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Recensões


Rio Atlântico
Onésimo Teotónio Almeida
Edições Salamandra
Lisboa,1997

Rio Atlântico
de Onésimo Teotónio Almeida

Rio Atlântico aponta para margens e percursos nos dois sentidos, um vaivém de registos de observações e reflexões, onde se vai aportando a lugares concretos de abastecimento para zarpar para ilhas de sátira cosmopolítica. De leve, apenas um levantar do véu, a síntese na contracapa: " Ao fim de vinte e cinco anos de fazer-me ponte sobre o Atlântico, pé-cá, pé-lá, desembarcando em Lisboa, Ponta delgada, Lages, ou Boston, o oceano tornou-se bem mais estreito e instalou-se num quotidiano de onde se vê sempre a outra margem, com as ilhas de permeio a facilitarem o salto. / É desse meu triângulo de coração que falam estas crónicas, escritas todas ao sabor de eventos que atravessam a distância, cada vez mais curta, entre as duas margens, comigo sempre na esperança de agarrar e partilhar o melhor de ambas."

Já é banal, para quem milita nas trincheiras das letras, com uma arma artesanal ou uma arma sofisticada, dizer que as fronteiras dos géneros literários são quebradiças, ainda que persistam nas lupas dos conservadores aristotélicos em concorrência qualitativa com os que fazem da ruptura um espaço de criatividade, muitas vezes sem estaleca para se desembaraçarem do guisado. Vem isto a propósito do presente livro, rotulado pelo seu Autor de crónicas. E para afirmar, na primeira pessoa, que de facto é de crónicas que se trata no seu melhor encaixe literário.

Nada há que não contenha história, à superfície ou subjacente. A crónica é um parceiro privilegiado da história, sua matriz por excelência, correndo o risco de não o ser, se os seus registos não tocarem nas cordas da canção de gesta, ou, se se quiser, no devir civilizacional. Regista o imediato, ou o recente, ou a atmosfera, sempre com o toque da pertinência. Num tempo já muito recuado, com camadas de séculos, um tal Fernão Lopes disso tinha consciência: " ora esguardae, como se fôsseis presente ". Para ser história , à crónica falta-lhe a distância que permite a perspectiva, alguma dela intuída, por vezes, pelos mais sagazes. Em contrapatida, na crónica respira-se mais o calor humano, a vida, a verdadeira verdade, que na história se perde por estatísticas, por selecções que obedecem a critérios " científicos " , em busca da causa-efeito, onde a factura humana se perde, em nome de uma objectividade que nos deixa de fora. A história científica não andará muito longe, em sua secura, da ciência que preside à economia e à finança, expressa em números que ocultam a realidade humana.

Pretende-se com isto não defender um conceito de história épica, ou metafísica, mas apenas denunciar certo cientifismo, o das verdades absolutas, em detrimento da seiva da crónica, secularizada. Não há história em sentido absoluto, a dialéctica do seu processo não permite apreendê-la nos seus aspectos quantitativos e qualificativos, objectivos e subjectivos. Nos interstícios da história deixados pelas ausências, a crónica tem um papel primordial que merece ser cultivada com mais frequência, que merece a chamada de atenção dos críticos, dos leitores e das editoras. Desde que, claro, ela seja paradigmática, isto é, assuma o seu papel de coadjuvante histórico, evitando o supérfluo, evitando fazer dela um pretexto para preencher colunas com o que apetece e como apetece, tudo o que der na real gana à ignorância.

Rio Atlântico tem o sabor do vivido num planeta que se reconhece ser nosso, tem apontamentos avulsos que se sabe interessar à história, casos particulares que são pontas de uma globalidade, sem lhe tirar o pitoresco, o humor e outros recursos que são estímulos para a leitura e marcas de bem escrever, de fazer passar a mensagem com deleite, com simplicidade, com imediatismo, com clareza. Como diz o outro, ler assim é um apetite, porque vemos as linhas com que nos cosemos. Uma das características da crónica é o sabor da pessoalidade do seu autor, espécie de testemunha ocular que assim se aceita. Onésimo é perspicaz, culto ( não se confunda com erudito ) , profundo à superfície da história, vertical nas suas ideias não vinculadas a fundamentalismos ou a compadrios, humanista no sentido lato e restrito, elegante e sereno perante as forças do mal, sem deixar de manifestar as suas revoltas. Um certo amargo de boca, o mundo não corresponde aos seus anseios. Rasga as entranhas do homo sapiens para uma anatomia das suas fezes de alimentação de plástico vinculada ao consumismo construído pela economia e pela finança, mas sempre com os dentes limpos, como quem diz, sem cair no chocarreiro ou na brejeirice que possam incomodar lábios de bâton, ainda que por vezes necessária como função superlativa, como o fez o nosso Gil Vicente.

O humor é uma das ferramentas da oficina do Autor. Que bem me soube ler o Rio Atlântico em férias! No descanso de quilómetros e quilómetros pela estrada das obrigações quotidianas, sujeitos a despistes, porque nem a dormir se pode dormir! Lembrei-me de humores de Bernard Shaw e de Mark Twain , leituras de outros tempos, já muito recuados para me permitir comparações. O próprio Autor tem uma crónica sobre o humor, de que não se tira uma conclusão: " é questão que tem intrigado muita gente desde há milénios ". Mas, como disse S. Agostinho, se não me falha a memória que pouca amizade partilha comigo, " se não me perguntarem, sei ". E deixemos de lado a especificidade que o distinguirá do riso, do cómico e de outros parentes ou familiares, graus e tratamentos da caricatura. A nível de rua distingue-se o " nosso " humor do chamado " humor inglês ", o primeiro representando o papel de pacóvio e o segundo o de nobre no palco da cultura. Releguemos o " nosso " para a chamada " piada ", condimentada com mais ou menos pimenta, para o inglês o do riso esculpido na subtileza, com um verniz que um estatuto social exige, porque no meio das liberdades democráticas nem tudo é permitido. Onésimo usa " humor inglês ", já bem exercitado pelo diplomata Eça de Queirós, sempre zeloso da sua imagem social, sempre a arrastar a asa pelo pólen da aristocracia.

Mas vamos ao nosso Onésimo, em quem não se adivinha a mentalidade de Eça e em quem o humor é diferente do do autor de Os Maias, ainda que ambos " ingleses ". Aguentem as citações porque vale a pena e elas por si dirão mais que as minhas palavras:

Na pág. 30 : " Eram já antigas as rivalidades de feudos entre a Coca-Cola e a Pepsi, com anúncios alternados em debate renhido. A Coca-Cola viera com a Nova Coca-Cola, fazendo alarde de grande redução de calorias, a que se seguiu a Coca-Dieta e logo depois uma outra Coca-sem-Cafeína . Surgiram os protestos dos fãs da antiga Coca-Cola e a companhia relançou a Coca-Clássica. / A Pepsi aproveita a barafunda para novo anúncio. Um indivíduo senta-se ao balcão de um bar. Dirige-se-lhe o barmen, atencioso: ' Que deseja? ' e à resposta ' uma coca-cola , por favor ', lança-se na desenfreada recitação de uma ladainha interminável: 'Coca-Cola Nova, Coca-Cola Velha, Coca-Cola Antiga, Coca-Cola Antiga Nova, Coca-Cola Clássica, Coca-Cola Dieta, Coca-Cola Dieta Antiga, Coca-Cola Clássica Dieta, Antiga Nova-com-ou-sem-cafeína Antiga ...? ' . O cliente, com a respiração quase suspensa , a levantar a mão implorando que pare, pede por misericórdia: ' Uma Pepsi, por favor! ' ." Um humor à inglesa, com um cheirinho de anedótico, tornando o escudo mais cotado que a libra estrelinha, pelo seu efeito mais de acordo com o goto português. Não se esqueça que a coca-cola e outras " colas " já funcionam como símbolos de consumismo-económico-financeiro que caracteriza o nosso século, como quem diz, o século do Império Americano . E veja-se o seu enquadramento nas linhas da história que um dia será escrita sem os piquinhos da coca-cola e do seu sabor.

Onésimo, acordado, atento, independente, não podia deixar de dar umas alfinetadas na intelectualice, preocupada mais com o argueiro do que com a trave. Na pág. 42: " Cogitava assombrado indagando das razões por que tantos intelectuais do país se entregam apaixonadamente à delicadíssima questão ortográfica fazendo parênteses à actividade quotidiana para metalinguajar sobre as implicações metafísicas do acento. Ainda quis aplicar desde modelos estruturalistas e marxistas a hjelmslevianos-reformistas e pós-greimasianos, tentando descortinar se os formalistas veriam conotações esquerdistas no acento grave e, consequentemente, tendências direitistas no acento agudo; ou, com a ajuda de Lacan, se haveria manifestações repressivas no aspecto fechado e constrangido do acento circunflexo, mas nenhuma hipótese nem qualquer dos métodos deu fruto algum.". Permito-me apresentar, como exemplo de humor, nada mais, um exemplo da minha lavra: o país, sem excepção de um só retalho da pequena tira geográfica, é rico em capelinhas barrocas, rococó e clássicas, onde são mais os santos com os seus altares, com dourados novos e dourados velhos, que os fiéis que buscam o calor espiritual, todos, santos e fiéis, com paramentos de solidariedade e de progressismo. Viva a vanguarda! Viva a esquerda humanitária! Já que, sendo eu de esquerda, mas sem os pingos do hissope, nada mais me resta senão o meu louvor, a minha oração, para que a religiosidade continue para conservação do mundo que temos.

Tenham paciência, mas mais esta citação da pág. 122: " Um deles contava-me há tempos que a mulher ficara desapontada com a sua oferta de Natal. Esperava um anel de diamantes. E o José explica-se-me: ' Eu perguntei-lhe: sabes quantas casas de banho eu tinha de limpar na Brown para te comprar um anel de diamantes? ' ". Era a sua profissão.

Olhem que a do fumador também vale a pena. Na pág. 171: " É um vício como qualquer outro e eu, que já fumei três maços por dia, sei perfeitamente o que é o descontrolo de um hábito inveterado. Curei-me da necessidade de chuchar nesses pauzinhos de cancro, autêntica morte lenta (já um fumador comentou: ' E quem é que está com pressa? ') ". O humor em Onésimo roça pelo chamado " humor negro ", que apenas transparece no seu conteúdo, subjacente ao gracejo espirituoso e fino. Que outra designação para o " buraco negro " da humanidade? Transparece semanticamente, já que o seu sentido corrente ocorre quando se brinca com coisas sérias, o que não é o caso nas presentes crónicas, com algumas pedras da pirâmide dos poderes à mostra, construída por " escravos ", outros, do nosso século. No caso do nosso país, deixa o Autor um alerta, mais um, provavelmente sem ouvidos que o escutem, a falta de leitura, que está na razão directa do nível de vida. Preocupação que só se manifesta em quem é humanista de fundo. Para evitar citações deixo a indicação das páginas: 82, 83, 133, 143, 183, 189 e 191.

A massificação consumista, milagre divino da tecnologia, primeiro vender e depois o homem, toma de assalto o otium e os hábitos tradicionais, já à velocidade das altas competições de 100 metros, rarefazendo o espaço do pensar e do sentir. Tendência: ninguém é senhor de si, cada um tem o seu direito à dependência, a regalia inerente à " existência " generalizada, em que os estereótipos " humanos " universais substituem a personalidade, deixando-nos apenas tipos, para o teatro, acabando com as personagens modeladas, psicológicas. Venha o Onésimo em meu apoio, nas págs 248 / 9: " Até porque, nas viagens, já ando por demais atafulhado de maquinaria - o laptop, a impressora mais o fax, o adaptador transformador, a máquina fotográfica, e agora o telemóvel ... Pois! Isso mesmo. Exactamente o que me faltava. Nunca me atreveria a comprá-lo e o Pai Natal lá mo deu para acabar de me rebentar com a cabeça e com a mala de viagem. Não. Não o usei ainda. (...) Quer dizer, para cada milagre da tecnologia electrónica há um pesadelo correspondente. ".

Onésimo, Doutor Onésimo Teotónio Almeida, é Professor na Brown University, nos U.S.A.. Uma espécie de ovelha transviada do redil, isto é, da cátedra da catedral universitária mergulhada no incenso da solenidade. O mundo não é o edifício, o mundo é o mundo com o seu sol, sob o qual se manifesta. Os galões não o impedem de andar entre os civis, por outras palavras, de " descer " aos jornais com a sua escrita a dialogar com as massas, que ainda as há, não muito por cá, de leitores. Na transparência da linguagem dos que falam, porque há coisas que têm de ser às claras, próximo da fala, mesmo conservando a sua mestria.

Acho que as palavras de Mia Couto sobre Mar Meu, de Xanana Gusmão, são um bom remate para este texto de partilha com Onésimo: " O tempo é um ser que engravida antes mesmo de nascer. Em cada momento, a História sonha o seu próprio futuro. Na ante-margem do próximo milénio, o nosso tempo parece ter deixado de sonhar. Todos os dias, o nosso tempo desperta sem recordar ter sonhado. Depois de tanta desilusão, o nosso século ainda sonha? Ou sonha apenas com o seu próprio fim? ".

Joaquim Matos, Pedrouços, Setembro de 1999

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