Letras & Letras

Recensões

Na Água do Tempo
de Luísa Dacosta

I

Segundo o Evangelho de S. João, que narra a transformação de Deus em Homem, «ao princípio era o verbo...»

Ora, intuir o Verbo como princípio de todas as coisas, é já aceitar o ascendente do Espírito sobre a Matéria, o primado do Ser como causa determinante da acção. Que ao Verbo, ao Espírito, ao Ser, se chame Inteligência, Pensamento, Razão, Ideia, ou qualquer outra coisa de similar é, seguramente, de somenos, tendo em conta que, a sua afirmativa, expressão, teorema, senão mesmo a sua revelação, se concretiza num dado comum: na linguagem/escrita.

Prova do que afirmo, a colho particularmente na história da vida de Moisés, o qual, como sabemos, ascendeu ao Monte Sinai, de onde regressou com as Tábuas da Lei, os Dez Mandamentos, gravados a fogo pelo Espírito, pelo Senhor...

De acordo com esta perspectiva, Deus deu-se a conhecer pela escrita, o que equivale a dizer que, esta específica forma de se revelar, antecedeu a da sua própria humanização ou reincarnação humana. De facto, por esta via, o velho Deus dos Hebreus, para sempre inominável e inrepresentável, motivo porque na religião hebraica não subsiste qualquer representação deífica, adquire representação lúdica, espírito, consciência, determinação e afirmação de Ser.

Quando eu, a propósito de uma outra obra de Luísa Dacosta, afirmei me render ao sortilégio da sua escrita, tanto ou mais do que ter em conta a própria escrita em si, o prazer do texto, tinha em mente o que nela subsiste, se osmotifica e se afirma como expressão espiritual do Ser.

Não foi, pois, somente ao estilo, à plasticidade e elegância da forma que me rendi, mas, essencialmente, ao que em tal existe de função mental e de sensibilidade superiores.

Há, pois, uma força oculta no textual, cujo significado está para além do que aquilo que nos dicionários se regista. Isto quer dizer, portanto, que, embora a realidade invocada seja única, infinita é a potencialidade variável da coisa tematizada, infinito o específico momento vivido, e múltiplas as reintegrações desse momento nos contextos individuais e colectivos. Melhor dizendo; em Luísa Dacosta, a palavra, a escrita, não se concretiza primordialmente na condução deliberada do fim em que se pretende objectivar, antes evolui em transformação, explorando revelações, virtualidades insuspeitáveis, tornando-se, em súmula, um veículo de incomensuráveis possibilidades, as quais tanto nos remetem para sintonias inter-textuais, quanto para efeitos epifânicos de interacção de sentimentos.

Ora, de revelação e de epifania é, justamente, a escrita de Luísa Dacosta. Não porque, somente, no que escreve, relativiza a situação específica de ser ela própria e mais o mundo que a acolhe, mas porque nesta relação ela transmigra para o sentimento e racionalidade de cada leitor. E, então, assim como contar um poema equivale a suprimir a poesia que lhe dá o conteúdo, igualmente contar o que de fundamental existe em Na Água do Tempo equivale a uma falácia, pois que todo ele é feito de inspiração poética e de epifania.

Um exemplo: No tempo em que Portugal mantinha a guerra no ultramar, um dia, foi parar às mãos de um jovem soldado um número da revista «Vida Mundial», a qual inseria colaboração de Luísa Dacosta. O nosso soldado, que tudo dela desconhecia, sob o impacto da leitura, dirigiu-lhe uma carta, ao cuidado da redacção da revista, para somente lhe dizer isto: - que a milhares de quilómetros de distância da sua terra, e a quase outros tantos da costa africana, lá, no meio do sertão, pela leitura do seu texto, sentira o cheiro iodado do mar que banha o seu torrão natal (pág. 186).

Agora, reparem: quando Luísa Dacosta escreveu isto foi no tempo A; quando tal foi publicado teve por tempo o B; por sua vez, quando a revista chegou a África, teria sido no tempo C; e, finalmente, quando foi lida pelo nosso soldado, ocorreu no tempo D...

Que espaço de dias, semanas, meses, porventura, anos, decorreu entre A e D? Respondo: em rigor, nenhum! E nenhum, porque o poder evocativo da escrita sobre o objecto relatado foi tal, que todo o percurso, entre o acto da criação textual e o da sua leitura, foi anulado, fundindo-se assim o observado com o observador, o criado com a coisa criada, o sensorial da escritora com o sensorial do leitor...

Uma vez mais, epifania, revelação...

Todo o livro é isto – Verbo encarnado. Que o diga o Snr. Ribeiro (pág. 93), funcionário público, viajante de eléctrico, entre a Ramada Alta e o Jardim de S. Lázaro, o qual, graças ao guia universal que amorosamente lê, é turista do mundo, passeante dos Dardanelos, da Grécia, do Mediterrâneo... Que o digamos nós, leitores, que, a páginas 122 e 155, colhemos singular testemunho do Verbo de Camilo Pessanha e de Irene Lisboa – revelações de ser projectadas em três distintos momentos e pessoas – a deles, os invocados, a de Luísa Dacosta, que os invoca, e a nossa, presos que ficamos à epifania de tais invocações, qual tríade deífica singularizada num só ser...

Que o digamos nós, ainda, que, a páginas 149, somos os últimos visitantes, em vida, de José Régio... – que texto magnífico este, que derrame de luminosidade, de perenidade, sobre a noite total!...

E que sentida exaltação, a pág. 253, a propósito do Padre Alves Correia, servo de Deus (ou filho?), que ao próprio Deus, dir-se-ia, disputou o saber, a palavra, e a agonia de uma morte madrasta...

Que imensa cosmogonia esta, de existências e de espaços, de cujo Olimpo é A-Ver-o-Mar! Porque, em rigor, na obra da escritora, tal lugar é a capital sensível do Mundo, o centro absorvente e irradiador de todas as alegrias e tristezas, de tudo quanto acontece, local de criação, de escrita, Sinai ou Jerusalém, sublimado e epifanizado! E, então, Lisboa, Vila Real, Porto, Matosinhos, Óbidos, Portalegre, Casablanca, Madeira, Açores, Timor e Brasil, constituindo, embora, os percursos da vida que aqui se regista e se inventaria, em nada se superiorizam a este espaço encantado, sacralizado, de comunhão plena do Ser com o Cosmos. Direi, mesmo, que a ele se inferiorizam, na medida em que a essencialidade que eles reflectem é daqui aspergida, é daqui irradiada...

Assim nos Açores, por exemplo, onde, em sucedâneo das mulheres de A-Ver-o-Mar, as tais que «murcham aos trinta anos, vivem e morrem na resignação de ter filhos e de os perder», se identifica uma Florinda, que bem poderia ser a Guida, a Ermelinda, ou qualquer outra do lugar genesíaco, a qual, por todas elas e pela própria escritora, que para todo o sempre ganhou o estatuto de irmã, mãe e filha destas intérpretes, comenta: - «Vai-se tudo nos comeres e não se arruma nada para uma doencinha que o Nosso Senhor mande!»

Doencinha! Mirantinho, ouricinho, sementinha, baroquinha, larguinho, manadinha... E também: - «Meu ramo branco branco! Meu sol aberto! Minha florzinha de altar! Meu cravo roxo!...»

Que de poesia e de sonho escorrem destas expressões coloquiais de ao rés da água! São elas palavras antigas, do antes de, da infância, levadas e trazidas pelas marés da vida e dos grandes mares... – justamente, as mesmas que vai encontrar no Brasil, a terra de Cecília Meireles, que foi a primeira que literariamente a acorrentou, a par de Irene Lisboa.

A sua evocação, nalgumas das páginas deste diário, garante-nos que uma e outra, Cecília e Luísa, filhas do mesmo Verbo e Sonho são e forçosamente gémeas.

II

Como todos os diários, é este tecido de fragmentos datados, os quais revelam tanto o percurso de uma vida quanto a natureza meditativa e sensorial que ela comporta sobre os eventos e o tempo.

Lendo-o, penetramos no Limbo de um relato onde a escritora, em experiência existencial, tanto se liberta quanto se escraviza aos momentos de transe platónico, inquirindo sobre si mesma se não criou o tempo, o espaço, as personagens de que nos fala, ou se somente as relata como se fossem uma paisagem. Depois, num crescendo, tudo se modifica. O seu grande assunto, em epifania e descoberta, passa a ser a Vida em processo de transfiguração poética – ou seja, de libertação espiritual, mesmo quando limitada ao registo da casualidade quotidiana. Daí que, na íntima vibração da sua escrita, descubramos a vivência ímpar da alma humana, em dádiva e oferta. Poucos escritores do nosso tempo poderão arrogar algo de semelhante. É difícil, na verdade, localizar na actualidade literária algo de parecido a esta entrega de ser, a esta subalternidade aos princípios fundamentais da existência, em fraternidade constante destituída de qualquer heroísmo singular. Nesta perspectiva, autora e personagens são o que são – isto é, anti-heróis que não buscam feitos de grandeza, mas, tão-somente, identificação humana com a comum esperança e conforto colectivos.

Há em Luísa Dacosta um vasto leque de topoi, de tópicos ou esquemas de pensar e de expressar, que mais não são do que elementos culturais ancestrais tornados modernos. Assim, por exemplo, o ambiente festivo do ar livre, a comunhão com a natureza; o largo da praça, o adro da igreja, o campo de trigo, o ribeiro, a preia-mar, as montanhas, os jardins, os malmequeres... Ou o que, na sua obra, é utilizado sem ser tematizado, vivido sem ser definido, sopros animadores de denúncia, como acontece com alguns aspectos violentos de crítica social que, na gleba, repudiam o miserabilismo enquistado pela noite dos tempos, ou de exaltação – afinal, tudo quanto é objecto da sua contemplação – os quais não constituem leit-motivs, mas tão-somente apontamentos, pormenores, partes de um todo inominável, fragmentos ou despojos de uma divindade esquecida da sua criação. Justamente, por isto, é o seu prefácio uma clara expressão de sentimento exasperado de solidão e de incerteza existencial. Não uma visão apocalíptica, consubstanciada num acto de revolta, mas antes um peculiar modo de resistir, de inventariar a pluralidade dos sentidos da coisa vivida, mesmo quando se enunciam como inúteis, lavados pela água do tempo.

Água e tempo, neste contexto, não são apenas a metáfora do fluir da existência, o mergulho existencial na cronologia do vivido, a memória fragmentária duma grande ou pequena história, mas, igualmente, uma barrela, um despir, uma depuração só comparável com o sentido estético-filosófico do franciscanismo, que louva a existência em sua mais estreme precaridade.

Uma tal elegia, recorrendo à plenitude de uma consciência que em definitivo anuncia a substituição dos problemas da vida pela fatalidade de morte, desmente-se a si própria. Porque uma coisa é o corpo textual de Na Água do Tempo e outra, bem diferente, é o seu prefácio, o qual, desde já, defino como posfácio.

No primeiro caso, temos um percurso de vida em constante enamoramento, o qual produz uma linguagem de estado nascente, ou seja, de exploração e de afirmativa; no segundo, temos um monólogo de crise, um argumento terminal, que só não se desumaniza porque, tão torturado e sincero é ele, tão elegíaco, que só humanamente se pode conceber. De facto, neste texto, a escritora é um Cristo feminino, abandonado, que clama: «Pai (Vida), porque me abandonas?».

Tal invectiva, a que corresponde o sentido de sobrevivência na morte que anuncia, escreveu-a a autora em transe doloroso, presa à imponderabilidade do amanhã, numa espécie de jogo de tudo ou nada, a partir de certo dia, de certa hora...

Hoje, que tudo passou, essa experimentação de amargura, essa obsessiva premonição do abismo, que eu um dia sopesei pelo seu volume mínimo, mal pensando quanto ele encerrava de vaticínio, vem, afinal, demonstrar o quanto em Luísa Dacosta existe de disponibilidade para a vida que a cerca, quanto de si dá sem pensar em si!

Eis-nos, pois, face a uma contabilidade diarística que, apesar de apresentar um resultado deficitário – é sempre deficitário o apuro final de uma existência! – transita para o futuro mais valias, cimentando-se no dia a dia, apesar da tragédia e da precaridade do existir.

E nisto, ainda por epifania, se sintoniza Luísa Dacosta, emotiva e intelectualmente, com as mulheres de A-Ver-o-Mar, as quais, sempre mais dadivosas do que reclamantes, proferem, humildes e redentoramente: «Seja tudo pelas almas e pelas nossas obrigações!...»

Ramiro Teixeira, 1999

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