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A Lua dos Astronautas não é a minha Lua
António Cardoso Pinto
Gradiva
Lisboa, 1999

A Lua dos Astronautas não é a minha Lua
de António Cardoso Pinto

Contenção não será, talvez, a palavra exacta para esta poesia, diremos, por nos parecer mais adequado, controlo. A emoção é temperada pela razão, evitando o sentimentalismo egocêntrico, a razão é adocicada pela emoção, evitando o prosaico. O trágico dilui-se na confecção do texto, deixando apenas marcas, entre muitas outras, todas se recuperando num todo semiósico em que se procura o rosto da vida, ou das vidas, que nunca se deixa surpreender, a não ser em alguns sinais, mesmo esses duvidosos. " Ela (a poesia) é a escrita da descrição impossível ", afirmação de Jean-François Lyotard, com a qual concordamos. O amor também se dilui, sem, contudo, deixar de anunciar os seus arrebatamentos. O sonho e o real, a esperança e a decepção, são polos de antagonismos em que o Poeta se encontra crucificado, sem uma Providência, ou uma Solidariedade, que lhe possa estender a mão. É neste estar poético que António Cardoso Pinto se coloca, suportando e denunciando o logro social e civilizacional, mas de pé nos nacos da vida, que A Lua dos Astronautas Não é a minha Lua. Poesia existencial, na linha de Nietzsche, então pessoal, agora, na actualidade, massificada, generalizada, pelos que sentem, pensam e exteriorizam, marcando a modernidade literária.

Do fundo da solidão e do silêncio o Poeta assoma ao poema a recolher os flocos da vida: a luz, o branco, o azul, as estrelas, metáforas de um devir sincrónico num fundo vasto diacrónico, assinalando um tempo, o seu e o nosso, num mosaico de tempos, cujas raízes se perdem para além da Criação, noites abortadas de uma noite incógnita. Num cenário assim, se compreenderá a definição de Tzvetan Todorov: " A poesia não é uma questão de sentimentos, mas de significações.". Os sentimentos adquirem o seu relevo no contraste com o vazio tecnológico, a paixão é fogo em campo de neve, que não se adia por ausência de promessas:" de que lado vem o futuro ?". Ciente " que todos os caminhos para o paraíso / têm / a perfeita dimensão de cada homem ", " porque é preciso partir / a cada momento sempre para qualquer lado / ir / num gesto, num olhar ". Alquimias do sonho, suporte das cores da existência, a porta de saída de uma construção metálica : " para mim é tudo quanto desejo: voar e sonhar " ; " apetece-me sonhar "; " viajantes somos das coisas / dos sonhos das estrelas do tempo ". Antídoto para o nada, para a solidão, para a monotonia, que tragicamente regista: " Aqui / junto ao Tejo / à espera de coisa nenhuma "; " É a cidade que corre / Escorre da minha solidão "; " tudo se renova / enfim / tudo / é tão igual ". A sociedade está inquinada para poder saciar a sua sede, dar expressão ao que de humano há no homem: " e ei-los a correr de novo / até à última linha / entre amores e ódios / delírios e intrigas, prazeres e dores / leis e razões / dúvidas e medos / sonhos / esperanças / e cantos ". Por outras palavras, diria Antonin Artaud: " Goteja ali o mundo como o mar rochoso, e eu com os reflexos do amor ". Onde estão as palavras para descrever o que já não cabe nos olhos, ou o microscópio que dê nitidez às subtilezas ácidas? E quem as ouviria? E quem se dobraria sobre a lente? Daí o silêncio que se abate sobre os ombros humanos, em expansão redonda, planetária: é " uma idade de silêncios ". Já registado por Magritte: " O único som absolutamente puro é o silêncio.". O Poeta das profundidades é um condenado ao monólogo, aos seus versos, porque sabe que é o único recurso do diálogo, contextualizado na expressão de Tzvetan Todorov: " O monólogo é sempre um diálogo dissimulado.". O Poeta não cai no ai-de-mim-coitadinho, na lágrima de alabastro, no decadentismo finissecular oitocentista, resiste, de pé, assimilando o cálcio da vida que ainda lhe chega aos ossos: " a palpitação / a vida (...) o vinho o desejo a carne (...) os lábios / o fogo vivo a paixão ardente ". Em consonância com o idealismo nos Interiores do Poeta: " Não tenho um mundo / tenho um sonho " . Idealismo que atravessa a noite e o isolamento: " é de noite que se lavam as cidades e os espíritos / que o homem se despe e se confronta / agitando tranquilo, dorido // a noite é o seu espelho / o seu sonho ".

A Lua dos Astronautas não é a minha Lua não cede o seu luar a uma leitura apressada, exige o espírito do otium, no seu sentido clássico, incompatível com o corre-corre dos nossos exteriores e dos nossos interiores, comandados e oprimidos pelo Rosto do século, o Poder que se tornou telúrico. É uma obra com a dimensão do tempo, da reflexão e da sensibilidade que se lhe dispensa. Mais uma vez Todorov nos explicita: " O mistério nas letras tem isto de atraente: torna-se mais espesso à medida que se tenta dissipá-lo.". E é esta atracção que provoca o deleite da leitura, a sua razão de ser e permanecer no mar dos audio-visuais. Diz Lyotard: " Andar depressa é esquecer depressa, reter apenas a informação útil no momento, como acontece com a ' leitura rápida '. Mas a escrita e a leitura são vagarosas, avançam para trás, na direcção da coisa desconhecida ' no interior '. ". E, em continuidade, cite-se Mario Perniola: " promessas que suscitavam grandes expectativas reduziram-se a nada e, pelo contrário, futilidades habitualmente desprezadas ganharam inesperadamente credibilidade.".

Hoje, ler é uma anacronia, um atentado contra a verdade tecnológica. Ainda não é proibido, porque os marginais da leitura ainda não têm força para virar o mundo do avesso. Simples franco atiradores com setas de melodias. Mas resistentes, entrincheirados nos interstícios da futilidade degenerada e transformada em altar da vida, porque, dizem, viver é uma pressa, ainda que viver seja andar às sobras das canseiras. António Cardoso Pinto resiste e regista: " seduzem-me / os livros abertos / e os olhos / ardendo de palavras e sinais ". E nos três versos com que termina a obra: " Todos os dias há livros / à distância de um gesto / felizmente.". E felizmente encontrei este livro, que não estava à vista. O normal nas nossas livrarias, em seus espaços exíguos, sem público e cultura que os alargue. Como se fosse consumo em extinção. Que não é, a maior livraria da Europa acaba de abrir em Londres, com sete andares e centenas de metros quadrados.

Joaquim Matos, 22.09.1999

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