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Recensões


Gramática da Linguagem Portuguesa (1536)
Fernão de Oliveira
Edição crítica, semidiplomática e anastática
por Amadeu Torres e Carlos Assunção.
Lisboa, 2000.

Gramática da Linguagem Portuguesa (1536)
de Fernão de Oliveira

Com o lançamento da nova edição da Gramática da Linguagem Portuguesa do grande Fernão de Oliveira, de 1536, estão de parabéns diversíssimas pessoas: Estão de parabéns em primeiro lugar – claro – os dois organizadores desta "1ª edição triplamente fundamentada", como a caracteriza sucintamente a faixa publicitária da cobertura do volume aqui apresentado, os Colegas Amadeu Torres, da Universidade do Minho, e Carlos Assunção, da Universidade de Trás- os- Montes e Alto Douro.

Diremos algo de mais concretamente acerca dos méritos extraordinários da nova edição, depois de ter dito quais as outras pessoas, físicas e jurídicas, por assim dizer, que merecem parabéns nesta hora, que não hesito em chamar histórica: Trata-se da primeira edição moderna, depois de apenas quatro anteriores, da primeira gramática portuguesa de toda a história, que teve a pouca sorte de não ter tido mais que uma edição na sua época, precisamente a edição "princeps" de 1536, e que sobreviveu apenas num só exemplar, o da Biblioteca Nacional de Lisboa.

Convém destacar em segundo lugar, como estando de parabéns, a Academia das Ciências de Lisboa, que possibilitou a edição moderna deste monumento cultural no melhor sentido da palavra. Fazemos votos para que a Academia continue de maneira tão feliz no novo arranque, ultimamente observável, das suas actividades no campo da língua e da linguística.

Em terceiro lugar, queríamos realçar outras pessoas jurídicas, ou, melhor, organismos de pessoas, que poucos de entre os aqui presentes terão esperado que fossem mencionados neste contexto: Refiro-me às novas universidades, ou: universidades novas, criadas em Portugal nos últimos decénios; mais exactamente: àquelas de entre elas que não levam o epíteto "novo" no seu nome (como é o caso da famosa Universidade Nova de Lisboa), as universidades novas da chamada "província". Provêm logo de duas destas os dois organizadores do nosso volume, e é significativo que o congresso em que estamos e o lançamento do livro se efectuem numa outra "universidade nova", a de Évora. O que me leva a salientar isto são duas razões:

1) Tendo sido criadas na chamada "província", e ainda no Sul e no "extremo" Norte, as universidades novas têm sido desde o início tudo menos provincianas, por mais importante que fosse a sua implantação regional no sentido de uma penetração do ensino superior e da investigação naquelas partes de Portugal que nunca foram "hinterland" senão na perspectiva do Centro, e mesmo assim no sentido meramente geográfico.

2) O que me parece especialmente característico da dinâmica própria, imprevista, destas universidades novas é o facto de elas terem sido criadas, em parte, para dedicar-se a ramos de ensino e a investigações não ou apenas marginalmente implantados nas universidades do Centro e na do Porto, ligando-as em parte outra vez a tarefas de implantação primordialmente regional. Tanto mais agradável é verificar-se que, sem deixar de dedicar-se com zelo e competência a tais objectivos, toda uma série de investigadores das universidades novas se dedicaram com igual competência que os seus colegas do Centro e do Porto a temas de alcance nacional, europeu e universal. Entre estas temáticas conta-se a história da língua e da linguística, mesmo com orientação filológica, no melhor sentido da palavra, campo da linguística com o qual contrabalançam até uma orientação sincrónica predominante em Portugal, que, por sua vez, é bem compreensível, dada a orientação histórica acentuada no período anterior.

Mas convém terminar a lista dos que estão de parabéns, para poder dizer algo mais sobre as qualidades do autor da obra quinhentista reeditada e das qualidades da nova edição.

Em quarto e último lugar queria mencionar, por isso, sumariamente, como estando de parabéns, vários grupos de pessoas, se assim se pode chamar ao que é constituído por milhares de pessoas dispersas pelo mundo inteiro, que só em parte se constituíram jurídicas: Estou a pensar nos lusitanistas, romanistas e especialistas em linguística geral e teórica, que dispõem agora, pela primeira, de uma edição criticamente elaborada quanto às suas intenções, e fidedigna quanto ao resultado, de uma das obras pioneiras da gramaticografia moderna. E não só: A edição que se lança neste momento representa logo o "Optimum" desejável e alcançável, em plenitude de informação e em rigor filológico, na sua concepção e nos detalhes da execução. Ela dá ao usuário a escolha entre três vias de acesso. Em primeiro lugar queremos mencionar o que ocupa a 3ª parte da edição tripartida, o facsímile da edição "princeps". Ocupa o segundo lugar uma edição semidiplomática, em que se transcreve fielmente em tipos de letra moderna as letras da edição original, recorrendo com juízo ao emprego de itálico e negrito, e a uma pontuação moderna, corrigindo unicamente o que é lapso tipográfico evidente (assim, por exemplo, o emprego erróneo de um u em vez de um n ), dando fé de todas as correcções em nota de rodapé – correcções essas que não são mais do que aquelas que teria efectuado qualquer revisor da época se tivesse procedido com mais diligência e/ou com mais folga do que foi o caso com a impressão de 1536, que até nem sempre se deixou guiar pela lógica da grafia exposta, ou inerente ao exposto, por Fernão de Oliveira. Finalmente, temos, o que representa a primeira parte da nova edição: a edição crítica propriamente dita, e assim declarada. Ela não se contenta daquele mínimo de correcção crítica que representa já a edição semidiplomática que acabamos de caracterizar, ultrapassando esta em dois sentidos:

1) Ela dá fé daquelas variantes das edições modernas anteriores, três portuguesas e uma brasileira, que são susceptíveis de interessar àquele usuário que queira, por sua vez, repensar um ou outro passo do texto original, lá onde o original não seja 100% claro do ponto de vista da expressão linguística, para se dar conta da versão de outros organizadores de edições, mas, diríamos nós: sobretudo para verificar mais rapidamente onde estes outros caíram em erros que então queira rectificar o usuário que possua, ou tenha consultado anteriormente, uma das referidas quatro edições precedentes.

2) A parte "edição crítica" modernizada graficamente de tal forma que o leitor contemporâneo não seja desnorteado a cada passo, pensando, por exemplo, que um -ão, com til na letra a , seja um -ão final com til no sentido actual, isto é, um -ão acentuado, lá onde não o é nem o era no século XVI, mas é e era um -am final não acentuado, o que hoje se grafaria a + m: contendiam e não contendião, que é logo a primeira palavra do texto todo.

Renunciando agora à tentação de fazer o elogio – igualmente fundamentado – da parte introdutória de " A nossa edição" de Amadeu Torres e Carlos Assunção, especialistas na área das gramáticas portuguesas antigas (e latinas), e o elogio das notas dos organizadores, queremos, antes de terminar, dedicar algumas palavras à obra em si.

Ninguém menos que Eugenio Coseriu foi o primeiro e o mais decidido em declarar que Fernão de Oliveira "é, depois de Nebrija, um dos gramáticos mais originais, em certo sentido o mais original, e (...) o mais importante foneticista da Renascença na România", como se pode ler na versão portuguesa de um estudo publicado em alemão em 1975, transcrita na parte introdutória da edição. E é de mais velha data tal convicção de Coseriu: Pensamos não enganarmo-nos se dissermos que lhe ouvimos uma afirmação neste sentido já por volta de 1960, quando éramos seu assistente na Universidade de Bona, logo no início da sua actividade na Alemanha, para onde o tinha convidado então Harri Meier. Foi esta asserção que nos ecoava nos ouvidos quando começámos a trabalhar sobre a história da gramaticografia portuguesa, chegando a conclusões que poderiam ser uma cópia das do nosso mestre de Bona, sem ter deparado com o estudo dele, entretanto publicado em alemão. Coseriu caracteriza Fernão de Oliveira mais precisamente como sendo original lá onde João de Barros é "na maioria das vezes" um "simples imitador" de Nebrija.

Colocando as coisas num nível mais geral, o das "artes humaniores" da Renascença universal, podemos dizer que João de Barros representa apenas uma das duas faces da Renascença, a do reenlace com a Antiguidade, no intuito de escapar ao que se considerava o obscurantismo medieval. Esta primeira face da Renascença leva muitas vezes os humanistas a considerar independência crítica frente à Idade Média o que resultava numa nova submissão tudo menos (auto-) crítica aos moldes da tradição clássica. No zelo de demonstrar que a língua vernácula continua a excelência das línguas clássicas, e até a supera em parte, João de Barros, por exemplo, não inventa só casos como o genitivo, o ablativo e o vocativo do substantivo, que o Português simplesmente não tem, mas até um vocativo do pronome pessoal "eu": "Ó eu", que pelos vistos deveria fazer inveja aos Antigos...

Fernão de Oliveira vê de maneira realista a situação realmente existente do substantivo português, não falando em tais casos fantasma. Neste sentido ele representa a outra face da Renascença, a mais moderna, a do espírito independente também em relação à Antiguidade, predominante, como bem sabemos, nas ciências naturais da época, mas tão rara nas Humanidades de orientação linguística e literária, que temos de esperar mais de dois séculos e meio até encontrar, em Portugal, outro esboço gramatical independente – como o de Fernão de Oliveira – do peso das tradições, entre as quais se contam desde os séculos XVII e XVIII certos elementos dogmáticos da "grammaire générale et raisonnée", da gramática filosófica, etc. É Pedro José da Fonseca, o autor anónimo dos Rudimentos gramaticais de 1799 e principal autor do dicionário da Academia das Ciências de 1793, quem se situa de novo na linha do independentismo crítico renascentista.

Estando assim as coisas, pode dizer-se que está hoje de parabéns, para recorrer uma última vez a uma expressão já várias vezes repetida, que está de parabéns – dizemos – toda a comunidade de língua portuguesa. O seu primeiro gramático é – apesar dos séculos que nos separam dele – um dos mais modernos e um dos até hoje mais dignos de atenção por causa do seu talento autenticamente crítico. Uma comunidade linguística que dispõe de tal obra e que a põe à disposição de todos os interessados como se faz neste momento, pode orgulhar-se disso, e pode sentir-se encorajada a recorrer à prata da casa que ela representa, sempre que se trate de repensar a gramática da própria língua, ocupação, esta última, a que se têm dedicado, aliás com igual empenho e competência, autores de aquém e além mar.

Dieter Woll, Univ. Marburg, Maio de 2000

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