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Recensões


Vento
Alberto Augusto Miranda
Depart. Lit. da Soc. Guilherme Cossoul
Lisboa, 1998

Vento
de Alberto Augusto Miranda

Alberto Augusto Miranda, já com uma vasta obra publicada, não mediático nos ecrãs pagos pelo contribuinte, insubmisso a grupos e instituições, a ordens e horários, a confecções de estar e ser, fazendo, e só, o que lhe dá na real gana, dirige actualmente as edições TEMA, já com mais de duas dezenas de títulos, na sua maior parte de qualidade, de autores nacionais e estrangeiros. Por outras andanças tem ampliado o seu currículo, sem nisso pensar, pois move-o o prazer que desfruta das coisas em que se mete. Ora é poeta, ora é ficcionista, ora é pianista, ora é crítico e ensaísta , ora é docente, ora é actor, ora é simplesmente exímio conversador. Sempre indiferente às portas que poderiam ser abertas pelo seu Curso Superior de Literaturas Modernas, pelo seu Curso Superior do Conservatório de Música, pela sua capacidade de trabalho, pela sua inteligência apurada e isenta, pela sua bem assimilada cultura. Alberto Augusto Miranda é livre como o vento, um romântico, não na forma, nem no sentimentalismo, mas nos sentimentos e na liberdade insubmissa, no arrebatamento nos nacos de felicidade que procura, porque eles são a vida.

Alberto Augusto Miranda é como o vento, imprevisível para os meteorologistas de ciência de bem governar a toda a sela, mas previsível para quem com ele participa do voo, do sonho, da poesia, do sorriso aberto, indiferente às lâminas dos preconceitos, ao cordame do barco que nos leva. E Vento é o título da obra que nos picou para uma breve referência. Vento tem como subtítulo " Histórias para a Inocência ", não para as crianças. Eles não sonham nem sabem que a inocência não é apanágio das crianças, porque a confundem com um pré-perfil social anterior à aprendizagem bastarda dos alicerces de uma sociedade bem organizada para melhor ser governada segundo os interesses em causa. Inocência, para o autor, tem a ver com o estado puro e natural imanente no barro humano, uma espécie de luz no fundo do túnel, que ilumina os obstruídos acessos ao paraíso. Onde a linguagem corre livre, sem fiscais, onde querer e imaginação se confundem num espaço telúrico e cósmico, onde os actos são imediatos sem uma forca vigilante. Estas observações se exigem, para compreender a intentio auctoris. Uma primeira leitura, para cheirar, apressada, costume enraizado nos especialistas da matéria, levará a concluir que se trata de histórias banais, simplistas, transparentes, ao nível das crianças. Mas uma leitura reflexiva dá-nos uma outra dimensão, mais profunda no seu tecido semântico, mais rica na sua elaboração estética.

A primeira história, na nossa terminologia estória, tem por titulo Vento, precisamente o escolhido para o volume. No Vento, o autor esmalta a leveza da vida ( veado e gazela ), em tons que são de alma expurgada da materialidade corrosiva. Pressente-se a liberdade do sonhar, a eleição do espírito que para si requer um nome, beleza. O melhor do lado humano aqui se privilegia, com louvor, com um idealismo que não se conforma com a opressão do consumismo a que se condenou a sociedade.

Segue-se A Fabulosa descoberta da Néné, uma pequena estória na linha das primeiras correspondências sensoriais, exercício já esquecido pelo adulto, mas que ilustra, com realismo, as primeiras pedras da construção da existência. Nada mais. Mas mais se pode ver, se " bosta " for tomada por metáfora da vida.

De Misturas se constrói a terceira com pessoas e técnicas de que resulta o humor e a sátira social. As pessoas não são pessoas, são mascarados, nos seus hábitos sociais, cada um optando pela pele que mais lhe agrada, sem ponta de personalidade que dê um toque de personagem modelada. Um videoterapeuta acaba por elevar-se a protagonista, dirigindo a sua orquestra de acéfalos, a família, com a sua batuta. Onde se nega o laço de família, porque a pele de cada um se sobrepõe à comunhão.

Em jeito de parábola é encenado O Exílio dos gatos, que são silêncios, filhos da Lua, versus silêncios dos homens. Oriundos da luz, dela desgarrados, como a Patusca, a gata velhota que se fartou do silêncio da mãe Lua. Um edenismo transparece em breves recortes nesta breve estória.

E também em jeito de parábola se segue A solidariedade dos olhos, estória trabalhada com órgãos do corpo, que nos faz lembrar a parábola romana dos membros e do estômago, na sua confecção. Registamos a imaginação e o anedótico de alguma brejeirice que se anula num final de intenção didáctica, a solidariedade. Os sentidos e os intestinos são as personagens que o autor para aqui elegeu, como intérpretes de sentimentos e de opiniões.

E passamos a A serigaita e o velho com uma crítica implícita à pintura de manchas e que termina com um toque de magia. O velho pintor, criativo, já distante do real que o cerca, perdido na sua subjectividade, já alienado dos contornos e dos sabores das coisas, é confrontado com a menina, a serigaita , para quem a natureza é a que se projecta nos sentidos, porque a outra, a subjectiva, ainda não a descobriu.

Em sétimo lugar vem A princesa do parque, que ilustra dois sentimentos opostos na criança , o do isolamento, a solidão infantil por falta de crianças para brincar, e o da arrogância ingénua, imaginar-se grande, a princesa de um parque, em cima de um pedestal. Realça-se a imaginação e a liberdade da criança que cria o seu próprio mundo, a sua própria felicidade, porque a vida ainda é sinónimo de ilusão, de devaneio, de quimera.

E damos com o título O condorcéu, tão singelo quanto belo pela sua lição de fazer a felicidade com as poucas coisas que estão ao nosso alcance, no caso presente todos darem simplesmente as mãos à volta de uma árvore, o condorcéu, nome que não vem nos dicionários, porque nos dicionários não aparece a felicidade, apenas o seu nome, sem forma e sem conteúdo.

E temos então A voz de Marta . Do mito, da natureza e do homem se confecciona esta estória que permanece no limiar da narrativa, quase sem estória, porque o espaço poético dela se apodera, em levezas, em sentimentos, em harmonias.

Para terminar com A floresta é um mundo, que se pode considerar a chave técnica das estórias. As correspondências do simbolismo, a vinculação de tudo ao Todo, estão na base das "liberdades" literárias do livro que se apresenta. Que sobretudo é poema, meteorito, de sensibilidades, que desliza através da floresta que habitamos e de que fazemos parte.

Um livro de denúncias e de favos onde a vida ainda reluz.

Acompanhado de ilustrações esteticamente personalizadas, com qualidade, que merecem a sua referência pela confecção narrativa inalienável dos textos, tornando-as interpretativas, co-autoras, com rigorosa fidelidade. A merecer o registo dos seus autores: Ana Pinto (Lisboa) , António Pinto (Lisboa) , Anxo Pastor (Galiza) , Eva de Boitselier (Bélgica), José Alexandre (Espinho) , Paula Espiñeiro (Galiza) , Raúl Sosa (Uruguay) .

Joaquim Matos, Pedrouços, 7 de Setembro de 1999

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