolizada e dramatizada em vários contos. A primeira imagem futebolística é a expressão «pela lateral» (pág. 27), usada no pórtico. Em «Bísinas São Bísinas», a imagística do futebol é utilizada como irónica metáfora para as práticas desse picaresco comerciante da L(USA)lândia que vende de tudo e tudo (todo se) vende. Mediante um amontoado de (metafórica) mercadoria disposta em apropriada prateleira, o narrador converte – num lance irónico-humorístico que não destoaria se se trans-pusesse para as páginas d'A Relíquia – a loja do sr. Isaías, de profético nome, em Estádio da Luz de que as imagens dos santos são «claque piadosa». Esta justaposição do futubolístico/sagrado/mercantil, desnecessário é dizê-lo, funciona não só como elemento de coesão entre elementos semanticamente díspares, mas de ligação e integração de vários contos, nalguns casos modificando apreciavelmente a leitura de determinada passagem. Por exemplo, depois desta fusão entre futebol, santos e comércio é difícil não reagir jocosamente perante essa afirmação, feita pelo narrador de «O Pastor da Paróquia das Chagas», que o padre Raposo (de onomástica não menos significativa por ser transparente), «às escondidas do pastor, organizava encontros de juventude com futebol e reunião no fim» (pág. 58; sublinhado meu). Em «Burro, Eu! », o narrador – metendo-se, como frequentemente se mete, na pele do personagem central – refere-se aos três quadros da aula como sendo «da largura duma baliza de futebol» (pág. 69). Em «O(s) Adriano(s)», numa irreverência próxima da que o narrador demonstra em «Bísinas São Bísinas», o Adriano recorre à imagística do futebol para aludir às consabidas rivalidades entre terceirenses e micaelenses: «Parece que o Espírito Santo joga pela Terceira, e o Santo Cristo por S. Miguel» (pág. 175). E em «Torna-Viagem», porém, que a imagística do futebol atinge – dramática, simbólica e intertextualmente – a sua dimensão máxima em (Sapa)teia Americana. Como apontei acima, o regresso do protagonista sobretudo o momento climático do conto – pode ser lido como momentânea reconquista do paraíso da infância simultaneamente com a vingança contra a figura tirânica do professor, que faz de Jeová. A esta leitura nos encoraja o Autor que, para além da indubitável epifania que me parece um dos pontos culminantes desta colectânea, também não deixa de parodiar a rebatida busca do eu perdido (que na poesia de Pessoa, para apontar o exemplo mais óbvio, atinge proporções quase autoparódicas). Na seguinte passagem prenhe de imagens eróticas, o torna-viagem recapta um momento do tempo perdido da infância/adolescência:

Que éden!... Não resistiu a rebolar-se naquele veludo, a embrulhar-se na bola, levantar-se, atirá-la ao ar, lançar-se em voo feito guarda-redes e cair abraçado àquela noiva no colchão verde de núpcias beijando-a e lançando-a de novo ao ar e voltando a correr e a baliza ao fundo, e um chuto para o golo, para aquelas redes que se iam balouçar com o embate e amortecer aquele disparo poderoso, másculo, viril, vulva enorme onde ele iria também entrar voando e espasmar-se contra as redes. (pág. 137)

Resposta futebolizada/sexualizada à assexual e não-denominacional bola pessoana de «Chuva Oblícua»? Pode não ser. É mais certo que seja – com que intenções ou funções, cada leitor o determinará por si e para si – um caso de óbvia intertextualidade com os senianos Génesis (1982) e «Homenagem ao Papagaio Verde», d'Os Grão-Capitães. Em «Paraíso Perdido» – primeiro desses dois contos juvenis que perfazem Génesis – temos Adão e Eva «rebola[ndo] nas folhas amarelecidas» e a simbólica vingança contra o tirano Jeová pela revelação do seu impotente desejo sexual por Eva. Em «Homenagem», temos o pontapé ao baixo-ventre por parte do menino contra o pai – que abusara da mãe sexual e psicologicamente. Não será acidental, portanto, o facto de Seria utilizar, como uma das epígrafes a Os Grão-Capitães, a passagem (que Sena utiliza novamente como epígrafe ao conto «Capangala não Responde», da mesma colectânea) citada na Teogonia de Hesíodo referente à castração de Urano por seu filho, história essa que é evocada, como vimos, nos versos nemesianos que Onésimo Teotónio Almeida escolheu para epígrafe de (Sapa)teia Americana. Desnecessário será dizer que a imagística do jogo de futebol – tal como as da teia e da aranha – tem implicações metaficcionais, com o leitor fazendo de «claque» (mas também árbitro, se para isso tiver disposição) ante o jogo ficcional do Autor.

Esperar-se-ia que num ciclo/sequência regional o tratamento do espaço adquirisse especial relevo. E assim é. Sem me espraiar numa longa discussão a que os termos «L(USA)lândia» e «décima ilha» convidam, direi que a alegorização e simbolização do espaço – com suas variações de conto para conto ao longo da colectânea – bifurcam-se em duas direcções distintas mas complementares implícitas já no feliz oxímoro do pórtico: o mundinho imenso da LUSAlândia. Essa imensidão é não só inerente ao país acolhedor (ampliada pela adição do Canadá e das Bermudas como cenários parciais de alguns contos) mas sugerida pela geografia das grandes viagens realizadas por alguns dos personagens a que já aludi. Esse mundo imenso, porém, é constantemente negado, reduzido a proporções concêntricas, dir-se-ia de caixinhas chinesas de que a L(USA)lândia – já uma pequenina caixa dentro doutra caixa muito maior – seria a maior ou exterior e os espaços cada vez menores (fábricas, a cave duma universidade, um botequim de Riverville, uma casa de banho desse botequim ... ) a sua (da L(USA)Iândia) mis-en-abyme. Os dois extremos dessa imensidão/pequenez já estão embrionicamente patentes – como seria, nesta altura, de esperar – em «7 de Outubro no Longe»: a lonjura titular inerente aos mais diversos lugares de proveniência dos e/imigrantes e ao «mundo imenso nas pupilas meio escondidas nas pálpebras medrosas e envergonhadas» (pág. 32) dos meninos, por um lado, e por outro a extrema redução espacial encapsulada na antonímica metaforização dos mesmos meninos como tímidos búzios na sua concha.

A já célebre definição de L(USA)Iândia é concebida pelo Autor em termos espaciais de longo alcance metafórico para a leitura destes contos de (Sapa)teia Americana: «uma porção de Portugal rodeada de América por todos os lados.» (8) Na experiência dos personagens destes contos, «rodeada» é sinónimo de «sitiada». São tão raras nestes contos as incursões no mundo extral(USA)landês como são frequentes as viagens ao Portugal de que a L(USA)lândia faz parte. São sintomáticas e simbólicas dessa realidade geográfico-existencial as experiências do protagonista de «Bísinas São Bísinas»: depois das menos que ousadas férias num Havai obviamente desl(USA)landizado, agora só viaja aos Açores com uma esporádica viagem de férias à Flórida. Dum ponto de vista do uso metafórico do espaço, porém, são sobretudo dramáticos e simbólicos os cenários em que a L(USA)lândia e a América se tocam sem tocarem. É este o caso dos três contos contíguos em que os cenários são parcialmente o campus universitário mas o local ocupado pelo e/imigrante, é a cave («Burro, Eu!») e o exterior da universidade/o lugar à margem («Trilogia Breve» e «César Augusto Era Português?»). Sítios simbólicos da trasladação da pátria para o novo mundo são os vários cafés (num caso, de mobiliário de aspecto português), redutos sobretudo de homens, em vários contos. Alusivo ao título da colectânea (por ser reduto de aranhas, tal como a cave do conto já mencionado) é a casa de banho (sítio concêntrico do já concêntrico botequim, como acima se fez notar) que em parte serve de cenário à n(ós)eurótica vingança de «O Dever de Homem» e a lavandaria em que tem lugar a e(u)ro-vingança de «Vingança E(u)rótica». A dimensão espacial e metafórica do oxímoro preambular é conclusivamente trazida à baila numa simultânea alusão a vários dos elementos deste ciclo/sequênciajá tratados acima: «aquele mundinho das Chagas do Senhor» («O Pastor da Paróquia das Chagas», pág. 60). Numa cidade-símbolo da L(USA)lândia – Provincetown – Onésimo, Teotónio Almeida resume o carácter marginal do espaço l(USA)landês (aproveitando-se, em parte, do facto de essa cidade ser também reduto de outros marginais da sociedade americana: os homossexuais) para sugerir, mediante o prolífero uso do espaço e do sinal de personagem, duas das principais – e contraditórias, e complementares – atitudes por parte do e/imigrante relativamente à pátria que abandonou mas trouxe consigo: o manguito de desprezo configurado na geografia do cabo e a simbólica viagem de rendição emocional por parte desse Velho de P-Town (que, pronunciada de acordo com essa grafia, pode significar «cidade do mijo» ou «mijadouro») que, cá, era cego e, lá, era até capaz de «ver» o futuro.

Que uma colectânea de vinte contos (género que, como é consabido, não é necessariamente dos que mais se prestam à criação de memoráveis personagens), com uma extensão média de 7,6 páginas, contenha não apenas esse Velho de P-Town mas várias personagens memoráveis, constitui um claro indício da sua qualidade literária. É impossível, mais ainda que nos casos analisados, fazer justiça à rubrica «sinal de personagem» em (Sapa)teia Americana. Creio útil, no entanto – de acordo com a abordagem que tem orientado esta proposta de estudo – considerar os personagens onesimianos como compósitos, isto é, representativos de várias facetas da experiência e/imigrante tematizada em (Sapa)teia Americana.

Ao encarar estes personagens da perspectiva das várias fases da experiência e/imigrante mencionadas acima (9), toma-se aparente que a maioria – independentemente da sua por vezes marcante individualidade – aponta para um (hipotético) super-personagem ou superpersonalidade compósita que encama alguns dos aspectos mais óbvios da experiência intercultural e, no caso da L(USA)lândia, por vezes da experiência intracultural sofrida num palco geograficamente estrangeiro. As características da fase preliminar preparativos para a viagem, as concepções por parte do emigrante do almejado país, entre outras – geralmente são apanágio de autobiografias de e/imigrantes. Se bem que não se possa dizer que o Autor confira tanta importância a essa como a outras fases, a fase preliminar recebe o seu quantum satis de atenção – e de dramatização e ironia. A natureza muitas vezes contingente da e/imigração açoriana e a fatalidade da diáspora são, por exemplo, dramatízados/ironizados mediante a caracterização do personagem titular de «A Amé(r)dica do Mariano» («a América bateu-lhe à porta»; pág. 86), da Luísa que vem das ilhas «na bagagem dos pais» e do onomasticamente representativo Tónio Vila Franca de «Contra-(o)-Tempo» que – numa evidente alusão ao título da colectânea, o qual uma vez mais semanticamente se amplia – vem para a América para desatar as cordas (leia-se os fios...) em que se atara (leia-se enredara...).

A fase de espectador está implícita e explícita em vários contos. Como se disse antes, porém, está sobretudo patente na caracterização do protagonista de «Vingança E(u)rótica», conto paradigmático desta fase em que, para parafrasear e citar Lewis e Jurigman, se dão os primeiros desencontros entre os distintos valores e normas de comportamento e em que o recém-chegado, imerso no seu «espectar» – o conto onesimiano exige: na sua actividade de mirone – «por vezes tem dificuldade em aperceber-se que ele próprio se converte em espectáculo» (pág. 41). Espectáculo é o que todos estes personagens são uns para os outros: a mulata para o e/intigrante e este para ela; as duas e/imigrantes cujos diálogos reflectem o espectáculo que, para elas, é a América; o espectáculo que, para a filha duma destas e/imigrantes mais velhas, representam os valores e normas patriarcais do país de origem; e o espectáculo que tudo isso é para o narrador (e sobretudo para o leitor) que os vê a todos, incluindo o narrador, a espectar. O papel do narrador – e a ele regressaremos mais tarde – é um dos mais importantes neste conto em que conclusivamente se demonstra, remetendo àdedicatória, que na escola da e/imigração não vale o sermonear de palavras – mas o conhecimento de experiências – feito. Tal como os personagens que manipula, pois, o narrador – cicerone da L(USA)Iândia e «professor» de I(USA)landeses – é igualmente vítima de aprendizagens negativas. Referente à personagem do «imigrante fresquinho», a mensagem do conto é que ele terá que passar/subir por esta e pelas restantes (que perfariam cinco) fases da via crucis e/imigrante (lembremo-nos da «via-sacra de cinco estações» do protagonista de «(Sapa)teia Quotidiana») a caminho de algum tipo de salvação – ou duma irremediável perdição.

Na fase de progressiva participação – informam-nos Lewis e Jungman – dão-se alguns dos mais sérios conflitos e colisões entre a cultura de origem e a do país de acolhimento. Desta fase podem resultar conflitos relativamente solúveis e o e/imigrante encaminharse para uma maior participação e aceitação da e na cultura adoptiva. Ou o recém-chegado pode, por outro lado, resistir aos valores e normas culturais do país anfitrião e aproximar-se cada vez mais de uma das mais dolorosas de todas as fases: a de choque cultural. Colectivamente considerados, os personagens onesimianos e/imigrantes patenteiam um alto grau de conflituosidade relativamente à fase de progressiva participação. É exemplo talvez máximo disso o António, protagonista de «(Sapa)teia Quotidiana» (e as personagens secundárias do mesmo conto que com ele contracenam ou lhe são espelho: Maria José e Maria de Fátima). Exemplos da fase em epígrafe são ainda as e/imigrantes do conto «Vingança E(u)rótica» e tantos outros personagens ao longo da obra (e a que já me referi sob outras rubricas) que, embora cheguem a constituir minúsculos dentes da engrenagem económica em que se integram, continuam humanamente marginalizados. Emblemático dessa marginalização mecanizada é o personagem de «Burro Eu!», cuja voz com que grita o seu «triunfo» sobre o narrador se confunde com o ruído da máquina (em que simbolicamente já se converteu). Outros marginais da fase de progressiva participação – e poderíamos ilustrar com os personagens de «O Dever de Homem», cuja patética guerra contra os americanos é em parte uma guerra de despeitos motivados pela (auto)marginalização – reflectem um grau de patologia social e psicológica que os acerca bastante da fase de choque cultural.

Talvez a menos bem compreendida fase da experiência e/imigrante, a fase de choque cultural – o termo foi cunhado por Kalervo Oberg em 1960 – pouco ou nada tenha a ver com o efeito que as diferenças culturais podem de imediato causar, como tão-pouco se refere aos ocasionais malentendidos ou confusões inerentes à experiência intercultural. Sem ser necessário recorrer a definições científicas, a fase de choque cultural é, ante tudo mais, uma patologia. Os seus sintomas incluem depressão, ausência de contacto com outros, irritabilidade e comportamento compulsivo ou incaracteristicamente excêntrico. Esta fase pode ocorrer após longa estadia no país adoptivo. Embora haja ao longo da colectânea onesimiana outros casos esporádicos de personagens susceptíveis desse diagnóstico, creio que os exemplos máximos estão incluídos nos contos «Trilogia Breve», «Era-lhe Pátria Aquela Língua» e «O Manifesto pela Liberdade do Micaelense». Trilogia Breve» encena o eterno drama da bipartição ou fragmentação, como se sugeriu antes. Os três personagens deste último conto são susceptíveis de serem vistos como estágios na via crucis de um só e/imigrante ou exemplos de três possibilidades no último acto do drama e/imigrante-, o desiludido querer voltar para lá na tentativa de recriar o paraíso perdido (o Sr. Chico Avila); o não poder viver lá sem o cá ou a impossibilidade de recriar o paraíso (o tio Borges); e o concludente inferno existencial do cá/lá a que já se aludiu (tio José da Costa). Nos contos «Era-lhe Pátria» e «O Manifesto» – aos quais, sob outras rubricas extensamente me referi – temos exemplos susceptíveis de serem considerados patologias ou crises de identidade resultantes de choque de cultura – cultura neste caso entendida como complexo sistema de comunicação que esses personagens, perdidos nas suas respectivas solitárias excentricidades, já não são capazes de realizar.

Depois do que ficou dito anteriormente pouco há a acrescentar sobre as fases de adaptação e de toma-viagem em (Sapa)teia Americana. Aquela não está, pura e simplesmente, representada em nenhum dos personagens da obra. Caracterizada às vezes por um «excesso de identificação» por parte do e/imigrante com o país de acolhimento (o síndroma de mais americano do que George Washington), Jorge Luis Borges, no conto incluído na antologia organizado por Lewis e Jungman («Story of the warrior and the captive», tradução de «Historia del guerrero y de Ia cautiva», de El Aleph; 1949) equipara o transitar de uma cultura para outra a experimentar uma conversão religiosa. Nenhum dos personagens onesimianos se aproxima dessa experiência. A Mrs. Travers de «7 de Outubro no Longe», como já vimos, ter-se-á perdido na travessia. O seu «português» e a sua atitude perante a cultura ancestral é disso exemplo. O pouco que ela parece ter absorvido da cultura americana para que se encaminhava talvez seja mais uma perversão do que uma conversão.

Da fase de torna-viagem já disse quase o suficiente ao comentar «Torna-Viagem» e os três personagens de «Trilogia Breve» – que, claro está, poderiam ter sido discutidos sob esta rubrica. Gostaria de enfatizar, contudo, que é extremamente significativo – dir-se-ia, tematicamente expressivo – que nos vinte contos de (Sapa)teia Americana só haja um personagem (o primeiro de «Trilogia Breve») que pretende voltar ao país de origem. Não há um único personagem de primeiro plano que tenha regressado e lá ficado! No entanto, o drama do torna-viagem terá inspirado, pelo menos em parte, a criação dessa extraordinária personagem que é o Velho de P. Town. Espécie de Velho do Restelo pelo seu vaticinar, mas antítese do personagem camoniano pela mensagem «revolucionária» que vaticina, o Velho vem, como já sugeri, precisamente contrabalançar a atitude de desprezo (e de impotência) explícita no manguito geográfico do Cape Cod, atitude essa que – como seria de esperar, e como seria até de justiça esperar-se – é a de muitos e/in-ligrantes relativamente a Portugal. O arquetipicamente clarividente Velho encama uma visão conciliadora e fraternal.

Na galeria de (Sapa)teia Americana – a qual inclui retratos de personagens de variadíssimas idades de ambos os sexos – destacam-se, como tentei demonstrar, alguns personagens que, apesar de se integrarem na experiência e/imigrante em geral, também se destacam pelo estatuto enfaticamente emblemático que assumem relativamente a vários aspectos dessa experiência. Emblemáticas da experiência feminina são as personagens complementares: Luísa (de «O Imperfeito do Conjuntivo») e Alda (de «Contra-(o)-Tempo»). Vítimas do duplo drama da e/imigração e do patriarcalismo, não admira que a Luísa onesimiana seja homónima da contrapartida intertextual da Alda: a Luísa do já referido poema de António Gedeão, «Calçada de Carriche» (Teatro Do Mundo; 1958).

Gostaria, para finalizar esta rubrica, de me referir a um personagem a vários títulos único em toda a obra, o(s) Adriano(s). A sua unicidade deriva não só da posição estratégica do conto em que se integra (o último) – conto que, de certo modo, resume os outros – mas das potencialidades implícitas na pluralidade do seu nome e na multiplicidade de ópticas com que é visto. Creio que é este conto, sobretudo, o que mais problematiza a estrutura profunda de (Sapa)teia Americana, aquilo a que J. Gerald Kennedy chamaria o seu «conteúdo radical».

Personagem singular e plural, como já se indicou, a pluralidade do(s) Adriano(s) resulta, em parte, dos vários ângulos com que é perspectivado, técnica esta reminiscente do multiperspectivismo empregado por Honwana em «As Mãos dos Pretos» (Nós Matámos o Cão Tinhoso) e por Luandino Vieira em «Estória da Galinha e do Ovo» (Luuanda). De facto, o(s) Adriano(s) é visto de quatro ângulos diferentes, sendo alguns deles representados por mais de um personagem: o «sonho americano» do próprio Adriano, que ele partilha com o narrador; a visão conservadora com que o perspectivam os e/imigrantes; a perspectiva «americana» do Steve, do director do jornal e da professora; e a visão do narrador e de cada leitor. Síntese de alguns aspectos de contos anteriores, não seria ilícito encarar o Adriano como progressão da Bildung de um desses dois meninos de «7 de Outubro no Longe» (já apontei para o António de «(Sapa)teia Quotidiana» como susceptível de ser visto como progressão de um desses meninos). O sonho de riquezas do Adriano é uma variação – aplicada a um jovem já «americanizado» – do «tema» do capitalismo estritamente l(USA)landês do sr. Isaías e do padre da paróquia das Chagas. O conservadorismo e/imigrante está explícito nas perspectivas dos pais do Adriano, do padre e da senhora Olinda Ferreira – perspectivas estas que constituem, portanto, um outro olhar retrospectivo para os pais da Luísa, para o «pastor» da Paróquia das Chagas e para a tia Maria José de «(Sapa)teia Quotidiana». A perspectiva «americana» é-nos comunicada pelo Steve que – até certo ponto um símbolo do esteriotípico optimismo americano – vaticina o consabido sonho americano: «pode sair dali um grande homem – porque não? –, um grande empreendedor, como ele aliás sonha» (pág. 177). A este vaticínio de sonho americano – ainda que reflectindo uma atitude um pouco mais cautelosa – alia-se a professora. O director do jornal, esse, junta ao proverbial optimismo o igualmente proverbial preconceito anti~hispânico: «Se Portugal tivesse uns quantos daqueles [Adriano(s)], não era preciso emigrar tanta gente para aqui» (pág. 179).

Falta-nos a perspectiva do narrador – e a do leitor, arribas, aliás, da responsabilidade do leitor, pois a ele cabe procurar uma síntese – que não pode senão ser tentativa e largamente especulativa – do que o conto «O(s) Adriano(s)», colocado em lugar privilegiado de último texto da colectânea e provocadoramente de final aberto, nos diz sobre o conteúdo radical de (Sapa)teia Americana. Para mim, esse conteúdo consiste numa (ou várias) resposta(s) à pergunta: Qual é a concepção da experiência e/imigrante dramatizada/tematizada ao longo destes contos e, de certo modo, sintetizada/problematizada em «O(s) Adriano(s)?

Como se sabe, uma das metáforas mais comuns da experiência e/imigrante é a do desenraizamento, a qual está associada sobretudo ao célebre livro The uprooted (195 1), de Oscar Handlin. Metáfora feliz pelo que sugere de inerentemente traumático na experiência e/imigrante, creio-a no entanto menos feliz no conotar duma experiência demasiado brusca e de consequências imediatas (a morte da árvore após o desenraizamento) ou duma solução ingenuamente optimista (a sua transplantação bem sucedida). (Como é sabido, ambos os extremos – desenraizamento/alienação e transplantação/assimilação estão representados no livro de Oscar Handlin.) A experiência e/imigrante representada, a nível de estrutura profunda ou conteúdo radical, em (Sapa)teia Americana (não me atreveria a sugerir que ela é aplicável à experiência e/imigrante em geral) parece-me exigir uma metáfora mais rica, mais sugestiva de paulatina progressão, mais consentânea com o maior número possível de elementos constitutivos da colectânea onesimiana, mais adequada, sobretudo, ao convite ao leitor a perspectivar o Adriano e, por extensão, a reflectir sobre a(s) experiência(s) e/imigrante(s) deste e dos outros personagens da obra. A metáfora que tenho em mente – não sabendo se ela jamais foi empregada com referencia específica à experiência e/imigrante – é a entropia.

O termo «entropia», introduzido (1852) em termodinâmica pelo físico alemão Rudolph Clausius (1822-1888), foi adaptado à teoria da história por Henry Adams (The education of Henry Adams; 1907) e à teoria da comunicação por, entre outros, Norbert Wiener (The human use of human beings; 1954). A aplicação literária do conceito remonta, segundo um crítico, a Herman Melville (10). Numa acepção essencialmente qualitativa ou metafórica – que é a que se pretende explorar aqui – o conceito (e por vezes o próprio termo) associa-se à ficção de, entre outros, Thomas Pynchon, Susan Sontag e John Updike. Para fins deste trabalho – aventar urna síntese da visão da e/imigração inferível de (Sapa)teia Americana – servir-nos-á a definição de «entropia» proposta pelo dicionário Websters: expressão numérica do «grau de desordem duma substância ou dum sistema: a entropia aumenta sempre, enquanto a energia existente diminui num sistema fechado, como o universo». Sugestiva de um espaço fechado é a definição de L(USA)Iândia proposta pelo Autor: «porção de Portugal rodeada de América por todos os lados» – em que a «porção» está separada do todo de que faz parte (Portugal) sem estar ligada ao todo de que é parte intrínseca (a América). Já me referi aos concêntricos espaços fechados como elementos microcósmicos desse (auto)imposto apartheid geográfico-cultural, de que o personagem de «Bísinas São Bísinas» é um eloquente exemplo. As poucas incursões da parte dos personagens de (Sapa)teia no mundo extra-l(USA)landês e a ausência de regressos definitivos à pátria de origem acentuam o carácter fechado, isolado do sistema L(USA)lândia.

É quando nos voltamos para a dissipação de energia – focalizando, a título meramente exemplificativo, e acentuando sempre o carácter qualitativo e não o aspecto quantitativo do conceito em epígrafe, o destino dos personagens e algumas imagens salientes – que nos apercebemos da viabilidade da metáfora para o conteúdo radical destes contos. Poder-se-ia objectar que a L(USA)lândia não é um sistema fechado, a julgar pelo influxo, nestes contos, de novos imigrantes, num constante restabelecimento de energias que mantêm o sistema aberto e em funcionamento. Sem negar essa infusão constante de braços para alugar, também é inegável que esses seres se tomam progressivamente vítimas do processo entrópico que, duma maneira ou outra, os afecta. Directa ou indirectamente já toquei em temas que apontam para uma progressiva dissipação de energias humanas e culturais que poderíamos agrupar – uma vez mais, a título meramente exemplificativo – sob as seguintes rubricas: viagens sem rumo (que terminam numa dissipação de energia: o bermucalense, o micaelense, o tio José da Costa); marginalizarão (a de vários personagens que ocupam espaços geográficos e sócio-culturais cada vez mais restritos e limitantes); perda de identidade (simbolizada, por exemplo, na fragmentação dos nomes). Dá-se, em vários destes personagens, aquilo que poderíamos designar por morte/suicídio entrópicos: a morte de valores religiosos, éticos, morais (patentes no comportamento dos personagens de «O Dever de Homem e «Vingança E(u)rótica»). A coisificação do ser, metáfora essa também empregada por Nathanael West, no romance A cool million (1973), para designar a entropia humana, é um factor também comum à colectânea onesimiana. Ao já mencionado exemplo do protagonista de «Burro, Eu!», cuja voz se funde com o ruído da máquina, poderíamos acrescentar o exemplo da Alda («Contra-(o)-Tempo»), «cujo espírito... se passava para a máquina» (pág. 149), tão assim que – numa reiterada recorrência à imagística religiosa já analisada – precisava de, depois do trabalho, «reincarnar». Sem esgotar as sugestões de entropia metafórica em (Sapa)teia Americana, não quereria, porém, deixar de mencionar a entropia comunicativa – exemplificada no «portinglês» de muitas destas personagens, uma entropia que atinge o destinatário identificado pelo Autor no pórtico – que precisa de notas de rodapé para «entender» os seus irmãos da L(USA)lândia. Posto isto, não seria legítimo rotular de pessimista a visão onesimiana da e/imigração?

Se concedermos a aplicabilidade da metáfora em epígrafe – a qual é por definição não só pessimista mas, levada às suas últimas consequências, niilista. – teríamos que responder afirmativamente. Mas Onésimo Teotónio Almeida é um escritor demasiado exigente e, sobretudo no seu último conto, demasiado ambíguo para nos permitir uma solução tão fácil. Para finalizar – mantendo todas as questões aqui levantadas em aberto, seguindo a própria sugestão do Autor, que em aberto deixa «O(s) Adriano(s)» e o seu volume de contos – gostaria de chamar a atenção para duas imagens desse conto, ambas supostamente definidoras da personalidade do(s) Adriano(s). O narrador, numa de várias singulares imagens com que caracteriza o Adriano, refere-se ao seu «corpo irrequieto de onze anos de dinamite» (pág. 171). Fazendo-se eco dessa imagem, a professora caracteriza o Adriano como «um pequenino vulcão saído daquela paz, mas de fogo que não queima e, se queima, não dói» (pág. 181). Ambas são imagens altamente susceptíveis de serem lidas entropicamente (apontando assim para o conteúdo radical proposto acima). Seguindo a sugestão negativa, o Adriano – e daí a pluralidade do seu nome – seria mais um glóbulo de energia em explosão, entropicamente a caminho do nada. Seria, no entanto, igualmente lícito encarar essas imagens como positivas («Ele é dinamite, um vulcão»), simbólicas do potencial inerente à personagem deste e/imigrante a caminho da adaptação (idealmente uma adaptação/conversão, em termos borgeanos). Mas talvez a maneira menos arriscada – e foi essa precisamente a que Onésimo Teotónio Almeida adoptou no conto de encerramento – seja apelar para a opinião de cada leitor, opinião essa que, para ser adequadamente contextualizada, terá de apoiar-se numa leitura interdependente de todos os textos que perfazem (Sapa)teia Americana.


NOTAS:

(1) Chamo a atenção para dois estudos de George Monteiro que privilegiam a independência de todos os contos: «Fotografias para o Álbum de Família: Notas sobre uma Releitura de Onésimo Teotónio Almeida em (Sapa)teia Americana», Islenha, 15 (Julho-Dez. 1994), págs. 49-58 e «News from L(USA)landia: Onésimo's Azorean Stories», MELUS (no prelo).

(2) Poema 1138, in The Complete poems of Emily Dickinson, ed. by Thomas H. Johnson (Boston: Little Brown and Company, 1960). «A aranha tecia de noite / sem precisar de luz 1 num arco de alvura». (Trad. do autor.)

(3) Ver a «Os Novos Contos da Montanha, de Miguel Torga, como Ciclo de Contos», in «Sou um homem de granito»: Miguel Torga e Seu Compromisso, org. de Francisco Cota Fagundes (Lisboa: Cosmos, no prelo). Alguns dos elementos teóricos do presente posfácio apoiam-se nesse estudo.

(4) Journal of the Short Story in English/Les Cahiers de la Nouvelle, 11 (Outono 1988), págs. 5-25.

(5) Peça de teatro de Onésimo Teotónio Almeida, publicada em 1978. A segunda edição de 1991 é de Eurosigno Publicações, Ponta Delgada.

(6) Refiro-me ao famoso caso de violação colectiva acontecido em 1984, perpetrado por imigrantes portugueses contra uma luso-americana e explorado pela media nacional e internacional.

(7) (Sapa)teia Americana (Lisboa: Vega, 1983), pág. 130. Futuras referências serão incluídas no texto.

(8) L(USA)Iândia – a décima ilha (Angra do Heroísmo: Direcção de Serviços de Emigração, 1987), pág. 7.

(9) As fases preliminar, de espectador, de progressiva participação, de choque cultural, de adaptação e de reentrada ou torna-viagem são discutidas, com base em estudos de psicólogos sociais referentes sobretudo à experiência dos americanos no Peace Corps, por Tom J. Lewis e Robert E. Jurigman (eds.) na sua introdução a On being foreign: culture shock in short fiction – an international anthology. Os vinte contos desta antologia estão organizados segundo as várias fases da experiência intercultural.

(10) Ver Sbigniew Lewicki, The bang and the whimper: apocalypse and entropy in American literature (Westport, Connecticut: Greenwood Press, 1984), págs. 71-116.

Francisco Cota Fagundes (Universidade de Massachusetts, Amherst), Texto publicado na Revista da Faculdade de Letras, nº 21-22 5ª Série, 1996/1997, pp. 119-139.

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