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Recensões


Apólogos Dialogais
D. Francisco Manuel de Melo
Braga-Coimbra, Angelus Novus, 1998-1999
vol. I, LXVI+127 págs.; vol. II, LIII+140 págs
(Col. Obras Clássicas da Literatura Portuguesa, Século XVII, nºs 3 e 31)
Edição de Pedro Serra

Apólogos Dialogais
de D. Francisco Manuel de Melo

Com a publicação destes apreciáveis e influentes diálogos morais de D. Francisco Manuel de Melo, autor cuja obra não é, inquestionavelmente, merecedora do silêncio a que tem sido votada, preencheu-se importante lacuna, já que uma das mais recomendáveis edições escolares da obra completa fora organizada por José Pereira Tavares, no já distante ano de 1956, para as meritórias edições Sá da Costa. Em face do afirmado, os intervenientes do processo de ensino-aprendizagem da Cultura, Língua e Literatura portuguesas (alunos e professores), desde o Ensino Secundário à Universidade, tal como os leitores em geral, deixam de poder apresentar a desculpa fácil da inexistência de uma edição actual, fidedigna e muito enriquecida por uma bem informada introdução, adequada bibliografia específica e oportunas notas de rodapé, como é o notável trabalho de Pedro Serra.

O autor obteve o grau de Mestrado em Estudos Anglo-Portugueses na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Univ. Nova de Lisboa e de Doutoramento na Faculdade de Filologia da Universidade de Salamanca, onde exerce funções de docência e investigação. Entre outros trabalhos no âmbito da cultura e literatura contemporâneas, é autor de uma valiosa edição didáctica da Carta de Guia de Casados, de D. Francisco Manuel de Melo (Angelus Novus, 1996), essa influente "epístola-ensaio de filosofia doméstica". Exerce ainda a função de director do jornal "on-line" Ciberkiosk.

Como nos é informado pelo organizador, escritos por meados do séc. XVII, a primeira edição (póstuma) dos quatro Apólogos Dialogais completos coube a Matias Pereira da Silva, em 1721. Depois desta edito princeps, já no séc. XIX (1875), Inocêncio Francisco da Silva, recupera o quinto diálogo, A Feira dos Anexins. Sem esquecer o significado de outras obras do autor, como O Fidalgo Aprendiz ou as Segundas Três Musas, foram estes Apólogos Dialogais que lhe granjearam a maior fama na seiscentista República das Letras, dentro e fora das fronteiras nacionais. Esta literatura dialógica integra-se numa rica tradição portuguesa, de que é exemplo a Corte na Aldeia de Rodrigues Lobo, e mesmo castelhana, em que ressalta o nome de Francisco Quevedo ou de Miguel de Cervantes (El Coloquio de los perros), embora com antigas raízes na cultura clássica (diálogos de Sócrates, Luciano ou Cícero). Exceptuando Quevedo, o insigne M. Menéndez y Pelayo considerava D. Francisco "el hombre de más ingenio que produjo la Península en el siglo XVII", enaltecendo a evolução do seu estilo literário pouco barroco e particularizando mesmo "la más encantadora y maliciosa sencillez" do autor dos Apólogos.

Neste cuidado trabalho de Pedro Serra, o vol. I edita dois dos apólogos do autor seiscentista, o primeiro e o terceiro, respectivamente: Os Relógios Falantes e A Visita das Fontes. O estabelecimento de cada um dos textos é feito a partir de edições rigorosas: para o primeiro, a edição de Giacinto Manuppella (de 1962), elaborada a partir do autógrafo da Biblioteca da Ajuda (BA); para o segundo, a edição crítica de Mª Judite Fernandes de Miranda (de 1968), feita com base no cotejo do manuscrito da Biblioteca Nacional de Lisboa (BNL) com outros diferentes manuscritos, dada a inexistência de um autógrafo. Depois de algumas considerações propedêuticas, o organizador detém-se na reflexão sobre algumas das mais relevantes questões para a compreensão da obra de D. Francisco Manuel de Melo. Apresenta, desde logo, o problema da mimese dialógica, caracterizando os textos do autor como "diálogos miméticos", isto é, "ficções que pretendem ser verosímeis".

Neste singular género literário, está em causa o problema da representação, já que, com pequenas excepções, a realista, cativante e pedagógica linguagem humana veiculada pelas vozes destes dois apólogos pertencem a objectos inanimados. No primeiro apólogo, estaticamente prostrados no cenário de uma oficina do caldeireiro, aguardando concerto, dialogam o Relógio da Cidade (das Chagas) e o Relógio do Campo (de Belas), que, perante os meandros da vida citadina e cortesã, acabam por retirar a típica barroca lição do desengano. Perpassando todo o diálogo, está o velho topos da oposição ideológica Cidade/Campo, tão glosado sobretudo pela literatura clássica e humanista: "Marrocos por Marrocos, melhor é o campo que a cidade", concluem os cépticos Relógios no final.

No segundo, os dois interlocutores principais são a Fonte Velha (do Rossio), mais experimentada e sabida, "cristã-velha, vezinha da Santa Inquisição e São Domingos", que dialoga com a Fonte Nova (do Terreiro do Paço), recém-chegada, inexperiente, uma espécie de discípula muito curiosa sobre a vida da Corte. Além destas figuras, aparecem ainda na cena (Terreiro do Paço, alegórica imago mundi), sempre mais suposta e sugerida do que descrita pormenorizadamente, a Estátua, a Sentinela (soldado) e Apolo. Todos assistem a um dinâmico desfile de outras figuras urbanas, simbólicos tipos sociais (ilusão cinética, como lhe chama perspicazmente o organizador), que constituem pretexto para outros tantos comentários e juízos.

Para alcançar esse desiderato da mimese, serve-se o autor de vários artifícios para alcançar a ilusão de verosimilhança, como a caracterização antropomórfica ou a ambiguidade produzida pelas considerações metadialógicas. O desenvolvimento dos diálogos, com suas múltiplas derivações, assemelha-se muito à imagem vieiriana da árvore, com seus tronco, ramos, varas, folhas, etc. (Sermão da Sexagésima) ou à fórmula palavra-puxa-palavra. Afastados da "construção geométrica, própria da literatura dialógica renascentista, estes apólogos têm uma organização temático-conversacional mais ampla e dispersiva, o que não impede a existência de motivos centrais ou anafóricos, com destaque para o terceiro apólogo. Como é fácil de depreender, estamos diante de dois diálogos moralizantes, animados por manifestos objectos de crítica social, diferenciada nos dois apólogos: no primeiro, crítica da administração da justiça; no segundo, do tecido social urbano, corporizado na variada galeria de figuras-tipo.

O vol. II desta edição dos Apólogos Dialogais organizada por Pedro Serra integra o segundo e o quarto diálogos, respectivamente: O escritório Avarento e O Hospital das Letras. A fixação deste último texto é feita a partir do manuscrito da BNL, corrigindo-o com a lição de outros mss., pela editio princeps e ainda pela edição de Jean Colomès (1970). No que respeita à fixação de O Escritório Avarento, segue a já referida edição crítica elaborada por Mª Judite F. Miranda (1968).

Mantém-se neste dois apólogos o mesmo modelo conversacional, idêntica intenção morigeradora, variando os interlocutores, o assunto tratado e uma significativa tendência para o carácter inconclusivo das conversas. No nocturno cenário d’ O Escritório Avarento, dialogam quatro moedas distintas e imobilizadas: um Português fino, um Dobrão castelhano, um Cruzado moderno e um Vintém navarro. Mais ou menos cobiçadas, estas moedas contam a sua longa história da sua circulação, ao passarem de mão em mão, episódios quase sempre de recorte picaresco, que se constituem como pretexto para outras tantas apreciações e juízos morais sobre os vícios dos seus possuidores, derivando o assunto quase sempre para a falta de virtudes cristãs, mas também para o valor do dinheiro.

Já no quarto e mais longo apólogo, O Hospital das Letras, os interlocutores ocupam o cenário de uma livraria de Lisboa. O tema de fundo é a poesia e os livros, tendo como entidades dialogantes quatro "homens-livros" (Lípsio, Bocalino, Quevedo e o Autor), autênticos retratos arcimboldescos, como os caracteriza oportunamente Pedro Serra, evocando os célebres quadros do milanês e maneirista Giuseppe Arcimboldo. O cenário é uma biblioteca-hospital. Os censores designados por Apolo visitam os livros ou autores (os doentes) que jazem no Hospital à espera de um parecer clínico e dos respectivos remédios. São livros a falar de livros, distinguindo os que "devem ser curados" daqueles "que não têm cura". É, como se vê, um cativante e alegórico diálogo sobre a Crítica literária, ligeira e sem detidas teorizações, em clave irónico-jocosa, bem como sobre o papel dos livros e da leitura na moderna República.

J. Cândido Martins, Fevereiro de 2000

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