Publicado em 1978, dois anos antes de Levantado do Chão e cinco anos antes de Memorial do Convento, o livro de contos Objecto Quase, de José Saramago, já apresenta o novelo da escrita que caracterizará os seus títulos posteriores e que lhe dará a singularidade editorial, que não poderá ser explicada pelo percurso temático preferencialmente histórico, se empregarmos este conceito balizado pelo sentido de que se serve este escritor: « Toda a história é história contemporânea ».
Para Saramago, estar na vida é estar na história, como efeito e como causa, revelando-se como história no primeiro, posicionando-se conscientemente activo no segundo, assumindo-se respectivamente irresponsável e responsável, faces antagónicas mas correlativas numa linha temporal contínua, que não consente os espartilhos cronológicos ou factoriais. A história é vida, individual e colectiva, sempre presente, actual, não captável na sua totalidade pelos utensílios da objectividade. Nas clareiras de ninguém, e de todos, ele se procura como história, ao encontro da história, como quem se deslumbra perante as descobertas sucessivas na caminhada existencial, consciente quase.
Esta maneira de estar na história, ou na vida, se se quiser, e dela própria falar, falando também de si, o que não poderia deixar de fazer na perspectiva em causa, explica o percurso histórico de Saramago.
Sem reduzir o peso que poderão ter o pensar e sentir de Saramago na sua obra, somos levados a reflectir sobre o novelo da sua escrita, não como razão única, mas como vertente bastante acentuada, que o distingue e que com probabilidade o promove, ou contribui para a sua promoção.
Saramago está na escrita como está na história, isto é, a escrita está nele, como terminal, e para a escrita parte, já outra, que se dimensiona já não só como produto colectivo, mas também individual, onde todos os canais psicossomáticos forçosamente desaguarão, quer os sinalizados, quer os não-sinalizados.
De libertina, por insubmissão, poderíamos designar tal escrita, onde os módulos ou elementos linguísticos são alienados do seu habitat estatutário, perdendo a cor que lhes é própria nas áreas a que estavam sujeitos. O oral e o escrito, o poético e o prosaico, o discursivo e o descritivo/narrativo , o jogo e a sobriedade, a ironia e a verdade, o humor e a solenidade, fluem em turbilhão, rodopiam, numa redundância quase, porque nunca chega a sê-lo, ainda que apetecida, numa de palavra puxa palavra, de ideia puxa ideia, descarregando-se os campos magnéticos da narrativa, sem deixar que outros campos surjam com possibilidades de serem etiquetados e darem um gostinho aos fiéis defensores da erudição, que, para o ser, como se sabe, terá de ser conservada na sua embalagem. Uma quadricromia, com a sua proliferação de nuances, da língua, mais no já experimentado do que no inovado, é o culto de Saramago, que, assim, constrói na intersecção de dois planos, o da transparência e o do hermético. Esta quadricromia ( linguística, filosófica, estética e estrutural ) não é gratuita em Saramago, como veremos. Saramago terá de ser lido sem estatutos, sem preconceitos, a partir do zero da literalidade, que o mesmo é dizer depois de uma barrela aos hábitos, pois nos obriga a fecharmo-nos dentro da sua escrita, sem outra familiaridade que não seja ela mesma.
No seu « estilhaço » literário, Saramago consente que se perca o fio à meada, por razões que interessam à própria meada, pois é um processo sempre em aberto a origem das suas fibras, para não falar da sua relação ou não com a meada. A associação, ou a pescagem do que eventualmente possa picar a palavra, cria hiatos narrativos, que, possivelmente, só o serão pelos hábitos criados nas estruturas codificadas. Enquanto que nestas um acto sucede a outro acto, uma situação a outra situação, e assim sucessivamente criando o movimento, em Saramago uma palavra sucede a outra palavra, uma ideia a outra ideia, e assim sucessivamente, criando um compasso de espera, compassos, muitos compassos, em que a natureza narrativa provisoriamente se apaga. Provisoriamente, ou aparentemente, pois a estória circula no corpo da história, que habita o autor, e na qual as imposições, estáticas por para-naturais, perdem a sua função legislativa.
Um conto (ou um romance) nunca é uma estória em Saramago. Será, quando muito, uma história de estórias. Uma palavra, uma ideia, um objecto, uma atitude, um acontecimento esporádico, etc., rapidamente se transformam em estórias, parecendo retalhar o corpo da narrativa, mas preservando-o intacto, pois esse corpo, histórico, na linha da sua concepção, é descontínuo, não pondo em causa a unicidade. Apetece interrogar por que é que Saramago utiliza as palavras conto e romance. Apetece, não por qualquer hesitação, mas para provocar um esclarecimento, neste contexto, pertinente. Um e outro são utilizados ortodoxamente. O primeiro, não perde a sua natureza episódica, o segundo, não perde a sua natureza sequencial.
O autor de Objecto Quase, com a «libertinagem» da sua escrita cria potencialidades estéticas que podem passar desapercebidas. As divagações aparentemente fortuitas estão para o episódio como um coro para um solo: reforçam-no. O episódio adquire uma ressonância que o amplia, por ela se abrindo o espaço para a crítica, onde o humor e a sátira engordam, pela insinuação, pela ironia, pela afirmação, parecendo perder-se a pertinência em favor da loquacidade. A voz coloca-se numa direcção para ser ouvida numa direcção oposta. Falando de alhos, está a falar de bugalhos. Quando «se perde» a falar da madeira e carunchos, da Cadeira, mais não faz do que saborear em câmara lenta a brevidade de um episódio, na sua dilatação gerando uma simbologia que transforma o episódico em histórico, o pontual em sequencial. Porque uma estória é o terminal da história, que nunca é, porque os terminais estão abertos no corpo da história.
O mesmo se verifica no segundo conto, Embargo, onde o embargo do petróleo traz à superfície histórica o homem como um dependente do carro, exposto que está às dependências criadas pela civilização. O episódio, aparentemente simples, é estirado sobre o patológico, e sob, onde um corpo se entala sem saídas, suportando as angústias de hábitos que estão ameaçados. A dilatação verbal do simples transforma-se em tensão dramática, em problema, em crítica e humor, numa anatomia humana em que o ridículo é bisturi. Tudo isto nos é dado por uma estrutura narrativa que se oculta nos planos sintagmáticos e paradigmáticos da palavra, como se a narrativa, enquanto comunicação, tivesse que subjugar-se às estruturações da palavra e não aos códigos narrativos.
Refluxo é outro paradigma da escrita saramaguiana. Pelo seu «argumento», a construção de um cemitério, não passará pela cabeça de ninguém o conteúdo desse conto. Conserva a sua natureza episódica, o sonho de um monarca, mas as galerias abertas ao corpo da história, pela palavra, como o caruncho na madeira, dão uma elasticidade à dimensão do conto que o transferem dos seus limites para a procriação ilimitada da história. Tudo é inventado e tudo é verdadeiro, e neste tudo, diversificado e uno, a palavra liberta-se do seu estaticismo referencial para se tornar por si própria dinâmica, pela acumulação de material histórico reactivado, pela simbologia quase, pela metáfora quase, pela sátira non-quase, feita a leitura na direcção do fio de prumo. Tudo é mensurável neste conto, o exposto e o oculto, o que é susceptível de medida e o que o não é. História quase, este conto, que assim se inicia: « Primeiramente, pois tudo precisa de ter um princípio, mesmo sendo esse princípio aquele ponto de fim que dele se não pode separar, e dizer 'não pode' não dizer 'não quer', ou 'não deve', é o estreme não poder, porque se tal separação se pudesse, é sabido que todo o universo desabaria, porque o universo é uma construção frágil que não aguentaria soluções de continuidade - primeiramente foram abertos os quatro caminhos.».
A versatilidade de Saramago ( verbal, imaginativa, observadora, reflectiva ) leva-o às raias do surrealismo, patente na roupagem dos «factos», como quem diz no tecido e no debuxo e no corte, que revestem esses «factos», no conto Coisas, onde os ingredientes da psicologia patológica, individual e colectiva, e da parapsicologia, são expropriados pelas palavras, cujo objectivo, constante no autor, é o homem, para a despir até à pele e deixá-lo nu na praça pública da história, em confronto com a história, que o mesmo é dizer consigo próprio, o que explica a sua toada sarcástica e a sua intenção pedagógica acerada. Policial quase, também, pelas interrogações de todo o percurso, em gradações crescentes de intensidade, até à descoberta da causa, remate final: « - Agora é preciso reconquistar tudo./ E uma mulher disse:/ - Não tínhamos outro remédio, quando as coisas éramos nós. Não voltarão os homens a ser postos no lugar das coisas.». Neste remate está o motor de toda a estória, a dependência do homem da sua própria obra, da existência por ela modelada, que se transforma numa força que o transcende, que o domina, como presa sem defesas, sem protecção, nem individual nem colectiva, nem civil nem governamental. O ridículo pactua com tudo que decorre da correlação homem-objecto, por onde escorre um sofrimento, contaminante, um pathos, que não provocará a piedade, mas a reflexão, que se exige fria e sem tempo quase. Porque objecto, é o homem quase. Neste conto, as «coisas» têm o mesmo estatuto das pessoas, não com qualquer intenção parabólica, que inadvertidamente possa passar pelo escaparate de um crânio, mas para identificar as pessoas com as «coisas», para mostrar a humanidade que não somos, pois «coisa» não faz parte da compreensão do humano. A natureza deste texto, para não falar da generalidade da obra do autor, não é intervencionista, no sentido político em que o termo é utilizado. É de natureza humana, no seu sentido mais lato, do singular ao colectivo, sem fronteiras cronológicas ou políticas, em perspectiva histórica, não a da história impressa, do historiador «científico», mas a história que somos e que fazemos, desde a origem que nos diferencia de tudo o mais.
A história habita-nos, desde que a conhecemos, humana, mitológica, sombras e silêncios. E assim chegamos ao penúltimo conto, Centauro, já preparados para aceitar o inverosímil, que já não distinguimos do real, pelo depósito que se foi acumulando no nosso fundo, até se perder de vista da consciência, de onde olhamos, o que nos leva a repeli-lo, por fantasia ou sonho, no que descansamos, nem todos, quase. O centauro, o último da sua espécie, é cavalo e é homem, é força e é sensibilidade, perseguido pelos deuses e pelos homens, até à morte na consciência dos olhos destes. Morte que nos deixa uma recordação amarga, pelo contraste com o amor, manifestado pelo homem-animal em duas páginas poéticas, em que a poesia não é a palavra, mas o acontecimento em si. Outras leituras se poderão fazer deste texto, mas ficamos por esta, pelo que ela tem de verdade, ainda, ao lado do mitológico, pelo que ela revela da «noite» estendida sobre o passado.
O último conto, Desforra, apenas com três páginas, é a afirmação do amor, despido até à simplicidade da natureza, em contraste com a castração - a «desforra».
Neste conjunto de contos, em Objecto Quase, há quase uma sequência, onde a história do homem é montada em painéis, que vão desde a sua alienação, com opressões internas e externas, até à sua própria natureza, espontânea, amoral, livre: o encontro do jovem e da jovem, no final, em que o silêncio renasce, identificado com a natureza, sobre as cinzas da palavra, que de todos os vírus se tornou portadora.
As obras posteriores de Saramago, os romances, são espaços preenchidos, que ficaram em aberto, neste percurso dos contos, em que o autor se define, como escrita e como homem, inteiro quase.
in, Letras & Letras, nº 49, 19 de Junho de 1991, pp. 11-12
Nota: Este texto, publicado no Letras & Letras, é agora apresentado ipsis verbis, com supressão, apenas, de quatro linhas, que agora se consideram marginais e que em nada alteram a nossa reflexão e a nossa posição tomada. Também alterámos o título, por acharmos que poderia desvirtuar a nossa intenção. Segundo Saramago, em Objecto Quase, a homem é um produto adulterado. E, em sintonia com o seu ponto de vista, lhe tínhamos dado, então, o título: " Objecto Quase / contos para adultos adulterados."
A afirmação, no final do primeiro parágrafo, " Toda a história é história contemporânea", foi feita numa palestra, na Universidade Portucalense, então no Largo de S. Lázaro, no Porto.
Joaquim Matos, Pedrouços, Setembro de 1999